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Necessidade de independência da negociação antecedente

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Atualizado em 2 de dezembro de 2024 14:26

Com a reforma da lei 11.101/05 pela lei 14.112/20, houve uma profunda modernização do sistema de insolvência brasileiro, através da incorporação de inúmeros entendimentos jurisprudenciais (como exemplos, temos a prorrogação do stay period, competência do juízo recuperacional para deliberar sobre a essencialidade de bens da recuperanda), bem como da inclusão de diversas regras voltadas a conferir maior segurança jurídica aos institutos já existentes (cito como exemplos a previsão do financiamento do devedor em recuperação judicial, a inclusão de regras sobre insolvência transnacional e a melhora nos procedimentos de venda de ativos para os processos regidos pela LRF).

Também fruto da ampla reforma introduzida pela lei 14.112/20, a inclusão da Seção II-A trouxe a previsão das conciliações e mediações antecedentes ou incidentais aos processos de recuperação judicial, tema este pensado pelo PL 1.397/20, cujo objetivo era a inserção de regras negociais antecedentes aos procedimentos da lei 11.101/05 para auxiliar as empresas em crise em razão da pandemia do COVID-19, inclusive para evitar que os agentes econômicos se valessem de medidas judiciais, as quais possuem a tendência de encarecer e burocratizar as reestruturações.

Aqui o texto legal sobre o tema:

Art. 20-A. A conciliação e a mediação deverão ser incentivadas em qualquer grau de jurisdição, inclusive no âmbito de recursos em segundo grau de jurisdição e nos Tribunais Superiores, e não implicarão a suspensão dos prazos previstos nesta lei, salvo se houver consenso entre as partes em sentido contrário ou determinação judicial.

Art. 20-B. Serão admitidas conciliações e mediações antecedentes ou incidentais aos processos de recuperação judicial, notadamente:

I - nas fases pré-processual e processual de disputas entre os sócios e acionistas de sociedade em dificuldade ou em recuperação judicial, bem como nos litígios que envolverem credores não sujeitos à recuperação judicial, nos termos dos §§ 3º e 4º do art. 49 desta Lei, ou credores extraconcursais;

II - em conflitos que envolverem concessionárias ou permissionárias de serviços públicos em recuperação judicial e órgãos reguladores ou entes públicos municipais, distritais, estaduais ou federais;

III - na hipótese de haver créditos extraconcursais contra empresas em recuperação judicial durante período de vigência de estado de calamidade pública, a fim de permitir a continuidade da prestação de serviços essenciais;

IV - na hipótese de negociação de dívidas e respectivas formas de pagamento entre a empresa em dificuldade e seus credores, em caráter antecedente ao ajuizamento de pedido de recuperação judicial.

§ 1º Na hipótese prevista no inciso IV do caput deste artigo, será facultado às empresas em dificuldade que preencham os requisitos legais para requerer recuperação judicial obter tutela de urgência cautelar, nos termos do art. 305 e seguintes da lei 13.105, de 16/3/15 (CPC), a fim de que sejam suspensas as execuções contra elas propostas pelo prazo de até 60 dias, para tentativa de composição com seus credores, em procedimento de mediação ou conciliação já instaurado perante o Cejusc - Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania do tribunal competente ou da câmara especializada, observados, no que couber, os arts. 16 e 17 da lei 13.140, de 26/6/15.

§ 2º São vedadas a conciliação e a mediação sobre a natureza jurídica e a classificação de créditos, bem como sobre critérios de votação em assembleia-geral de credores.

§ 3º Se houver pedido de recuperação judicial ou extrajudicial, observados os critérios desta Lei, o período de suspensão previsto no § 1º deste artigo será deduzido do período de suspensão previsto no art. 6º desta lei.  

Atualmente, alguns doutrinadores e julgados têm vinculado a existência da negociação antecedente a um futuro processo de recuperação judicial. Mesmo sem discorrer exaustivamente sobre o tema, correlacionam a aplicação do art. 20-B e seu parágrafo 1º à propositura de uma recuperação judicial futura, conferindo à tutela cautelar de urgência uma natureza antecedente (justamente porque atrelada ao processo principal de recuperação judicial) e restringindo seus efeitos somente a eventuais créditos sujeitos à recuperação judicial.

