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Recuperação judicial e fraude

terça-feira, 11 de julho de 2023

Atualizado às 09:13

A fraude é a eterna inimiga do direito. Superada a fase da execução sobre a pessoa do devedor (iniciada aproximadamente 326 anos antes de Cristo), passou o patrimônio a ser o responsável pelas dívidas. O ser humano, entretanto, logo caiu na tentação de subtrair elementos do patrimônio aptos a suportar a cobrança dos credores. O Digesto contém diversos relatos de comportamentos em que o devedor procura diminuir o seu patrimônio, como a renúncia a direitos, extinção de garantias, abandono de coisa, entre outros1.

Naturalmente, o direito reage, como pode, à fraude, com a criação de tipos jurídicos para tanto. O mais conhecido, certamente, é a ação pauliana, a fraude contra credores; além da pauliana, temos a fraude à execução e a fraude à lei. A simulação envolve fraude, que pode ser praticada de muitas maneiras, mais ou menos engendradas, mas sempre com a audácia do fraudador.

Nas pessoas jurídicas, o contrato pode ser e é o principal instrumento de fraude; a contabilidade pode auxiliar na formação de contratos, e, por isso, ela também pode ser objeto de fraude. Exposição de motivos do código comercial de 1850 lamentava que "a impossibilidade de extremar por uma maneira precisa o comerciante falido de boa-fé do falido fraudulento, faz a dificuldade desta matéria".

Registro alguns casos antigos. Grosseira foi a fraude de uma empresa falida (Gallus) que havia criado demonstrações financeiras completamente destoantes dos documentos contábeis, sem registro no livro diário, e as publicou no extinto jornal Gazeta Mercantil. Essa empresa captava dinheiro junto ao público. E o sócio dessa empresa ainda foi considerado o empresário do ano por esse mesmo jornal.

Outro empresário laureado pela mídia era sócio de empresa cujas demonstrações financeiras estavam recheadas de falsidades. Trata-se do caso Boi Gordo. Entre tantos outros problemas, a empresa falida emprestou dinheiro para a empresa coligada. O empréstimo foi pago por meio de dação em pagamento. Posteriormente, a falida comprou e pagou os mesmos imóveis que já eram de sua propriedade. Enquanto isso, o contrato de mútuo continuava no balanço, distorcendo os resultados da companhia.

No caso do Banco Santos S/A. a fraude partiu do mercado financeiro. Vários mecanismos fraudulentos foram criados dentro da instituição financeira. Um deles dizia respeito a contabilização de despesas em nome de outras empresas (empresas de papel, diga-se), e, com isso, nas palavras da administração, "se essas despesas fossem lançadas no balanço do banco (...) teríamos, com certeza, um péssimo índice de eficiência". Embora de capital fechado, o banco captava dinheiro do público, a quem enganava, enganando também a autoridade monetária.

Não há limites para a fraude a não ser a imaginação humana e o desejo de proceder de má-fé. A fraude acompanha a história do homem. Carvalho de Mendonça, no final do século XIX, já reclamava de "balanço rico em cifras e pobre de verdade". Warren Buffet, no último relatório de sua célebre companhia, afirmou sobre manipulação contábil:  "Essa atividade é nojenta. Não é necessário nenhum talento para manipular números: é preciso apenas um profundo desejo de enganar. A "contabilidade criativa ousada", como um CEO certa vez me descreveu, tornou-se uma das vergonhas do capitalismo"2.

Não basta, é importante dizer, a mera alegação de fraude; não basta a mera suspeita de fraude. Suspeitar é conjecturar (Antonio de Moraes Silva), e esse ato unilateral não é suficiente para que se possa falar em fraude. O Código de Processo Penal exige a fundada suspeita para a prática de certos atos pela autoridade policial. Para o Supremo Tribunal Federal, a fundada suspeita do artigo 244 do CPP "não pode fundar-se em parâmetros unicamente subjetivos"3. O Superior Tribunal de Justiça, de igual modo, decide que: "Exige-se, em termos de standard probatório para busca pessoal ou veicular sem mandado judicial, a existência de fundada suspeita (justa causa) - baseada em um juízo de probabilidade, descrita com a maior precisão possível, aferida de modo objetivo e devidamente justificada pelos indícios e circunstâncias do caso concreto - de que o indivíduo esteja na posse de drogas, armas ou de outros objetos ou papéis que constituam corpo de delito, evidenciando-se a urgência de se executar a diligência"4. Indícios são objetividades, e eles são necessários para que providências relativas à repressão à fraude sejam encetadas; a mera suspeita não satisfaz, minimamente, o padrão exigido pelo artigo 300 do CPC.

