Encargo legal na falência e o bônus aos advogados públicos
terça-feira, 25 de março de 2025
Atualizado em 24 de março de 2025 14:55
O portal UOL, do dia 11/3/25, trouxe matéria relativa à remuneração de advogados públicos, com afirmativa de que recebem acima do teto constitucional, cujo título é: "União deixou de arrecadar R$ 11 bi para pagar bônus a advogados públicos". Não é nosso propósito, nem cabe nesta coluna, discutir a remuneração de advogados públicos nem a expressão financeira dessa remuneração.
Ocorre que um dos tópicos referidos na matéria diz respeito ao chamado encargo legal, tema que há muito tempo desafia a jurisprudência, por corresponder a uma cobrança antiga e controvertida. Foi instituído em 1969.
Atualmente, a maior parte dos tributos enquadram-se no chamado lançamento por homologação. É o próprio contribuinte que declara (e para declarar tem custos, evidentemente) o quanto deve ao Fisco federal. Caso não efetue o pagamento, o Fisco vai promover a inscrição na dívida ativa do crédito que não recebeu. Por esse ato cobra o porcentual de 20% do tributo devido. A justificativa é (ou era) a seguinte. Essa verba deve cobrir as despesas administrativas suportadas pelo credor para a inscrição na dívida ativa e demais providências administrativas.
Pois bem. Numa coluna sobre insolvência, o tema tem de estar a ela relacionada evidentemente. É aí que aparece a necessária pertinência, pois o encargo legal já foi objeto de apreciação pelo STJ a em discussão acerca da classificação do crédito no âmbito da falência. A notícia do UOL sobre o destino do dinheiro justifica que se volte ao tema.
No julgamento do recurso repetitivo 1.525.388, de 12/12/18, a 1ª Seção do STJ decidiu que "O encargo do DL 1.025/1969 tem as mesmas preferências do crédito tributário, devendo, por isso, ser classificado, na falência, na ordem estabelecida pelo art. 83, III, da lei 11.101/2005". A decisão não foi unânime.
O relator originário e vencido, ministro Sergio Kukina, entendeu que se tratava de penalidade administrativa e, por isso, classificou o crédito como subquirografário, a ser incluído na classe do artigo 83, VII, da lei 11.101/2005.
A ministra Regina Helena Costa, em voto-vista, após expor a evolução legislativa do encargo legal e examinar a doutrina e a jurisprudência do STJ acerca da matéria, concluiu que o encargo legal tem natureza de honorários advocatícios: "Fixada a premissa quanto à natureza de honorários advocatícios sucumbenciais do encargo legal, verifica-se que a verba deve ser enquadrada no art. 83, I, da lei 11.101/2005, nivelada com os créditos de natureza trabalhista, submetendo-se, contudo, ao limite de 150 salários mínimos".
Já o ministro Napoleão Nunes Maia Filho observou que "O encargo engloba os honorários de sucumbência, tanto que passou a ser destinado, em grande parte, à remuneração dos advogados públicos federais", invocando o art. 30 da lei 13.327/16. Concluiu, porém, e paradoxalmente, que se trata de crédito quirografário.
A disparidade de entendimento, sob a ótica da falência, é brutal, pois vai do enquadramento na classe I até o enquadramento na classe VII, passando pelas classes III e VI.
Prevaleceu nesse julgamento o voto-vista do ministro Gurgel de Faria, que afirmou o seguinte: "Portanto, o encargo do DL 1.025/1969 é crédito não tributário destinado à recomposição das despesas necessárias à arrecadação, à modernização e ao custeio de diversas outras (despesas) pertinentes à atuação judicial da Fazenda Nacional" (sem grifo no original).
Todavia, logo em seguida, o voto propõe: "Não obstante, considero ser adequado o seu enquadramento no inciso III do art. 83 da atual lei de falências". Essa conclusão é manifestamente contraditória com a conclusão de que tal verba não tem natureza tributária, tal como consignado no voto do eminente Ministro Gurgel de Faria.
Para justificar a inclusão na classe do inciso III do artigo 83 da lei 11.101/2005, o voto vencedor fez uso do disposto no artigo 4º, §4º, da lei 6.830/1980, que é a lei de execuções fiscais: "Aplica-se à Dívida Ativa da Fazenda Pública de natureza não tributária o disposto nos arts. 186 e 188 a 192 do Código Tributário Nacional". A conclusão do voto é a seguinte: "Assim, se o encargo do mencionado decreto-lei tem natureza não tributária (lei 7.711/1988), compõe a dívida ativa da Fazenda Nacional (art. 2º,§§ 2º, 5º, II, da lei 6.830/1980) e tem as mesmas preferências do crédito tributário, por força da autorização contida no art. 4º, §4º, da lei 6.830/1980, pode-se concluir pelo seu enquadramento, por equiparação, no inciso III do art. 83 da lei 11.101/2005".
Houve ainda declaração de voto da ministra Assusete Magalhães, para quem o "encargo legal possui natureza sui generis" e do ministro Benedito Gonçalves, que acompanhou o ministro Gurgel de Faria sem apresentar argumentação distinta.
