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Fronteira jurídica: A confluência entre a arbitragem e o direito penal econômico

terça-feira, 24 de setembro de 2024

Atualizado às 14:07

Intersecção

A relação entre arbitragem e direito penal econômico é complexa e envolve debates sobre os deveres e competências do árbitro. Embora, à primeira vista, pareçam mundos distintos - sendo a arbitragem focada na autonomia privada e o direito penal na proteção estatal de direitos fundamentais  - recentemente, a interação entre esses campos tem se tornado relevante, especialmente em situações que envolvem crimes financeiros e corporativos.

No contexto do direito penal econômico, a intersecção com a arbitragem se torna particularmente evidente quando grandes empresas utilizam a arbitragem para resolver disputas comerciais. Em tais procedimentos, práticas ilícitas como fraude ou lavagem de dinheiro podem ser alegadas ou até mesmo descobertas. Isso levanta questões sobre a competência dos árbitros para lidar com elementos criminais, uma vez que a arbitragem não foi idealizada para tratar de questões penais.

Os árbitros podem ser confrontados com a necessidade de considerar como as práticas penais afetam a validade e a execução dos contratos em disputa. Esse cruzamento entre as esferas penal e comercial cria um campo de tensão e exige um entendimento mais profundo das obrigações dos árbitros em relação ao direito penal, desafiando as fronteiras tradicionais da arbitragem.

Nos últimos tempos, a arbitragem tem sido cada vez mais aceita em litígios envolvendo o poder público. Todavia, é inegável que o instituto da arbitragem ainda apresenta lacunas em relação ao direito penal. Nesse sentido, a existência ou alegação de ilícitos que surgem durante o procedimento arbitral pode ou não afetar a demanda, levando a uma discussão profícua sobre os limites e as responsabilidades dos árbitros em face das questões penais emergentes.

Questões criminais que podem surgir em procedimentos arbitrais

Inicialmente, é importante ressaltar que casos ilícitos podem envolver os próprios árbitros e as câmaras de arbitragem. Tais situações demandam intervenção estatal, podendo inclusive fundamentar a anulação de sentenças arbitrais. De acordo com o art. 17 , da LArB - lei de arbitragem, os árbitros são equiparados a funcionários públicos para fins de legislação penal, ou seja, respondem por suas ações conforme o CP, assim como qualquer servidor público. Além disso, mesmo que um árbitro seja inocentado, sua reputação é crucial; um escândalo de corrupção pode arruinar a carreira de um profissional dessa área .

No Brasil, não há entendimento que permita a arbitragem de questões penais, exceto, talvez, em casos de delitos de ação penal privada, na linha da disponibilidade. As câmaras de arbitragem não têm competência para tratar de crimes de ação penal pública incondicionada, como fraude ou lavagem de dinheiro, que são de competência exclusiva do sistema judicial penal. 

Portanto, qualquer discussão sobre ilícitos penais em contextos arbitrais deve ser entendida como uma questão indireta, afetando, por exemplo, a validade ou a execução de contratos, mas não a jurisdição direta sobre o crime em si. Nesse sentido, um fato pode gerar múltiplas repercussões, tanto no âmbito penal quanto no cível, ou seja, um árbitro nunca irá julgar um ilícito penal, isso extrapola a esfera de sua competência, mas um mesmo ato pode ensejar responsabilidade cível e criminal simultaneamente.

Assim, nota-se que os procedimentos arbitrais não estão imunes a questões criminais. Atos ilícitos como fraude, falso testemunho, produção de falsa perícia e uso de documentos falsos podem surgir durante o procedimento arbitral. A identificação e a abordagem adequada desses crimes são essenciais para garantir a integridade e a legitimidade do processo arbitral.

Justamente por isso, a existência de um fato e a determinação de sua autoria já determinados no juízo penal não podem ser redeliberados ou questionados no juízo arbitral (art. 935, CC), o que ocorre é que o árbitro irá avaliar como esse ato afeta o seu objeto de julgamento, isto é, a independência entre as responsabilidades não é total, a responsabilidade criminal afeta a responsabilidade civil.

Em outra seara, o árbitro pode se deparar com situações em que ilícitos civis foram praticados na constituição do próprio objeto da disputa, estando presentes na formação do contrato. Nesses casos, o árbitro pode recorrer a remédios contratuais, como a determinação de pagamento de multa ou a declaração de nulidade do contrato. Dessa maneira, uma cláusula de arbitragem prevista em contrato não se torna automaticamente inválida apenas porque o contrato apresenta indícios de corrupção, visto que o princípio da separabilidade protege o acordo de arbitragem, mantendo-o válido independentemente das demais disposições do contrato.

É importante destacar que a análise da influência da ilicitude sobre o contrato não deve ser confundida com a análise da ilicitude em si. Ao tratar da ilicitude no contexto contratual, é crucial especificar se estamos abordando a ilicitude penal ou civil, uma vez que o termo 'ilicitude' pode se referir a diferentes categorias jurídicas. A ilicitude penal diz respeito a comportamentos que violam normas criminais e que são punidos pelo sistema de justiça criminal.

Já a ilicitude civil, envolve transgressões que afetam a ordem jurídica civil e podem levar a sanções como a nulidade de contratos ou reparação de danos. Portanto, ao analisar a influência da ilicitude sobre um contrato, é essencial esclarecer a qual tipo de ilicitude estamos nos referindo para evitar ambiguidades e garantir uma compreensão precisa das implicações jurídicas.

