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A novela do Fisco na Recuperação Judicial: cenas do próximo capítulo

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Atualizado às 14:13

A reforma promovida pela lei 14.112/2020 não alterou a opção legislativa em relação à exclusão dos créditos tributários do processo de recuperação judicial, nos termos do art. 187 do CTN e do art. 29 da Lei de Execução Fiscal.

Todavia, a lei 14.112/2020, ao modificar a lei 10.522/2002, dando nova redação ao art. 10-A e incluindo os arts. 10-B e 10-C, promoveu significativas e relevantes transformações na postura do Fisco no processo de recuperação judicial, ao oferecer à empresa recuperanda instrumentos para regularização do passivo fiscal em condições mais vantajosas e eficientes que a realidade legislativa anterior permitia, como o parcelamento especial e a transação tributária especial.

As alternativas de equalização do passivo fiscal criadas pela reforma têm por finalidade viabilizar - ao menos essa é a intenção do legislador - a obtenção da certidão negativa de débitos tributários ou positiva com efeitos de negativa e, com isso, igualmente e em tese, a concessão da recuperação judicial, na forma dos arts. 57 e 58 da lei 11.101/2005.

Com efeito, o cenário legislativo anterior praticamente inviabilizava o cumprimento do disposto nos arts. 57 e 58 da lei 11.101/2005, na medida em que a lei não apresentava alternativa viável de equacionamento do passivo fiscal.

Durante vários anos, a legislação não oferecia aos devedores em recuperação judicial planos de parcelamento fiscal em condições mais favoráveis quando comparados com os REFIS disponíveis aos devedores em geral.

Levando em consideração a ausência de lei específica para regulamentar o parcelamento tributário para as empresas recuperandas, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça consolidou-se no sentido de dispensar a certidão de regularidade fiscal como condição para a concessão da recuperação judicial1.

O parcelamento específico de que trata o art. 68 da lei 11.101/2005 foi, na prática, instituído com a edição da lei 13.043/2014, por meio da inclusão do então art. 10-A na lei 10.522/2002. Entretanto, esse parcelamento não atendia às finalidades legais, pois dava às empresas recuperandas tratamento mais rigoroso do que aquele oferecido aos devedores em geral, além de exigir a inclusão no parcelamento específico de todos os débitos tributários da empresa recuperanda, ainda que fossem objeto de discussão judicial ou estivessem com a exigibilidade suspensa.

Diante da violação aos princípios da isonomia e da inafastabilidade da jurisdição pelo dispositivo legal acima mencionado, o Superior Tribunal de Justiça permaneceu aplicando o entendimento anteriormente adotado2, não exigindo a apresentação das certidões de regularidade fiscal como condição para a concessão da recuperação judicial.

No julgamento do REsp n. 1.864.625/SP3, o Superior Tribunal de Justiça reforçou o entendimento anterior, reputando inaplicável o art. 57 da Lei n. 11.101/2005 após ponderação realizada conforme o princípio da proporcionalidade, ante a aparente incompatibilidade entre os arts. 57 e 47 da lei 11.101/2005, concluindo que a exigência de apresentação de certidões de regularidade fiscal não era adequada nem tampouco necessária para a concessão da recuperação judicial.

O Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de analisar a questão no pedido de liminar formulado na Medida Cautelar na Reclamação Constitucional n. 43.169/SP, que teve como objeto a decisão proferida no REsp n. 1.864.625/SP, tendo o Ministro Luiz Fux deferido a liminar para sobrestar os efeitos da decisão prolatada pelo Superior Tribunal de Justiça no referido recurso especial, aplicando-se o contido nos artigos 57 da lei 11.101/2005, e 191-A do CTN, até o julgamento final da referida Reclamação, já que a aplicação do art. 57 da lei 11.101/2005 teria sido afastada com fundamento no princípio da proporcionalidade, por meio do exercício do controle difuso de constitucionalidade, sem que a Corte Especial, que seria a competente, tivesse analisado a questão (cláusula de reserva de plenário). Em acréscimo, registrou que a mora legislativa em relação ao parcelamento específico a que faz menção o art. 68 da lei 11.101/2005 havia sido sanada com a edição da lei 13.043/2014.

