Quando as exceções ameaçam virar a regra
terça-feira, 8 de março de 2022
Atualizado em 7 de março de 2022 18:45
1. Introdução
Pouco mais de um ano após a entrada em vigor da reforma à lei 11.101/05 ("LRF"), instituída pela lei 14.122/20, observamos alterações palpáveis ao sistema de insolvência do país, hoje cada vez mais visíveis. Vários exemplos foram abordados nesta coluna nos últimos meses, e incluem a possibilidade de credores apresentarem um plano de recuperação judicial ("RJ"), a limitação às prorrogações sem-fim do stay period na RJ que eram habituais, a simplificação do sistema de alienação de ativos, o incentivo ao fresh start do falido e regras mais claras em benefício do investidor no financiamento aos devedores em RJ ("DIP Financing").
Há consenso no sentido de que essas alterações pontuais na LRF tiveram como mote facilitar a recuperação das empresas insolventes e viáveis, e a retirada do mercado daquelas inviáveis, que ao longo dos anos prorrogavam sua situação de insolvência sem propriamente falir, tornando-se zumbis na cadeia produtiva. A nova LRF, nessas situações, incentiva que ativos troquem de mãos de maneira mais célere e eficiente, sendo reempregados na economia produtiva. Com isso, procura estimular um maior equilíbrio à economia do país, ainda mais num cenário de crises profundas fomentado pela pandemia, e agora pela guerra de proporções globalizadas.
Apesar desses claros avanços, que têm permitido que a LRF atinja melhor os seus objetivos, percebe-se ainda a adoção de certas posições antagônicas e pontuais ao sistema idealizado na LRF, que afetam o frágil equilíbrio dos pesos e contrapesos entre as partes num cenário de insolvência.
Em geral, como se verá, essas posições vêm à tona quando buscam fortalecer o sistema de exceções na RJ, permitindo que credores sejam excluídos dos seus efeitos, blindando-os do concurso e da negociação de um plano de pagamento aprovado pela maioria, que afete toda a coletividade. Ou então quando se limita a competência do juízo da RJ para julgar matérias afeitas ao concurso de credores e ao direito recuperacional, transferindo essa competência para outros julgadores que desconhecem os meandros da insolvência, a essencialidade de certos bens para o soerguimento da empresa e os mecanismos aprovados pela coletividade por meio do plano de recuperação judicial.
Essas posições pontuais, que buscam legitimar a fuga de alguns ao sistema da LRF, deveriam ser revisitadas sob a ótica do direito concursal e econômico. Afinal, um ou outro credor pode considerar um êxito momentâneo a sua blindagem da RJ. Entretanto, no médio prazo, se a empresa for inviabilizada por não conseguir reorganizar sua estrutura de capital, dificilmente os credores recuperarão seus créditos nessa corrida desenfreada por ativos, que muitas vezes é limitada pela própria essencialidade dos bens. Outros credores, legalmente excluídos da RJ antes da reforma, já perceberam esta circunstância, e hoje participam voluntariamente da regra do jogo concursal, ao negociarem planos de RJ e participarem como "credores extraconcursais aderentes" ou concordarem com transações que cabem no bolso da devedora, como é o caso do fisco.
Resta saber qual será a postura desses novos credores "excluídos" ou dos que buscam a interpretação dos negócios jurídicos travados com os recuperandos sob uma ótica dissociada do direito concursal, como se a insolvência passasse ao largo das suas relações. A intuição baseada no comportamento humano, que no direito concursal se manifesta pelo "dilema do prisioneiro", diz que a médio prazo eles perceberão que a melhor alternativa será acompanhar os demais credores concursais. Até a ficha cair, no entanto, muitas empresas viáveis poderão vir a falir.
Para evitar esse resultado, no atual cenário de grandes desafios políticos, sociais e econômicos, é aconselhável que tanto o poder legislativo quanto os operadores do direito apliquem com sabedoria as regras do direito concursal estabelecidas pela LRF. Assim será possível estabelecer um jogo mais equilibrado, em que todos mitigam suas perdas: credores, a economia e até mesmo os devedores.