Nesse contexto, Carmona explica que "o fato caracterizador de conduta antijurídica típica deve ser apurado exclusivamente pelo Estado, sem prejuízo de as partes levarem à solução arbitral a responsabilidade civil decorrente de ato delituoso".

Assim, reforça-se, o juízo estatal é o responsável por julgar um ilícito penal. Caso um árbitro se depare com indícios de crime há um dever de comunicá-lo ao ministério público, seguindo a linha do art. 17 da lei de arbitragem brasileira.

Limites da arbitragem e responsabilidade do árbitro

A convenção de arbitragem é a anuência entre as partes para submeter a resolução de seu litígio ao juízo arbitral, ou seja, a arbitragem é calcada no consentimento. De acordo com o princípio da competência-competência, cabe ao árbitro decidir sobre sua própria jurisdição. No entanto, quando se trata de questões de nulidade que envolvem o interesse público, como fraude ou simulação, a dúvida é se o interesse público pode influenciar a competência do árbitro para decidir sobre sua própria jurisdição.

A questão central reside na ponderação entre a autonomia das partes, que escolheram a arbitragem para resolver suas disputas, e a necessidade de proteger o interesse público, que pode ser comprometido se o procedimento arbitral for conduzido sob práticas corruptas (sendo o árbitro equiparado a um funcionário público, uma ação de sua parte como aceitar subornos é contrária a própria política pública, sendo motivo suficiente para anulação da sentença). 

Em uma perspectiva maximalista, situações de corrupção comprovada podem justificar a intervenção judicial para anular ou suspender a arbitragem. Adotando uma abordagem menos intervencionista, os poderes do juiz estatal para interferir e revisar o conteúdo da sentença arbitral devem ser exercidos de forma criteriosa, visando preservar a confiabilidade das decisões arbitrais (iura novit curia) .

Conjuntura atual

A ausência de determinação legal expressa relega as câmaras e os árbitros ao limbo, colocando o procedimento arbitral em uma posição de vulnerabilidade e impondo um senso de proatividade nos árbitros, dada a ausência de normas específicas. Nessa toada, a elevação da arbitragem como método eficaz de resolução de conflitos envolvendo matéria penal depende de uma compreensão clara da limitação de competência das câmaras de arbitragem. 

Embora a arbitragem seja um meio eficaz para resolver disputas comerciais, as questões penais não estão sob sua jurisdição direta. Nesse sentido, a suspensão da arbitragem que é caracterizada como medida excepcional, adotada pelo árbitro apenas se a resolução da lide arbitral depender da verificação do fato delituoso e da responsabilidade penal, deve ocorrer quando surgem indícios de crimes durante um procedimento arbitral até que a questão penal seja julgada pela esfera judicial competente. Vale lembrar que, de acordo com o art. 935 do CC, o árbitro não pode alterar a existência de fato e sua autoria decididas pelo juízo criminal.

No Brasil, a legislação limita as matérias que podem ser submetidas à arbitragem, restringindo-a a situações que envolvam direitos patrimoniais disponíveis. No entanto, independentemente do caminho a ser tomado, é vital que a legislação nacional não seja utilizada de forma desleal para influenciar a aplicabilidade das decisões arbitrais. Isso exige uma análise cuidadosa para distinguir os limites entre a jurisdição arbitral e a estatal, garantindo que a arbitragem permaneça um instrumento justo e eficaz na resolução de disputas.

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1 O conteúdo desta coluna é produzido pelos membros do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da Universidade Federal do Paraná - NUPPE UFPR e pesquisadores convidados.

2 Art. 17. Os árbitros, quando no exercício de suas funções ou em razão delas, ficam equiparados aos funcionários públicos, para os efeitos da legislação penal.

3 FERREIRA, Daniel Brantes; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende; SCHMIDT, Gustavo da Rocha. A corrupção do árbitro e seus efeitos sobre a sentença arbitral. Migalhas. Disponível aqui.

4 PEREIRA, Cesar. Impacts of Corruption in International Commercial Arbitration. Informativo Justen, Pereira, Oliveira e Talamini, Curitiba, n. 204, fevereiro de 2024, disponível aqui.

5 House of Lords. Fiona Trust and Holding Corporation and Others v. Yuri Privalov. UKHL n. 40, julgado em 17.10.2007, disponível aqui.

6 CANAL, Bruno Hellmeister Lico. Corrupção, simulação e fraude à lei: ilicitudes sob o juízo arbitral estrangeiro. Revista de Direito Constitucional e Internacional. vol. 140. ano 31. p. 173-211. São Paulo: Ed. RT, nov./dez. 2023.

7 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 50. ed. São Paulo: Gen, 2017. v. II.

8 MOURRE, Alexis. Part II Substantive Rules on Arbitrability, Chapter 11 - Arbitration and Criminal Law: Jurisdiction, Arbitrability and Duties of the Arbitral Tribunal. In: MISTELIS, Loukas A.; BREKOULAKIS, Stavros. Arbitrability: International and Comparative Perspectives. Haia: Kluwer Law International, 2009.

9 FERRAZ, Renato de Toledo Piza. Arbitragem e matérias relacionadas à disciplina penal: perspectiva e desdobramentos dessa interseção. Revista de Arbitragem e Mediação. vol. 73. ano 19. p. 101-128. São Paulo: Ed. RT, abr./jun. 2022.