Cabe ao juiz, a um só tempo, ser severo com as fraudes e prudente com a violência verbal de quem alega fraude, seja autor ou réu. Certa vez ouvi alguém dizer que "sinto cheiro de fraude", o que não quer dizer rigorosamente nada. É preciso sempre descer aos fatos; não basta gritar fraude em primeiro lugar, e gritar mais alto. A fraude é um problema técnico-jurídico, ainda que a moral seja também considerada por certo setor da teoria do direito. No campo da ética, diz-se que "quando a boa-fé não está presente, a promessa perde o seu papel de constituir relevantes obrigações morais. Se a intenção do promitente em comprometer-se não é manter a promessa, mas obter lucro unilateral pela quebra da promessa, o conceito que descreve o ato é fraude"5.

O magistrado (que acessa o google e pela pesquisa se influencia) também deve ter cuidado com a mídia, pois os assessores de imprensa (importantes), a serviço do credor ou do devedor, trabalham, no Brasil e no exterior, e com muita habilidade e sutileza.

A lei 11.101/05 reprime, no campo criminal, a fraude praticada pelos administradores da empresa cujo plano de recuperação foi aprovado, pois o artigo 168, que contém o tipo da fraude a credores, alcança a figura da recuperação judicial. Segundo o artigo 180, a decisão de concessão da recuperação judicial é condição objetiva de punibilidade.

No campo penal, portanto, a responsabilidade é a posteriori ao debate entre os credores e o devedor, e posterior à aprovação do plano de recuperação, pois sem a concessão da recuperação judicial não nasce o direito de o Estado proceder ao devido processo penal.

A responsabilidade penal é importante; porém, não é ela o centro da atenção desta breve coluna, que não tem a finalidade de proceder a uma sistematização do assunto nem de esgotar tema tão difícil. Enquanto, na falência, o tema esteja mais assentado, com os institutos da ineficácia objetiva e da ação revocatória, além da ação do artigo 82 da lei 11.101/05, na recuperação judicial o assunto ainda está em elaboração.

A disciplina legal é escassa. Uma previsão relevante é a do artigo 64 da lei 11.101/056.

Diz a lei que o devedor ou seus administradores serão mantidos na condução da atividade empresarial. Quem conduz a atividade empresarial são os administradores, eleitos pelos sócios. A doutrina identifica na palavra devedor, contida no caput do artigo 64, o acionista controlador, que, portanto, ficaria compreendido na cláusula salvo se qualquer deles, contida no dispositivo, isto é, ele pode ter suspenso o seu poder sobre a companhia.

Enquanto o parágrafo único do artigo 64 diz que o administrador será substituído na forma prevista nos atos constitutivos do devedor, ou do plano de recuperação judicial, o artigo 65 diz que o devedor (o acionista controlador, segundo certo setor da doutrina) será afastado pelo juiz, que convocará assembleia de credores para deliberar sobre o nome do gestor judicial.

Essa interpretação doutrinária, que enxerga no devedor do artigo 64 a pessoa do acionista controlador, não é unânime, é importante enfatizar isso.

Pois bem. Os administradores da sociedade empresária são mantidos à frente do negócio. A manutenção do administrador pode ser boa ou não. A vantagem da manutenção reside no conhecimento da operação. A substituição de todos os administradores poderia representar um grande custo de aprendizado. A manutenção, por outro lado, pode ter a desvantagem de manter pessoas com eventuais vícios que levaram à crise da empresa.

Há previsão de afastamento dos administradores por fraude contra os interesses dos credores, conforme preceitua o inciso III do artigo 64 da lei 11.101/05. A fraude referida no dispositivo pode ter sido praticada antes da distribuição do processo de recuperação judicial ou na sua pendência. Essa fraude contra os interesses dos credores não é a mesma fraude contra credores prevista no Código Civil; ela diz respeito a qualquer espécie de fraude detrimentosa dos credores e da companhia, e não à ação pauliana, especificamente. Embora as hipóteses do artigo 64 não tenham caráter exemplificativo, cada hipótese nele arrolada por receber interpretação extensiva.

Trata-se de repressão à fraude e ao fraudador; reprime-se o causador do ilícito antes da aprovação do plano de recuperação judicial, o que pode ser uma vantagem para os credores, pois afasta o mau administrador dos negócios.

Essa previsão normativa, todavia, embora possa ter a sua utilidade, pois, em tese, estanca a fraude praticada na pendência do processo ou reprime a fraude antes praticada, não repercute na esfera patrimonial.

Esse parece ser o ponto decisivo, pois o dano causado pela fraude não é recomposto com a substituição do administrador. É completamente omissa a lei 11.101/05 sobre a recomposição patrimonial da entidade em recuperação judicial.

