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Impenhorabilidade da verba alimentar nas medidas cautelares patrimoniais no processo penal

terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Atualizado às 08:35

A deflagração de operações no país voltadas à apuração de crimes econômicos gerou uma abrupta valorização dos efeitos patrimoniais da condenação, tais como o perdimento de bens e a obrigação de indenizar o dano causado pela prática criminosa (art. 91, I, II, "b", CP). Por conseguinte, vê-se crescente a aplicação de medidas cautelares para assegurar a efetividade de tais efeitos durante o transcurso do processo penal.

O Código de Processo Penal prevê as medidas de sequestro (arts. 125 a 132), o qual recai sobre bens adquiridos com os proventos da infração - ou, caso não encontrados ou se localizem no exterior, sobre bens ou valores equivalentes (art. 91, §§ 1.º e 2.º, CP) -; e a especialização da hipoteca legal e o arresto (arts. 134 a 137), os quais recaem sobre bens de origem lícita.

Embora a lei processual penal tenha previsto expressamente essas espécies de medidas assecuratórias, tem-se observado na prática a determinação de "bloqueio" e "indisponibilidade" da integralidade do patrimônio do indivíduo sujeito à persecução penal1. Afora a evidente violação à legalidade pela aplicação de medidas indeterminadas - cuja denominação é confundida com os próprios efeitos delas decorrentes -, essa prática tem conduzido à indisponibilidade de absolutamente todo o valor depositado em conta(s) bancária(s) do(s) investigado(s) ou acusado(s) - inclusive verbas de natureza alimentar.

Vale dizer, determina-se a constrição de todos os valores do(s) imputado(s) depositados em instituições financeiras até o limite estimado para a perda do provento do crime ou a reparação do dano. Com isso, é possível que a medida cautelar venha a atingir vencimentos, remunerações, salários, pensões, proventos da aposentadoria, honorários etc.

Nessa hipótese, se a medida decretada for o sequestro, cujo objeto são bens sobre os quais recaem "indícios veementes da proveniência ilícita" (art. 126, CPP), a quantia correspondente a verba alimentar deve ser levantada com fundamento na sua origem manifestamente lícita, sem nem ser necessário opor a impenhorabilidade.

Por seu turno, se a medida decretada for o arresto (a especialização da hipoteca legal não poderia ser, porque não atinge valores), então seria possível requerer o imediato levantamento dos rendimentos de natureza alimentar com fundamento em sua impenhorabilidade.

Isso porque, conforme previsão expressa no art. 137 do CPP, o arresto somente pode incidir sobre bens móveis que compõem o patrimônio lícito do acusado suscetíveis de penhora. Não estão sujeitos à penhora bens elencados na vedação do art. 833 do CPC, dentre eles, "os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal" (art. 833, IV, CPC). A parte final do § 2.º do art. 833 do CPC, no entanto, autoriza a penhora de verba de natureza alimentar que exceda a cinquenta salários-mínimos.

A razão para se restringir a penhora dos rendimentos alimentares é elementar, na medida que visa a garantir ao acusado um patrimônio mínimo para que ele e sua família sobrevivam com dignidade. Inclusive, o Código de Processo Penal estabelece expressamente a possibilidade de que o juiz arbitre, a partir das rendas de bens móveis suscetíveis de penhora, recursos destinados à "manutenção do indiciado e de sua família" (art. 137, §2.º, CPP).

Não obstante, é necessário ponderar que o Superior Tribunal de Justiça tem mitigado a aplicação da referida regra de impenhorabilidade, admitindo-se o seu afastamento em duas hipóteses: (a) "quando os valores depositados sob o título de remuneração ou salário perdem sua natureza alimentar por não terem sido efetivamente empregados no espaço de tempo situado entre um e outro depósito mensal"; e (b) quando o valor percebido "excede o teto remuneratório constitucional"2.

O posicionamento merece crítica, pois restringe direito fundamental por inovação jurisprudencial. O legislador estabeleceu expressamente o rol de bens impenhoráveis e fez um prévio juízo de ponderação entre os interesses envolvidos, optando por excluir da proteção da verba alimentar exclusivamente o que excede a cinquenta salários-mínimos (além da prestação de alimentos, que é matéria fora do processo penal).

Embora esse limite seja inegavelmente alto, na medida que representa muito mais do que a remuneração da maioria dos brasileiros, essa circunstância, por si só, não justifica que simplesmente se despreze a literalidade da disposição legal, a despeito do prévio exercício de controle de constitucionalidade da norma em questão.

Seja como for, a lei processual penal é clara: em hipótese alguma, as medidas assecuratórias podem atingir verbas de natureza alimentar do investigado ou do acusado, ainda que sob os limites legal e jurisprudencial acima referidos. Trata-se de regra de ordem pública, cognoscível de ofício pelo juiz.

Portanto, o mais adequado é que sejam excluídas do alcance do Sisbajud3 conta-salário e conta-corrente criadas especificamente para o recebimento de vencimentos, salários, remunerações, aposentadorias, pensões etc. Assim se evita que verbas dessa natureza fiquem constritas ainda que temporariamente, o que já pode causar prejuízo à manutenção do acusado e de sua família.

No entanto, caso tais valores sejam atingidos, deve ser garantido o imediato levantamento das medidas assecuratórias, mediante arguição em simples petição perante o juízo. Em caso de indeferimento, é cabível a impetração de mandado de segurança, eis que a violação ao direito líquido e certo poderá ser demonstrada mediante prova pré-constituída. Embora o Código de Processo Penal possibilite a oposição de embargos do acusado, inviável que valores dessa natureza sigam constritos até o trânsito em julgado na ação penal, (art. 130, I e parágrafo único, CPP), sob pena de se comprometer a própria subsistência do acusado e de sua família.

O conteúdo desta coluna é produzido pelos membros do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da Universidade Federal do Paraná - NUPPE UFPR e pesquisadores convidados de grupos de pesquisa parceiros

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1 Para maiores considerações quanto a esse fenômeno, ver: LUCCHESI, Guilherme Brenner. Medidas assecuratórias patrimoniais: a decretação do "bloqueio" de bens e outras disformidades. In: SANTORO, Antônio Eduardo Ramires. MALAN, Diogo Rudge. MADURO, Flávio Mirza (orgs.). Desafiando 80 anos de processo penal autoritário. Belo Horizonte, São Paulo: D'Plácido, 2021.

2 "Os salários e as remunerações são impenhoráveis, nos termos do art. 833, inciso IV, do Código de Processo Civil. Semelhante inviolabilidade funda-se, por certo, na necessidade de resguardar a dignidade do devedor - e do acusado submetido a medida constritiva -, mediante a preservação do mínimo existencial para si e sua família. Esta Corte Superior, entretanto, tem reiteradamente entendido que a impenhorabilidade salarial ou remuneratória não é absoluta - mesmo porque não existem direitos absolutos -, sendo lícito o seu afastamento em determinadas hipóteses, dentre as quais se inclui aquela em que os valores depositados sob o título de remuneração ou salário perdem sua natureza alimentar por não terem sido efetivamente empregados no espaço de tempo situado entre um e outro depósito mensal. Admite-se, igualmente, o excepcionamento da regra de impenhorabilidade quanto aos valores que excederem o teto remuneratório constitucional." [STJ, Corte Especial, AgRg na CauInomCrim 6/DF, julgado em 04 dez. 2019].

3 Sisbajud é o "Sistema de Busca de Ativos do Poder Judiciário", por meio do qual são feitas as transmissões das ordens de indisponibilidade, de seu cancelamento e de determinação de penhora, sendo gerido pela autoridade supervisora do sistema financeiro nacional.