O crime de descaminho e os limites de aplicação do princípio da insignificância
terça-feira, 18 de março de 2025
Atualizado às 07:45
Introdução
Este breve artigo analisa a relação entre o crime de descaminho e o princípio da insignificância, com ênfase nos limites de sua aplicação para afastar a persecução penal, considerando os critérios jurisprudenciais.
O crime de descaminho
Em um primeiro momento, fundamental compreender a disposição normativa acerca de tal delito. Conforme preceitua o artigo 334 do Código Penal, este consiste em iludir o pagamento de imposto pela entrada, saída ou consumo de mercadoria. A pena prevista em abstrato pela prática do crime é de reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos.
De acordo com o parágrafo único do artigo supra, algumas figuras típicas podem ser equiparadas ao descaminho. No inciso I, o legislador destaca a prática de navegação de cabotagem de forma ilegal. Em relação ao inciso II, conforme entende Luciano Anderson de Souza, objetivou-se introduzir norma penal em branco homogênea baseada em previsão anterior, que definia como crime de descaminho a saída ilegal de mercadorias da Zona Franca de Manaus1.
Aos incisos III e IV, o legislador procurou abarcar modalidades especiais de receptação, quais sejam, a utilização comercial de mercadoria estrangeira introduzida clandestinamente e a compra desta desacompanhada de documentação legal.
Ainda, conforme dispõe o § 3º, incide majorante de pena nos casos em que o crime for praticado via transporte aéreo, marítimo ou fluvial. Tratamento especial também ocorre nos casos em que o sujeito ativo do crime for funcionário público. Este, ao facilitar a prática de descaminho, incorre nas penas do artigo 318, e não do artigo 334, por conta do princípio da especialidade2.
Trata-se de delito de expressiva incidência no território brasileiro, especialmente nos estados limítrofes com o Paraguai. A frequência com que é praticado decorre, em parte, da elevada carga tributária incidente sobre produtos industrializados no país. No entanto, tal circunstância não configura causa excludente de ilicitude, não afastando a reprimenda estatal.
O princípio da insignificância ao crime de descaminho
Devidamente apresentado o delito objeto de estudo, cumpre ressaltar o conceito do princípio da insignificância e sua aplicabilidade. De acordo com Cézar Roberto Bittencourt3, há hipóteses em que a tipicidade penal pode ser afastada, uma vez que o bem jurídico tutelado não sofre lesão relevante pela conduta praticada. Outros autores referem-se a esse princípio como bagatela, ressaltando sua função de excluir do âmbito penal infrações de mínima ofensividade. Nesse contexto, a aplicação do princípio deve observar a proporcionalidade entre a gravidade da conduta e a necessidade da intervenção estatal, evitando a criminalização de comportamentos irrelevantes sob o prisma jurídico-penal.
Acerca da temática da extinção da punibilidade aos temas de cunho econômico, possuía grande importância a súmula 560 do Supremo Tribunal Federal, ao estabelecer que "a extinção de punibilidade, pelo pagamento do tributo devido, estende-se ao crime de contrabando ou descaminho, por força do art. 18, § 2º, do decreto-lei 157/1967".
Ocorre que, após sua superação, o cenário jurídico passou por períodos de grande incerteza. Inicialmente, por meio do Decreto-lei nº 1.650/1978, estabeleceu-se que a extinção da punibilidade não abarcaria o crime de descaminho.
Posteriormente, entretanto, foi promulgada a lei 9.249/1995, que em seu artigo 34 dispôs acerca da extinção de punibilidade aos crimes expressamente vistos como de sonegação fiscal, quais sejam, aqueles previstos na lei 8.137/1990 e na lei 4.729/1965. Em que pese alguns autores entendam que tal disposição normativa não se aplica ao crime de descaminho, uma vez que não é feita referência direta a este, a maior parte da doutrina defende sua incidência.