Claro que o problema da fraude não envolve apenas o dano causado à própria empresa em recuperação judicial, como o desvio de bens, por exemplo. Pode ocorrer de terceiros terem experimentado prejuízo em razão de fraude praticada por meio da pessoa jurídica em recuperação judicial. Também nessa hipótese a lei 11.101/05 é omissa.

Nesta coluna identifico a omissão normativa, seja para a defesa do patrimônio da empresa em recuperação e que foi vítima de fraude, seja para a defesa do patrimônio de terceiros, que foi vítima de fraude por parte da pessoa jurídica em recuperação judicial.

Ao falar em omissão normativa, não ignoro o uso da desconsideração da personalidade jurídica no processo de recuperação judicial, nem o uso da perícia prévia com a finalidade de averiguar fraude7.

Talvez uma das primeiras decisões a fazer uso da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito da recuperação judicial tenha sido o AI 2043438-91.2013.8.26.0000, da 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ/SP, com relatoria do saudoso Desembargador Araldo Telles. Os bens de uma empresa eram levados a leilões em processos expropriatórios, incluindo execução fiscal; participava do leilão, e arrematava o bem, uma empresa cujos recursos provinham da empresa expropriada, e cujos sócios eram os mesmos. A fraude estava bem comprovada, e os bens estavam na posse da devedora.

Entendeu o TJ/SP que os problemas de ordem processual suscitados pela recorrente não mereciam acolhimento, pois a decisão de primeiro grau não declarou a nulidade dos atos de arrematação, limitando-se a declarar a confusão patrimonial.

Essa decisão, é importante acentuar, não trouxe terceiros ao polo ativo do processo de recuperação judicial; essa decisão não formou litisconsórcio necessário no polo ativo, não criou a consolidação processual, muito menos a consolidação substancial. Ela limitou-se a dizer que é possível reconhecer que certos ativos, desviados da empresa em recuperação, podem ser declarados como sendo de sua propriedade em razão da confusão patrimonial.

O juízo da recuperação pode decidir sobre o patrimônio da empresa em recuperação, ainda que sob a ótica da desconsideração da personalidade jurídica, como o fez a decisão referida, que, diante das circunstâncias do caso, teve o condão de reconstituir o patrimônio da empresa em recuperação. A repercussão dessa consequência no plano de recuperação judicial é clara, seja no plano a ser ainda apreciado pelos credores, seja em plano já apreciado e aprovado, mercê da possibilidade de aditamento ao plano de recuperação, e, agora, com a apresentação de plano pelos próprios credores.

Assunto bem distinto é decidir sobre responsabilidade civil patrimonial de terceiros, como administradores e sócios. Existem importantes limites cognitivos no processo de recuperação judicial que não admitem tão larga discussão. Por isso, a discussão de tais temas vão para as vias ordinárias. Nem o arco procedimental do processo de recuperação judicial permite tal discussão, nem o juízo é competente para tanto. Por mais que a fraude seja escancarada, e provada in limine, a discussão depende da instauração de ação própria, no foro competente.

O processo de recuperação judicial sem alegação de fraude, de ordinário, já é atribulado, e inserir a discussão sobre fraude dificultaria muito mais o encontro de uma solução para a dívida da empresa. É frequente e legítima a opção legislativa, em processos judiciais, pela celeridade, cortando o âmbito de cognição sobre determinadas matérias, para agilizar a solução da controvérsia. Isso nada tem de inconstitucional, e representa uma perfeita opção do legislador.

Embora ciente de que a fraude tem de ser reprimida, a lei limitou-se a disciplinar a reestruturação do passivo. Com isso, pretendeu agilizar a solução da dívida que aperta o devedor.

Por certo, a jurisprudência terá de estabelecer a discriminação sobre os assuntos de fraude que podem ser examinados pelo juiz do processo de recuperação e aqueles que serão remetidos às vias ordinárias. A fraude endoprocessual, interna ao processo de recuperação, não pode ser admitida em hipótese alguma, e a competência do juiz do processo é funcional e absoluta para decidir assunto dessa natureza, que pode minar a credibilidade do processo.

A lei norte americana permite a anulação do plano de recuperação obtido mediante fraude, e permite a conversão em falência ou a rejeição do processo se ele foi apresentado sem observância da boa-fé. No mês de janeiro de 2023, a Corte de Apelação do Terceiro Circuito rejeitou o processo de uma empresa criada para ir à recuperação judicial com os passivos decorrentes de demandas judiciais (demandas por danos decorrentes de uso de talco fabricado pela Johnson & Johnson). Consta da conclusão: "Our decision dismisses the bankruptcy filing of a company created to file for bankruptcy". Fruto de operações societárias, a Corte considerou que a empresa que ajuizou o processo de reorganização não estava em situação de "financial distress". A crise financeira é um elemento da boa-fé, entendeu a decisão.