Contudo, essa Reclamação Constitucional foi redistribuída ao Ministro Dias Toffoli, que acabou negando-lhe seguimento, ao reconhecer inexistente a situação que caracterizaria violação à Súmula Vinculante n. 10 e ao art. 97 da Constituição Federal (cláusula de reserva de plenário), o que acarretou, por consequência, a revogação da liminar inicialmente concedida.

A edição da lei 14.112/2020, entretanto, criou as alternativas de equacionamento do passivo fiscal, em tese, proporcionais e adequadas. A reforma aproximou mais o Fisco da recuperação judicial para que lhe seja assegurado um tratamento, na medida do possível, semelhante ao concedido aos demais créditos sujeitos à recuperação judicial.

Diante da criação do parcelamento especial e da possibilidade de transação fiscal, surgiram julgados que indicam possível alteração do entendimento jurisprudencial que até então prevalecia4. Em contrapartida, diversas decisões proferidas pelos tribunais pátrios parecem não ter acompanhado a alteração promovida pelo legislador, o que indica que em significativa parte dos julgados ainda se aplica o entendimento de que a regra que exige a apresentação das certidões de regularidade fiscal deve ser flexibilizada para que tais certidões não sejam exigidas para fins de concessão da recuperação judicial.

Recentemente, em decisão monocrática proferida no Pedido de Tutela Provisória n. 4113/SP, publicada no DJe em 18/08/2022, o Relator Ministro Paulo de Tarso concedeu efeito suspensivo ao recurso especial para sobrestar os efeitos do acórdão que anulou a decisão de homologação do plano de recuperação judicial, e entendeu que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça relativa à questão da exigência de certidões negativas de débito para concessão da recuperação judicial, mesmo com a possibilidade de parcelamento do débito, não foi alterada.

Apesar disso, ainda remanesce a dúvida de como a Corte Superior, por meio de suas Turmas e/ou Seção competentes, a quem incumbe uniformizar a interpretação da legislação federal no país, se posicionará, diante do atual cenário legislativo, que disponibilizou novos instrumentos às empresas em recuperação judicial para equalização do seu passivo fiscal, o que, em tese, permitiria a aplicação, na prática, do art. 57 da lei 11.101/2005 e do art. 191-A do Código Tributário Nacional.

Vale destacar, por fim, que a Fazenda Nacional vem regulando a possibilidade de parcelamentos e de transação fiscal, na tentativa de oferecer concretamente aos devedores a possibilidade de fruição desses direitos previstos em lei.

A Portaria PGFN n. 6.757, de 29/07/2022 regulamentou a transação na cobrança de créditos da União e do FGTS (já alterada pela Portaria PGFN 6.941, de 04/08/2022, que revogou o inciso II do art. 36) e apresentou regras de utilização dos créditos decorrentes de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da CSLL.

Não obstante a louvável iniciativa do Fisco, existem, em princípio, elementos indicativos de ilegalidade por excesso de poder regulamentar, em razão de alteração dos critérios da lei regulamentada (lei 14.375/2022, que alterou a lei 13.988/2020), ao restringir direitos previamente estabelecidos na referida lei.

Essas ilegalidades da regulamentação fiscal podem ser corrigidas pela via judicial, enquanto não revistas pelo próprio Fisco.

De toda forma, resta claro que se caminha em direção à solução do impasse do crédito fiscal na recuperação judicial, estando cada vez mais próximo o momento em que o Superior Tribunal de Justiça dará a palavra final sobre essa questão de direito federal.

__________

1 O julgamento paradigmático em relação a esse entendimento foi proferido no REsp n. 1.187.404/MT, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, Corte Especial, julgado em 19/6/2013, DJe de 21/8/2013.

2 Nesse sentido: REsp n. 1.173.735/RN, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 22/4/2014, DJe de 9/5/2014.

3 REsp n. 1.864.625/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 23/6/2020, DJe de 26/6/2020.

4 Nesse sentido: TJSP;  Agravo de Instrumento 2244665-54.2021.8.26.0000; Relator (a): Alexandre Lazzarini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Americana - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 11/04/2022; Data de Registro: 11/04/2022. E ainda: TJSP;  Agravo de Instrumento 2035180-77.2022.8.26.0000; Relator (a): Grava Brazil; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível - 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento: 24/05/2022; Data de Registro: 30/05/2022.