O fundamento central do voto vencedor reside em uma equiparação contida na lei de execuções fiscais. Esse é o ponto crítico e criticável do voto do vencedor.
Entende-se a preocupação do legislador de 1980, pois poder-se-ia questionar a cobrança da dívida ativa não tributária por meio da execução fiscal. A equiparação espanca qualquer dúvida a respeito. Por exemplo. A Fazenda Pública pode inscrever na dívida ativa crédito decorrente de indenização por danos a bem público; ou por crédito decorrente de aluguel ou mesmo de um contrato de concessão. Créditos dessa natureza podem ser cobrados por meio de execução fiscal.
Porém, ao que tudo indica, jamais poderão ser equiparados a crédito tributário.
A equiparação levada a efeito pelo STJ tem clara conotação de direito material. Ora, se a natureza jurídica do encargo legal, como diz o voto, não é tributária, a interpretação jurídica não pode chegar a tal conclusão, ainda que por equiparação; a essência perdeu para a equiparação. O que não era passou a ser; a ontologia perdeu para a ficção.
A equiparação prevista na lei 6.830/1980 é precisa ser vista cum grano salis, pois, se assim não fosse, todos os demais créditos não tributários inscritos em dívida ativa (e são muitos) seriam, ipso facto, considerados créditos tributários. Isso não faz sentido, uma vez que o instrumento - o processo de execução fiscal - não pode transformar a natureza do direito material.
Não reduz a gravidade desse entendimento o fato de que essa classificação só possa valer para fins falimentares, pois tem impacto direto no caráter distributivo que assume a classificação de créditos feita pelo legislador da insolvência.
A distribuição dos credores em classes, na falência, é ato de alta expressão política, própria do Parlamento e não do Judiciário.
Reza o art. 30 da lei 13.327/16:
Os honorários advocatícios de sucumbência incluem: (Vide ADI 6053)
I - o total do produto dos honorários de sucumbência recebidos nas ações judiciais em que forem parte a União, as autarquias e as fundações públicas federais;
II - até 75% do produto do encargo legal acrescido aos débitos inscritos na dívida ativa da União, previsto no art. 1º do decreto-lei 1.025, de 21/10/1969;
III - o total do produto do encargo legal acrescido aos créditos das autarquias e das fundações públicas federais inscritos na dívida ativa da União, nos termos do § 1º do art. 37-A da lei 10.522, de 19/7/2002.
Parágrafo único. O recolhimento dos valores mencionados nos incisos do caput será realizado por meio de documentos de arrecadação oficiais.
Parece que essa lei "não pegou", pois a inclusão do encargo legal como integrante da verba honorária foi desprezada.
Ocorre que, agora, o UOL notícia que a verba está sendo carreada para os advogados públicos, com base na lei aprovada pelo Parlamento e de constitucionalidade reconhecida pelo STF (ADIn 6053, voto vencedor do ministro Alexandre de Moraes).
É difícil imaginar que uma determinada verba paga pelo contribuinte como tributo seja carreada diretamente ao bolso do advogado público.
O assunto merece ser revisitado pelo STJ, pois o enquadramento da totalidade dessa verba na classe III não é, em primeiro lugar, condizente com a sua natureza, e, em segundo lugar, não é condizente com a equiparação ficcional a que se procedeu.
Como o dinheiro é diretamente direcionado ao advogado público, é correto que seja classificado como crédito de honorários advocatícios. Não há razão para chamar de tributo o que não é arrecadado pelo Tesouro Nacional para fins de suportar as despesas gerais da nação.
Na notícia do UOL, há referência a uma entidade, o Conselho Curador dos Honorários Advocatícios, criado pelo art. 33 da lei 13327, e à AGU, que dizem "que os recursos são privados". De fato, os recursos são privados, e é justamente por isso que a sua classificação na falência deve ser alterada.
Se o Conselho Curador dos Honorários Advocatícios recebesse verba do Estado, a verba decorreria de tributo; como recebe recursos privados, a classificação só pode ser a de honorários advocatícios.
Bem ou mal foi reconhecida a constitucionalidade da norma. Então, que, ao menos, seja ela cumprida. A consequência no âmbito da falência é a seguinte: a quantia a título de encargo legal, no limite de 75%, deve ser classificada como crédito de honorários, na classe I do art. 83, observado o teto de 150 salários-mínimos. Os 25% remanescentes devem ser classificados como crédito tributário. E a parte dos honorários que suplantar a importância de 150 salários mínimos vai para a classe dos quirografários (art. 83,VI, "c").
A notícia do UOL mostra o destino do dinheiro do encargo legal, e confirma que a classificação do crédito, tal como fixada pelo STJ, não está correta, com todo o respeito.
O voto vencido da ministra Regina Helena Costa é aquele aplica corretamente a lei, enquanto o voto vencedor precisou fazer uma equiparação inadequada, com o máximo respeito.
O objetivo desta coluna é a de tentar mostrar o que parece ser um problema na classificação de crédito na falência e suscitar debate a respeito.