Noutro caso, a Suprema Corte (Bartenwerfer v. Buckley), no final do mês de fevereiro de 2023, reconheceu fraude para rejeitar a extinção da dívida (discharge). Um casal reformou uma casa para vendê-la; o marido cuidou do projeto, e a mulher não se envolveu na obra. Para a venda, declararam, ambos, que a casa estava em boas condições. Porém, tinha defeitos, que levaram o comprador a ajuizar e vencer demanda de indenização. Os vendedores, então, pediram a autofalência, e pretendiam a extinção das obrigações. Discutiu-se a situação da mulher, se ela sabia ou devia saber da fraude que teria sido praticada pelo marido para fins de extinguir suas obrigações; se a fraude praticada por um poderia ser imputada a outro integrante da partnership. A decisão invoca o seguinte precedente: "In Strang v. Bradner, 114 U. S. 555, the Court held that the fraud of one partner should be imputed to the other partners, who "received and appropri­ated the fruits of the fraudulent conduct.". Importa como o dinheiro foi obtido e distribuído, não quem cometeu o ato material da fraude. 

A corte de falências reconheceu a fraude da esposa porque ela formava uma partnership com o marido no negócio envolvendo a reforma da casa para venda. A responsabilidade pela fraude não é exclusiva do fraudador. Os frutos da fraude importam8.

Nos dois casos, um de reestruturação de dívida e outro de liquidação, parece existir uma interpretação econômica da fraude que sobreleva a atuação do agente, individualmente considerada. Na definição de um autor que estudou a insolvência sob a ótica filosófica, "está envolvido em fraude a pessoa que procura a falência (e a recuperação judicial) para melhorar sua expectativa na medida em que a insolvência parece uma alternativa mais compensadora que a solvent life"9.

Na ausência de previsão expressa na lei 11.101/05, o juiz brasileiro serve-se das normas de cobertura geral do sistema repressivo de comportamentos inadequados, ou ilícitos atípicos (Manuel Atienza), que contêm os institutos do abuso de direito, boa-fé objetiva, simulação, fraude à lei etc. Em razão da competência, o juiz da recuperação atua na verificação da legalidade do plano de recuperação, no controle do patrimônio do devedor, no controle de legitimidade dos votos oferecidos por ocasião da assembleia de credores e, por certo, no controle da legitimidade do próprio postulante da recuperação judicial e da regularidade dos credores.

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1. Vide, a propósito, João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, p. 29.

2 https://pipelinevalor.globo.com/mercado/noticia/socio-do-3g-buffett-diz-que-contabilidades-criativas-sao-nojentas-e-vergonha-do-capitalismo.ghtml. Acesso em 26/02/2023.

3 1ª Turma, HC 81.305-4, j. 13/11/2001, rel. Min. Ilmar Galvão. Do corpo do acórdão colhe-se o seguinte: "Ocorre, contudo, que a dita suspeita não pode basear-se em parâmetros unicamente subjetivos, discricionários do policial, exigindo, ao revés, elementos concretos que indiquem a necessidade da revista, mormente quando notório o constrangimento dela decorrente"

4 Sexta Turma, RHC 158.580,. j. 19/04/22, rel. Min. Rogerio Schietti Cruz.

5 Jukka Kilpi, The ethics of bankruptcy. London, Routledge, 1998, p. 107.

6 Bons comentários a esse dispositivo são apresentados por Leonardo Adriano Ribeiro Dias, Comentários à Lei de Recuperação de Empresas. Coord. Paulo Fernando Campos Salles de Toledo. São Paulo: IBR e RT, 2021, p. 439-446.

7 A perícia prévia é destinada a casos extremos, em que o Magistrado, pela documentação aportada, verifica que a empresa pode não estar em atividade. Na antiga concordata, o Ministério Público pedia a constatação nas instalações da devedora. Esse ato processual, na maior parte das vezes, é completamente desnecessário, embora possa ter alguma utilidade. Todavia, não parece ter sido concebida para averiguação de fraude, a menos que se considere fraude o fato de se pedir recuperação judicial sem exercício de atividade empresarial.

8 "The fraud of one partner, we ex­plained, is the fraud of all because "[e]ach partner was the agent and representative of the firm with reference to all business within the scope of the partnership." Ibid. And the reason for this rule was particularly easy to see because"the partners, who were not themselves guilty of wrong, re­ceived and appropriated the fruits of the fraudulent conduct of their associate in business."

9 Jukka Kilpi, ob.cit., p. 108, trad. livre.