De acordo com Bitencourt4, não há razão para afastar a aplicação analógica do artigo 34 ao crime de descaminho, uma vez que este afeta diretamente o sistema tributário nacional. Isso porque, com base no princípio da isonomia, aplica-se a normativa a todos os crimes fiscais.
Mais recentemente, o assunto foi objeto de revisão pelo Superior Tribunal de Justiça, que a partir do Tema Repetitivo nº 157 estabeleceu que o princípio da insignificância, nos crimes tributários federais e de descaminho, incide quando o débito tributário verificado não ultrapassa o limite de R$ 20.000,00 (vinte mil reais).
Nesse mesmo sentido, é igualmente relevante apresentar o Enunciado nº 49, firmado pela 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, que dispõe sobre o cabimento do arquivamento de investigações relativas a crimes de descaminho e contra a ordem tributária, previstos na lei 8.137/1990, quando a soma dos débitos à Fazenda Nacional for inferior a R$ 20.000,00 (vinte mil reais).
Portanto, com base nos conceitos e entendimentos apresentados, compreende-se que inexiste interesse estatal na persecução penal quando o montante dos tributos iludidos se encontra abaixo do referido patamar, sendo possível a aplicação do princípio da insignificância, dada a mínima lesividade da conduta.
O montante de R$ 20.000,00 foi estabelecido com fundamento na Portaria nº 75 do Ministério da Fazenda, a qual dispõe, em seu artigo 1º, inciso II, sobre a vedação ao ajuizamento de execuções fiscais para a cobrança de débitos com a Fazenda Nacional cujo valor consolidado seja igual ou inferior a esse limite.
Inexistindo interesse do Estado na cobrança da dívida, torna-se ainda menos justificável a persecução penal contra o autor do fato. Sendo o Direito Penal a ultima ratio, sua aplicação não se mostra adequada na hipótese em questão.
No entanto, não é incomum que indivíduos se valham da prática reiterada do descaminho, iludindo valores inferiores a R$ 20.000,00 a cada fiscalização e acumulem sucessivas autuações fiscais de pequeno montante como estratégia para evitar a repressão penal.
Nestes casos, a jurisprudência majoritária aponta no sentido de afastar o princípio da insignificância devido à reiteração, ainda que a quantidade de impostos iludidos em todas as autuações fiscais da pessoa seja inferior ao patamar de R$ 20.000,00.
A tese firmada pelo STJ no Tema Repetitivo nº 1218 estabeleceu que a reiteração delitiva impede a aplicação do princípio da insignificância ao crime de descaminho, independentemente do montante do tributo iludido. Contudo, também reconheceu que, caso o juízo entenda ser socialmente recomendável, é possível excepcionalmente aplicar o referido princípio.
Outrossim, a referida tese, de relevância indiscutível, estabeleceu que a contumácia pode ser apurada com base nos procedimentos penais e fiscais já instaurados em desfavor do autuado.
Vejam-se as recentes seguintes decisões que ilustram o exposto neste artigo:
DIREITO PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. DESCAMINHO. HABITUALIDADE DELITIVA. AFASTAMENTO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. DECISÃO AGRAVADA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.
I. Caso em exame 1. Agravo regimental interposto contra decisão monocrática que deu provimento ao recurso especial do Ministério Público, determinando a devolução dos autos ao Juízo de primeira instância para reexame dos requisitos da denúncia, afastando a aplicação do princípio da insignificância.
2. O Tribunal de origem constatou a apreensão de mercadorias estrangeiras sem documentação legal, avaliadas em R$2.864,25, com tributos federais presumidos de R$1.432,13. O réu possuía um registro anterior de apreensão de mercadorias nos cinco anos anteriores.
II. Questão em discussão 3. A questão em discussão consiste em saber se a existência de um procedimento fiscal é suficiente para afastar a aplicação do princípio da insignificância no crime de descaminho, caracterizando a habitualidade delitiva.
