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As clínicas particulares e as vacinas

domingo, 17 de janeiro de 2021

Atualizado em 15 de janeiro de 2021 10:20

A humanidade não só acompanhou como também torceu pelo bom desempenho das instituições que pesquisaram vacinas para combater o coronavírus e neste início de ano - ao que tudo indica promissor para a saúde - suspirou com alívio quando as agências reguladoras foram aprovando e autorizando a utilização de algumas delas para a imunização mundial.

A corrida pela aquisição da vacina teve início bem antes de findar a terceira fase dos estudos científicos e muitos países conseguiram a preferência junto aos laboratórios, assinando contratos de reserva de aquisição do imunizante. Assim foi feito por eles e a vacinação já se faz presente na ordem do dia.

No Brasil a ANVISA recebeu dois pedidos de uso emergencial, sendo um deles do Instituto Butantan em parceria com a empresa chinesa Sinovac e o outro feito pela Fiocruz em parceria com a farmacêutica AstraZeneca e a Universidade de Oxford. A agência solicitou, cumprindo rigorosamente o protocolo estabelecido, a juntada de documentos faltantes e complementares e marcou para o dia 17 de janeiro a reunião da diretoria para decidir a respeito da autorização para os dois imunizantes. Apesar de se tratar de uma corrida contra o vírus, que vai provocando cada vez mais mortes, todo o cuidado é necessário para garantir a segurança e eficácia das vacinas que serão utilizadas pela população.

Entre tantas dúvidas e incertezas a Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas (ABCVac) anunciou que está negociando cerca de 5 milhões de doses da vacina indiana Covaxin contra a Covid-19, também sem pedido de uso emergencial ou registro junto à ANVISA.1

Em recente reunião anual, a Organização Mundial da Saúde - responsável pela decretação da pandemia do coronavírus - conclamou a todos os membros, em caso de descoberta de uma vacina, que ela seja considerada um bem público global, com acesso irrestrito a toda comunidade mundial.2

Neste diapasão pode-se considerar a vacina como sendo res communis omnium - expressão tão largamente utilizada no Direito Romano -, dando a entender o pertencimento coletivo de tudo aquilo que a natureza proporciona, como também a criação pelo homem de algo que beneficia a humanidade, observando que, conforme preceitua a Constituição Federal, no artigo 196: A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

O Plano Nacional de Imunização (PNI), instituído em 1973, advindo após a lei 6.259/1975, que criou as políticas públicas voltadas à imunização contra enfermidades, contempla a vacinação de crianças, adolescentes, adultos, idosos, gestantes e povos indígenas, de acordo com o Calendário Nacional de Vacinação.

O Brasil sancionou a lei 13.979/20, norma excepcional caracterizada pela decretação da pandemia e que prevê, em seu texto, medidas de enfrentamento da emergência em saúde pública com a finalidade de conter a contaminação ou propagação do vírus. Dentre as medidas previstas no artigo 3º da referida lei, destacam-se as de realização compulsória, compreendendo: exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, vacinação, outras medidas profiláticas ou tratamentos médicos específicos.

Pode-se concluir, sem muito esforço interpretativo, que cabe ao Estado a responsabilidade de assumir a iniciativa de inocular a população gratuitamente, de acordo com os critérios estabelecidos pelo Plano Nacional de Imunização, obedecendo os parâmetros da igualdade entre os cidadãos e a equidade na distribuição dos recursos.

Ocorre que, diante da escassez dos recursos, pela ausência de uma vacina e pela falta de agulhas e seringas, além dos dois estágios da vacinação, não destoando dos princípios acima enunciados, na própria igualdade reina uma desigualdade intrínseca que a diferencia e é voltada justamente para as pessoas que compõem os grupos de maior risco e vulnerabilidade como, por exemplo, profissionais da saúde, da segurança, crianças, adolescentes, idosos, pessoas com deficiência, pessoas com comorbidade e outras que exigem escolhas prioritárias para receber a inoculação necessária.

É interessante observar que o Brasil é considerado um país exemplar e que cumpre zelosamente pela cobertura vacinal, embora nos últimos três anos não tenha atingido a meta almejada em suas campanhas em razão provavelmente de movimento antivacinal, que vem prosperando a cada ano e não encontra qualquer amparo científico de malefício comprovado e muito menos a adesão da Organização Mundial da Saúde.

Pois bem. É justamente neste espaço que as clínicas particulares de vacinação esboçaram a pretensão de realizar conjuntamente a cobertura vacinal. Um ponto deve ser considerado e não admite qualquer negociação: a legitimidade para estabelecer as regras e obrigatoriedade de imunização é exclusiva do Estado. Daí que as clínicas não são concorrentes e nem exercem funções substitutivas, aliás, como ocorre no cotidiano vacinal que abre espaço para as duas frentes. O que não se admite - e fere frontalmente os princípios fundamentais da cidadania - é a iniciativa privada antecipar-se à ação estatal, frustrar as prioridades consensuais adotadas e atender preferencialmente o público que tiver condições de arcar com o custo da vacina, demonstrando, desta forma, uma quebra ao princípio da diferenciação positiva.

Se o próprio Estado concorda com a ação subsidiária e adesiva das clínicas particulares, e se houver autorização da ANVISA para importação e homologação do registro, não há como obstar que os particulares desenvolvam paralelamente seu comércio, desde que obedecida a ordem preferencial estatal. Em tempo de pandemia em que a vacina se apresenta como o único recurso para combater o vírus e o Estado ainda está desenhando sua estratégia de pronta atuação, nada mais justo do que aceitar a colaboração de terceira entidade para fazer o quanto antes a cobertura total de vacinação do povo brasileiro. Trata-se de um verdadeiro estado de necessidade.

__________

1 Procura de vacinas por clínicas privadas causa temor de prejuízos à rede pública.

2 Em reunião da OMS, países defendem vacina contra covid-19 para todos.