Respeitado tal posicionamento, creio que ele não se coaduna com a tendência moderna de sistemas de insolvência mais desenvolvidos nos quais sejam priorizadas efetivas negociações entre os devedores e seus credores.

Não posso negar que o texto da lei é ruim e conduz a essa interpretação mais restritiva do instituto, pois o parágrafo primeiro faz menção expressa ao inciso IV, que em seu conteúdo faz expressa menção ao "caráter antecedente ao ajuizamento da recuperação judicial" (assim como o próprio caput do art. 20-B, embora depois os seus incisos tragam ampla e exemplificativa lista de situações nas quais as negociações podem ocorrer).

Mas isso, por si só, não justifica tal interpretação. Sabemos como é difícil a democrática composição de interesses dentro do Congresso Nacional, do que se extrai, muitas vezes, textos legais não dotados do tecnicismo necessário para expressar corretamente o instituto jurídico que se pretendeu introduzir no ordenamento.

Por isso mesmo a jurisprudência possui papel fundamental em conformar a interpretação dos textos legislativos, a fim de que seu alcance possa gozar da efetividade necessária ao bem-estar social. Um dos maiores exemplos que posso mencionar é a construção jurisprudencial sobre a prorrogabilidade do prazo do stay period antes da reforma introduzida pela lei 14.112/20.

Ora, se os incisos do art. 20-B trazem situações distintas e exemplificativas e o art. 20-A incentiva a conciliação e a mediação, não haveria problemas em se interpretar o dispositivo da negociação antecedente de maneira mais ampla, a fim de que o ambiente de negociação fosse realmente estimulado.

Também é importante considerar (e as doutrinas, textos e julgados não discorrem sobre o assunto) que já há medida própria de antecipação dos efeitos da recuperação judicial no art. 6º, parágrafo 12, da lei 11.101/05, não havendo sentido em se pensar que existam dois dispositivos distintos na mesma lei para a mesma finalidade.

O próprio parágrafo 1º do art. 20-B não menciona que a cautelar nele prevista seja de caráter antecedente a um processo principal (como se fosse de natureza processual) ou condiciona a sua eficácia ao ajuizamento da recuperação judicial. Quando a lei menciona o termo "antecedente", assim o faz apenas para deixar claro que negociações podem e devem ser buscadas para a composição entre o devedor e o credor.

Neste particular, conferir ao termo "antecedente" a natureza processual que encontra semelhante menção no CPC é desvirtuar a aplicação do art. 189 da lei 11.101/05, que possui regras de direito material e processual próprias, com dinâmica diversa de nossa legislação processual civil, que somente entra em campo quando houver lacuna e com respeito á dinâmica própria da lei das empresas em crise.

Tanto assim o é que no parágrafo 3º do art.20-B, traz a possibilidade de haver um pedido de recuperação judicial ou extrajudicial, mas sem qualquer obrigatoriedade, justamente por se utilizar da conjunção "se" e não "quando". Logo, não é correto se considerar que a medida cautelar do art. 20-B possui natureza antecedente à uma futura recuperação judicial ou extrajudicial.

Mas o que me motiva a discordar frontalmente dos posicionamentos adotados é o caráter econômico dos processos de negociação e reestruturação, que jamais podem ficar subordinados a discussões de termos e conceitos jurídicos, sob pena de real inefetividade dos instrumentos existentes para o soerguimento de agentes econômicos.

A suspensão de medidas judiciais adotadas pelos credores contra os devedores é regra basilar de qualquer negociação que possa existir entre eles. Os standstill agreements revelam-se como verdadeiros pressupostos para que uma saída negocial possa ser engendrada, pois todos nós sabemos que basta a adoção de uma medida individual de satisfação de crédito contra o patrimônio do devedor para que todos os demais participem dessa "corrida", tornando quase impossível uma composição ordenada que permita a discussão séria e eficaz sobre uma reestruturação do agente econômico.

A tendência moderna do direito de insolvência em nível mundial é a de estímulo às negociações entre credores e devedores, se possível fora das cortes, conferindo maior agilidade, discrição, menor burocracia e redução nos custos na construção da solução negociada que atenda a manutenção do agente econômico, a preservação do valor agregado dos seus ativos que continuam a servir a empresa em funcionamento (valor de going concern) e a recuperação dos créditos investidos.