2. Os resultados da reforma da LRF em casos concretos
Como já abordei em outros artigos, os objetivos maiores da RJ são permitir que os devedores reorganizem sua estrutura de capital e superem seus problemas de liquidez. Ao mesmo tempo, busca-se poupar os credores de uma corrida pantagruélica e destrutiva por bens do devedor, que em regra será infrutífera, já que a empresa insolvente não possui bens suficientes para pagar todas as dívidas.
Ocorre que a LRF sofreu diversas críticas ao longo dos anos, e a sua eficiência foi empiricamente medida por baixos índices de recuperação de créditos e pelo fracasso da falência.
Desde que entrou em vigor, em janeiro de 2021, alguns efeitos da nova LRF foram imediatamente sentidos por todos. O mais emblemático deles é que hoje, em casos paradigmáticos, os planos de recuperação são frutos de um intenso e profícuo processo de negociação com os credores, ao invés de serem impostos pelos devedores, que não raras vezes empurravam os credores a um plano menos ruim do que a falência representaria aos seus créditos, mas ainda assim insuficiente para recuperar atividades econômicas viáveis. Em casos recentes mais representativos, esses planos vêm sendo redigidos em conjunto por credores, devedores e investidores em longas horas, dias e meses de negociação.
Em duas RJ recentes nas quais representamos os devedores, o resultado final desses planos redigidos a diversas mãos foi a sua aprovação maciça em AGC e a sua rápida homologação judicial em primeira instância, diante da existência de divergências mínimas, em geral apresentadas por credores vocais com baixíssima representatividade frente à coletividade. Esses planos contaram com o apoio ostensivo dos credores, inclusive dos extraconcursais e investidores nos autos, blindando a RJ de ataques infundados.
Além da convergência de interesses obtida por meio da intensa negociação entre as partes, os DIP financing foram outro destaque da reforma da LRF. Se antes eram artigo raro, hoje viraram a coqueluche do mercado, e são disputados por investidores que competem pela oportunidade de investimento lucrativo, em benefício de todos -credores, fornecedores correntes, devedores e demais agentes econômicos envolvidos direta e indiretamente na atividade produtiva. Hoje é comum ver investidores DIP e potenciais adquirentes de bens e UPIs participando ativamente das negociações e redação dos planos de RJ.
Não se pretende aqui dizer que a reforma resolveu todos os problemas dos que se veem às voltas com situações de insolvência, mas os avanços foram importantes. Mais do que isso, demonstram que o sistema de insolvência e do direito concursal funcionam, bastando ajustes aqui e acolá. Também é imprescindível que as normas sejam interpretadas de forma sistemática, à luz dos princípios e objetivos maiores previstos na LRF. Isso melhora o ambiente de negócios, e todos saem felizes com a certeza de que as transações se revestem da segurança jurídica necessária para prosperarem.
3. As exceções que estão virando regras: uma reflexão sobre a situação dos representantes comerciais, do fiador que honra o crédito após o pedido, e do não reconhecimento da competência do juízo da RJ
Em paralelo aos avanços do sistema de insolvência com a nova LRF, um problema sempre presente, desde o início da vigência da lei em 2005, permanece à espreita e alarga sua amplitude: a exclusão de créditos relevantes dos efeitos da RJ.
Antes da reforma da LRF, muito se criticava a exclusão dos créditos com garantia fiduciária e oriundos de ACC da RJ (artigos 49, §§3º e 4º). Isso sem contar o fisco, claro, que também sempre esteve fora do jogo.
No entanto, depois de mais de 15 anos de batalhas entre devedores e credores, esses problemas foram melhor equacionados na reforma da LRF. Como vimos, o sistema procura se corrigir, e hoje essas partes são incentivadas a trabalhar lado a lado para buscar soluções que melhor atendam à recuperação de créditos e a preservação de atividades econômicas.
Ocorre que esse movimento de excepcionar certos credores dos efeitos da RJ tem reaparecido em diversas instâncias. E os efeitos disso são preocupantes.
Por exemplo, a recente lei 14.195/21, que alterou dispositivos da lei 4.886/65 relativa aos representantes comerciais, excluiu da RJ os créditos dos representantes comerciais reconhecidos em título executivo judicial, ainda que existentes na data do pedido, mas que transitarem em julgado após o deferimento do processamento da RJ (o que altera a regra clara do artigo 49 da LRF). A constitucionalidade desses dispositivos legais vem sendo questionada na ADIn 7.054 ajuizada pelo Conselho Federal da OAB. Paulo Penalva Santos1 tem um excelente artigo a respeito dos problemas causados pelo novo diploma legal publicado nesta coluna. Vale conferir.