III. Razões de decidir 4. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça estabelece que a existência de procedimentos fiscais inviabiliza a aplicação do princípio da insignificância, sendo suficiente para configurar a habitualidade delitiva.
5. A reiteração delitiva, mesmo que constatada por um único procedimento fiscal, afasta a aplicação do princípio da insignificância nos crimes de descaminho.
6. A decisão monocrática está alinhada com a jurisprudência da 5ª Turma do STJ, que considera a habitualidade delitiva um óbice à aplicação do princípio da insignificância.
IV. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.
(AgRg no REsp n. 2.118.633/PR, relatora Ministra Daniela Teixeira, Quinta Turma, julgado em 4/11/2024, DJe de 6/11/2024.)
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EM HABEAS CORPUS. DESCAMINHO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. REITERAÇÃO CRIMINOSA. MEDIDA SOCIALMENTE NÃO RECOMENDÁVEL. TEMA REPETITIVO N. 1.218 DO STJ. TRANCAMENTO DO PROCEDIMENTO INVESTIGATIVO. IMPOSSIBILIDADE. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.
1. Consoante reiterada jurisprudência desta Corte Superior, o trancamento do processo - inquérito policial ou ação penal - em habeas corpus, por ser medida excepcional, somente é cabível quando ficarem demonstradas, de maneira inequívoca e a um primeiro olhar, a atipicidade da conduta, a absoluta falta de provas da materialidade do crime e de indícios de autoria ou a existência de causa extintiva da punibilidade.
2. A Terceira Seção desta Corte, recentemente, no julgamento do Tema n. 1.218, submetido ao rito dos recursos repetitivos, fixou a seguinte tese: "[...] A reiteração da conduta delitiva obsta a aplicação do princípio da insignificância ao crime de descaminho - independentemente do valor do tributo não recolhido -, ressalvada a possibilidade de, no caso concreto, se concluir que a medida é socialmente recomendável. A contumácia pode ser aferida a partir de procedimentos penais e fiscais pendentes de definitividade, sendo inaplicável o prazo previsto no art. 64, I, do CP, incumbindo ao julgador avaliar o lapso temporal transcorrido desde o último evento delituoso à luz dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade" (REsp n. 2.083.701/SP, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Terceira Seção, julgado em 28/2/2024, DJe de 5/3/2024).
3. No caso, independentemente do valor do tributo não recolhido, o acusado foi autuado administrativamente três vezes por apreensões de mercadorias irregulares, entre 2018 e 2021, o que denota reiteração delitiva e demonstra que a aplicação do princípio da insignificância não é medida socialmente recomendável.
4. Agravo regimental não provido.
(AgRg no RHC n. 197.228/PR, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 16/10/2024, DJe de 23/10/2024.)
Conclusão
Assim, entende-se que o crime de descaminho pode ser considerado insignificante quando o valor total dos impostos iludidos não ultrapassa o montante de R$ 20.000,00. Contudo, a aplicação do princípio da insignificância é afastada quando há reiteração delitiva. Não obstante, mesmo diante da prática reiterada, é possível a aplicação do princípio da insignificância, caso o julgador entenda ser socialmente recomendável. Outrossim, a contumácia pode ser comprovada por meio dos procedimentos penais e fiscais existentes em desfavor do autuado.
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O conteúdo desta coluna é produzido pelos membros do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da Universidade Federal do Paraná - NUPPE UFPR e pesquisadores convidados.
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1 SOUZA, Luciano Anderson de. Direito penal: parte especial - arts. 312 a 359-H do CP. v. 4. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. p. 262.
2 SOUZA, Luciano Anderson de. Código Penal comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022.
3 BITENCOURT, Cezar R. Tratado de Direito Penal - Parte Geral Vol.1 - 30ª Edição 2024. 30. ed. Rio de Janeiro: Saraiva Jur, 2024. E-book. p. 28.
4 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. v. 5. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 265.