No "statement of principles for a global approach to multi-creditor workouts ii" da INSOL, há previsão de princípios voltados à recomendação de posturas nas negociações entre devedor e seus credores, dentre os quais, cito os seguintes:

  • FIRST PRINCIPLE: Where a debtor is found to be in financial difficulties, all relevant creditors should be prepared to co-operate with each other to give sufficient (though limited) time (a "Standstill Period") to the debtor for information about the debtor to be obtained and evaluated and for proposals for resolving the debtor's financial difficulties to be formulated and assessed, unless such a course is inappropriate in a particular case.
  • SECOND PRINCIPLE: During the Standstill Period, all relevant creditors should agree to refrain from taking any steps to enforce their claims against or (otherwise than by disposal of their debt to a third party) to reduce their exposure to the debtor but are entitled to expect that during the Standstill Period their position relative to other creditors and each other will not be prejudiced. Conflicts of interest in the creditor group should be identified early and dealt with appropriately.
  • THIRD PRINCIPLE: During the Standstill Period, the debtor should not take any action which might adversely affect the prospective return to relevant creditors (either collectively or individually) as compared with the position at the Standstill Commencement Date.

Como pode ser percebido, deve haver apropriado estímulo para que negociações entre o devedor e seus credores possam ser realizadas, de modo a se evitar procedimentos da lei 11.101/05 ou, ao menos, que eles venham mais bem estruturados para diminuir o tempo do processo e dos custos a ele inerentes.

Assim, justifica-se a independência da negociação antecedente, desvinculando-a de uma recuperação judicial ou extrajudicial futura, as quais somente devem ocorrer se forem os instrumentos mais apropriados para a continuidade da reestruturação do agente econômico.

Mas a sua independência não significa que o juízo deva se abster de verificar a presença dos requisitos da concessão da tutela de urgência.

Quando o devedor não consegue a negociação por seus próprios meios e, a partir de então, recorre ao Poder Judiciário e à tutela de urgência do art. 20-B, devemos compreender que é de sua responsabilidade a escolha efetuada, bem como é seu o ônus material, processual e negocial da reestruturação desejada.

Não podemos esquecer que a utilização dos institutos da lei 11.101/05 pode ocasionar a impressão de que a empresa está em dificuldades, sem que se tenha dimensão da extensão de sua crise, de modo que a informação sobre o manejo da negociação antecedente pode gerar uma especulação de uma situação de insolvência do devedor.1

É evidente que todas as implicações causadas pela informação (ou especulação) de que a sociedade empresária está em situação de insolvência geram impactos de ordem econômica, financeira e mesmo laboral. O devedor pode passar a ter dificuldades em receber de volta seus empréstimos por uma série de empecilhos criados por seus devedores, bem como pode afastar futuros compradores que poderiam subsidiar sua restruturação, isso se mencionar que os empregados poderiam ficar menos empenhados em desenvolver o seu trabalho.

Logo, esse contexto deve ser bem avaliado pelo empresário, quando ele formula o pedido de concessão da tutela de urgência de suspensão de medidas contra seu patrimônio, para fins de negociação com seus credores.

Além disso, até para se evitar o mau uso do instituto, seria recomendável que houvesse demonstração de eventual resistência de um ou mais credores na busca de uma negociação com o devedor e que essa resistência tivesse ao menos a aparência de ser injustificada, já que em se tratando de tutela cautelar, análise judicial deve ser perfunctória pela urgência da situação e, porque o período de suspensão é exíguo, não traduzindo qualquer irreversibilidade para o credor que estará paralisado no prazo de 60 dias.

Em todo caso, não é recomendável exigir-se a documentação necessária para o ajuizamento do pedido da recuperação judicial, seja porque ausente previsão legal, seja porque a negociação antecedente deve ser desvinculada de um procedimento futuro, seja para que se facilite a instauração de um ambiente de negociação no caso concreto.