Para além dos representantes comerciais, uma longa discussão no judiciário vem sendo travada a respeito dos créditos detidos por fiadores, que são instados a honrar a fiança após o ajuizamento da RJ. As discussões em torno do assunto versam sobre a definição do fato gerador do crédito objeto da fiança: se é o momento da constituição da obrigação principal, ou se é o momento em que o fiador honra a fiança, quando, segundo alguns, seu direito de crédito passaria a existir.
Nesses casos, em geral os instrumentos de dívida garantidos pela fiança estabelecem como causa de vencimento antecipado o ajuizamento da RJ em si (a chamada cláusula ipso facto de insolvência), de tal modo que o credor original rescinde o contrato imediatamente após o ajuizamento da RJ e, na sequência, notifica o fiador para honrar o pagamento da dívida.
Ocorre que a fiança é contrato acessório, que depende do negócio principal (artigos 818 e 823 do Código Civil). Além disso, o fiador se sub-roga no crédito com o pagamento, de modo que assume a posição do credor original, com todos os seus direitos e deveres, sem a criação de um novo vínculo obrigacional entre as partes (artigos 346, III, 349 e 831 do CC). Apesar da posição maciça dos doutrinadores nesse sentido2, corroborada por decisões em todos os graus de jurisdição, alguns magistrados têm dado ganho de causa aos fiadores, excluindo-os dos efeitos da RJ por julgarem que seu crédito foi constituído após o ajuizamento do pedido. Parte dos que assim entendem utilizam como paradigma acórdão de relatoria da Ministra Nancy Andrighi no caso da OAS, mas que no entanto trata de uma situação diversa, bastante específica e inaplicável à grande maioria dos contratos de fiança objeto de controvérsia: lá se trata de uma carta de crédito em garantia, esta sim autônoma em relação à obrigação principal, se interpretada segundo os termos da publicação ISP98 (International Standby Practices) da Câmara Internacional3, e que foi instada para pagamento apenas no curso da RJ.
Qual é o problema que surge se esse entendimento prevalecer em nossos tribunais? Simplesmente ficam excluídos da RJ todos os créditos representados por instrumentos de dívida que possuem (i) a cláusula ipso facto de insolvência; e (ii) garantia de fiança. O volume de créditos negociados no país sob essas condições está longe de ser trivial e sem dúvida crescerá muito diante da possibilidade de não ser reconhecida a concursalidade de tais créditos.
Em outras palavras, potencialmente todo e qualquer crédito poderia estar excluído da RJ. Basta ao credor esperto, no momento da contratação, exigir a previsão contratual de vencimento antecipado em caso de RJ e a garantia de fiança para se ver livre (juntamente com o próprio fiador garante) do estigma do devedor insolvente. Isso representaria, sem dúvida, o bug do milênio na insolvência.
Por fim, aproveitando o tema da necessária interpretação conjugada das normas esparsas de direito com a LRF e seus princípios de direito concursal, quando se está diante de bens e negócios jurídicos envolvendo uma empresa insolvente, vale tecer breves linhas sobre outro problema que vem se descortinando no horizonte. Trata-se da limitação injustificada da competência do juízo da RJ para apreciar questões relacionadas a contratos e ativos essenciais à recuperanda e ao concurso de credores, à luz do processo recuperacional em curso, quando houver previsão de cláusula arbitral no instrumento contratual.
Isso acontece porque, à primeira vista, o princípio da competência-competência (parágrafo único do artigo 8º da Lei nº 9.307/96) que rege a arbitragem dispõe que o próprio tribunal arbitral tem a atribuição para decidir sobre a extensão da sua própria jurisdição. Isso, aliado à renúncia à jurisdição estatal inerente ao compromisso arbitral, num primeiro olhar retiraria a competência do juízo da RJ para decidir sobre certas matérias.
O problema (não tão óbvio à primeira vista) é que muitas das matérias a serem decididas a respeito de um contrato envolvendo a recuperanda são de competência absoluta do juízo recuperacional. Portanto, estão fora do alcance da arbitragem (inteligência do art. 1º da lei 9.307/96). E a justificativa de ordem prática para isso, quase intuitiva, é que os árbitros, por mais familiarizados que estejam com o direito falimentar, não conhecem os meandros da RJ do devedor envolvido na arbitragem, de modo que a questão controvertida passa a ser apreciada preponderantemente sob o viés civilista e contratual, tangenciando apenas o direito recuperacional e (com boa vontade dos julgadores) as circunstâncias que norteiam aquele procedimento de RJ.
Em razão disso, doutrina e a jurisprudência4 reconhecem que tais matérias, ainda que em princípio se submetam à cláusula compromissória, são deslocadas para a competência absoluta do juiz da recuperação judicial. Não se trata de desconsiderar a cláusula compromissória e a competência do juízo arbitral. Trata-se, sim, de promover a convivência harmônica entre ambas as jurisdições arbitral e recuperacional, sendo certo que, em caso de conflito, o STJ já consolidou o entendimento de que cabe ao juízo recuperacional decidir sobre matérias atinentes ao acervo patrimonial das recuperandas. É justamente o que a Ministra Nancy Andrighi considerou no julgado paradigma sobre a questão, oriundo da RJ da Oi5.
Apesar da jurisprudência caminhar nesse sentido, ainda há julgados delegando as decisões sobre quaisquer temas, diante de um contrato envolvendo cláusula compromissória, aos árbitros. Tais julgados desconsideram as matérias de direito recuperacional, o que é problemático, porquanto desrespeita as esferas de competência de parte a parte, e pode permitir novamente ao credor esperto se desvincular do processo recuperacional, em detrimento de todos os demais credores.
6. Conclusão
O resumo desta ópera é que, embora a insolvência no país esteja em constante aperfeiçoamento, com uma legislação mais eficiente, juízes cada vez mais especializados e partes que compreendem o tabuleiro, ainda há ajustes pontuais a serem feitos, com o intuito de manter a higidez do sistema. O regime de exceções de certos credores à RJ, e a limitação da competência dos juízes de RJ em matérias que são claramente de direito concursal, são exemplos que militam contra a segurança jurídica e a eficiência do sistema, em prejuízo a toda a coletividade de agentes envolvidos nesse processo: credores, investidores, a economia e os devedores.
À medida que os operadores do direito e legisladores se conscientizarem de que o sistema funciona bem quando as regras do jogo são compreendidas e aplicadas a todos, de forma equânime, o sistema da RJ será mais eficiente.
Trocando em miúdos, quando a maioria sai de campo, não se tem jogo. Sob este prisma, estou convencida de que as exceções acima comentadas não passarão a ser regra.
VENOSA, Silvo de Salvo. Direito Civil - Obrigações e Responsabilidade Civil - Vol. 2. 20ª ed. São Paulo: Atlas, 2020, p. 293.
Stolze, Pablo; Filho, Rodolfo Pamplona. Novo curso de direito civil 2 - obrigações. 21ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 197
MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código civil, volume V, tomo I: do direito das obrigações, do adimplemento e da extinção das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 458.
Orlando, GOMES. Obrigações, 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 111-112.
Arnaldo, RIZZARDO. Direitos das Obrigações, 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 352
TARTUCE, Flávio. Direito Civil - Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil. Vol. 2. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 177.
BDINE, Hamid. in Código Civil Comentado, Coord. Cezar Peluso, 12ª ed., Manole, 2018, p. 320.
SACRAMONE, Marcelo Barbosa e PIVA, Fernada Neves. "O pagamento dos débitos da recuperanda: a sub-rogação e o direito de regresso na recuperação judicial". Texto publicado na obra Direito Societário III (Flávio L. Yarshell e Guilherme Setoguti Pereira coord.), Quartier Latin, São Paulo, 2018.
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1 https://www.migalhas.com.br/coluna/insolvencia-em-foco/353273/contrato-de-representacao-comercial-e-recuperacao-judicial
2 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil - Teoria Geral das Obrigações - Vol. II. 32ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p 206
3 Vide parecer do Prof. Guerreiro nesse sentido (Apelação Cível nº 1068244-62.2017.8.26.0100, 23ª Câmara de Direito Privado do TJSP, "Negaram provimento ao recurso. V. U.")
4 CC 153.498-RJ e CC 157.099-RJ, ambos do STJ, e TJ/MG AC 10000170156913006
5 CC 153.498-RJ