Como bem salientam Daniel Carnio Costa e Alexandre Nasser de Melo2:

O deferimento dessa tutela de urgência cautelar pressupõe a demonstração, pela devedora, de elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo (art. 300 do CPC). O perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo é presumido in re ipsa, na medida em que a suspensão das execuções daqueles que estão envolvidos na mediação ou conciliação é absolutamente necessária para a criação de um ambiente saudável e eficiente de negociação. A probabilidade do direito consiste na apresentação dos documentos relacionados no art. 48, que comprovam que a devedora tem direito de pedir recuperação judicial. Não é necessária a apresentação dos documentos do art. 51, uma vez que não se trata de distribuição de um pedido de recuperação judicial, mas apenas dessa medida cautelar. Os documentos sensíveis da empresa, relacionados ao seu funcionamento, poderão ser mostrados aos credores envolvidos na negociação, caso necessário, mediante proteção do sigilo próprio das mediações.

A exigência de documentação mínima para postular a tutela de urgência relaciona-se à seriedade da empresa que a postula, no seu regular funcionamento no mercado e não atrelá-la, inexoravelmente, a uma recuperação judicial futura.

É muito comum que os institutos da lei 11.101/05 (negociação antecedente, recuperação judicial, recuperação extrajudicial e falência) se valham uns dos outros para regulação de determinadas situações, a fim de que o sistema de insolvência possa ter coerência, na medida da ontologia de cada um deles.

Todavia, jamais tais institutos podem ser confundidos e imiscuídas as dinâmicas próprias de cada qual, sob pena de subversão do sistemas em detrimento de sua eficiência.

No caso da negociação antecedente, prosseguem os autores acima citados3:

Por outro lado, a existência de um procedimento simplificado, desburocratizado e flexível, possibilitará a reestruturação da empresa em crise em momento precoce e sem os riscos, os custos e os danos de imagem que afugentam muitas das empresas do uso da recuperação judicial ou mesmo da extrajudicial.

(...)

O objetivo da medida cautelar de suspensão das execuções é proporcionar um espaço de respiro e um ambiente mais adequado de negociação da devedora com seus credores. Na medida em que credores sujeitos à negociação não podem prosseguir nas suas execuções individuais, cria-se o estímulo necessário para que se sentem à mesa para negociar com a devedora. Nesse sentido, é importante esclarecer que a suspensão das execuções só faz sentido em relação àqueles credores envolvidos na mediação ou conciliação, não atingindo os demais credores que não tenham sido convidados a participar do procedimento de negociação.

Indo mais adiante, pelo fato da negociação antecedente não estar atrelada a uma necessária recuperação judicial futura e ser um instituto dela independente, pela necessidade de se estabelecer um ambiente adequado para que negociações possam ocorrer e pela própria previsão legal de possibilidade de negociação de créditos extraconcursais, qualquer credor pode ser incluído no procedimento, pois, como já dito anteriormente, o exíguo prazo de 60 dias não impõe reflexos irreversíveis ao credor ou ao manejo futuro de sua garantia.

O sistema de insolvência brasileiro deve sempre se atentar para o equilíbrio entre o direito da empresa em demonstrar que pode buscar sua recuperação e o direito dos credores de reaverem da maneira mais efetiva possível o crédito investido na empresa.

A natureza preponderantemente econômica da lei 11.101/05 reclama que os aplicadores do direito possuam a sensibilidade necessária para a compreensão desse aspecto, mediante uma mudança cultural que envolva menor intervenção estatal e afaste a busca exclusiva de soluções através de discussões jurídicas que passem ao largo do racional econômico envolvido.

A atuação interpretação restritiva do instituto da negociação antecedente deve ceder em prol da atuação jurisdicional e acadêmica que prestigie a instauração do ambiente de negociação e a construção multifacetada de uma solução de composição entre o devedor e seus credores.

_________

1 Sobre o tema do timing acerca da utilização de institutos da insolvência: JACKSON, Thomas H. The Logic and Limits of Bankruptcy Law. Washington: BeardBooks, 2001, p. 203/208.

2 COSTA, Daniel Carnio e MELO, Alexandre Nasser. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. 3ª edição revista e atualizada. Curitiba. Juruá. 2022. Página 148.

3 Op. Cit., páginas 149 e 150.