COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Informação privilegiada >
  4. A legitimidade do terceiro delatado para impugnação do acordo de colaboração premiada

A legitimidade do terceiro delatado para impugnação do acordo de colaboração premiada

terça-feira, 15 de março de 2022

Atualizado às 07:30

Com o advento da lei 12.850/13 a colaboração premiada, embora já prevista anteriormente em outros dispositivos legais, ganhou popularidade, tornando-se - metaforicamente - combustível das grandes operações e maxiprocessos penais. Aquele que milita com o Direito Penal Econômico, então, recorrentemente se depara com o instituto, seja na defesa dos interesses daquele que pretende colaborar ou daquele que é citado pelo colaborador.

Resta relevante à execução das atividades do advogado inserto em tal contexto a questão da possibilidade (ou não), quando atuando em favor de terceiro delatado, de impugnação do acordo de colaboração premiada. Exemplo da pertinência do tema foi a alteração legislativa trazida pelo Pacote "Anticrime" (lei 13.964/2019), com a inclusão do §7º-B no art. 4.º da lei 12.850/13, o qual determina a nulidade de cláusulas prevendo a renúncia ao direito de impugnar a decisão homologatória do acordo - aqui, em relação ao colaborador.

Assim, destacado o valoroso interesse que o tema tem para o cotidiano do advogado criminalista, breve análise sobre a temática será apresentada no intuito de fundamentar a possibilidade de impugnação do acordo de colaboração premiada pelo terceiro delatado, iniciando a abordagem pelo posicionamento jurisprudencial quanto ao tema.

Em 2015, no julgamento do Habeas Corpus n.º 127.483, o Supremo Tribunal Federal, em decisão unânime do plenário, definiu que terceiro delatado não tem legitimidade e interesse para impugnar acordo firmado entre Estado-persecutor e colaborador. Uma das razões mencionada no acórdão de relatoria do Min. Dias Toffoli faz referência ao art. 4º, §7º da lei 12.850/2013, indicando a limitação do juízo homologatório à aferição da regularidade, da voluntariedade e da legalidade do acordo. De tal modo, inexistiria juízo de valor na análise homologatória quanto às declarações prestadas pelo colaborador1.

Sobredito posicionamento do STF também prevaleceu no Superior Tribunal de Justiça, o qual, em 2017, no julgamento da Ação Penal n.º 843/DF, distinguiu o acordo de colaboração de seu conteúdo, afirmando que as cláusulas deste não repercutem na esfera jurídica de terceiros - "nem sequer remotamente", razão pela qual inexistiria interesse jurídico ou legitimidade para impugnação do acordo celebrado2.

É inquestionável o fato de que a colaboração premiada se apresentou como combustível de grande parte das operações midiáticas deflagradas nos últimos anos e, portanto, representa papel importante para o Acusador Público na construção de narrativas para a persecução penal.

Se esse meio de prova - é assim que a colaboração é definida no art. 3.º-A da lei 12.850/2013 (com redação dada pela lei 13.964/19) -, é pivô no processo penal, evidente que deve ser garantido ao acusado o exercício da ampla defesa e do contraditório em face do apresentado pelo colaborador. Os limites de tal exercício, contudo, ainda não parecem claros e bem delimitados.

Não pretendendo exaurir a ratio decidendi de ambos os posicionamentos, as Cortes Superiores afirmaram que o terceiro, pela garantia do inciso LV do art. 5.º da Constituição da República, tem o direito de impugnar o conteúdo apresentado pelo colaborador ao longo da instrução penal, o que afastaria o interesse deste na impugnação em momento processual anterior3.  Ressaltaram também o caráter de negócio jurídico personalíssimo firmado pelo colaborador, do que se extrairia a ausência de legitimidade e de interesse jurídico para que o terceiro delatado impugnasse o acordo.

O posicionamento adotado pelo STF em 2015 permaneceu firme na jurisprudência até o ano de 2018. Contudo, no julgamento do Habeas Corpus n.º 151.605, a 2.ª Turma afastou a aplicação do precedente estabelecido, permitindo a impugnação por terceiro nos casos de decisão homologatória que desrespeite a prerrogativa de foro, sob o entendimento de que o ponto não se relacionaria aos termos do acordo, mas à competência para a sua homologação4.

A mencionada relativização ao posicionamento firmado pelo Plenário teve mais dois episódios importantes em 2020. No julgamento dos Habeas Corpus n.º 142.205 e 143.427 - oriundos da Operação Publicano5 -, a 2.ª Turma mais uma vez acatou a possibilidade de que o acordo de colaboração premiada fosse impugnado por terceiros delatados. Vale destaque para o posicionamento do Min. Gilmar Mendes, relator dos writs, que afirmou como "evidente e inquestionável" a afetação da esfera jurídica de terceiros a decisão que homologa acordos ilegais e ilegítimos6.

Analisando a decisão, DE-LORENZI e CEOLIN pontuam a incidência dos acordos de colaboração premiada em duas esferas de interesse, quais sejam: (i) os interesses dos corréus delatados, dado que poderiam acarretar gravoso impacto à esfera de direitos daqueles e (ii) os interesses coletivos da sociedade, visto que tratam da possibilidade de concessão de benefícios penais pelo Estado7.

Assim, percebe-se a tendência pela admissibilidade da impugnação dos acordos pelos terceiros delatados. Não obstante, como expõem os autores, persistem alguns "questionamentos relacionados à diminuição do âmbito de aplicação, ressalvas em relação às suas premissas e, até mesmo, discordâncias em relação ao posicionamento paradigmático assentado pelo Pleno do Tribunal no julgamento do HC 127.483"8.

Por outro lado, verifica-se a ausência de limites e premissas claras quanto à possibilidade de impugnação. É o que, de forma breve, pretende-se abordar no presente artigo.

O primeiro ponto de destaque em relação ao tema da impugnação é a distinção entre (a) vícios do negócio jurídico e (b) vícios relacionados à decisão de homologação. Embora os efeitos práticos da impugnação de acordo que contenha o primeiro ou o último vício possam ser similares, o fundamento para o questionamento de cada um deles difere entre si.

Quanto aos vícios do negócio jurídico faço referência, novamente, ao trabalho de DE-LORENZI e CEOLIN que tratam brilhantemente do tema.

A análise dos autores aborda a natureza jurídica da colaboração premiada, focando em sua caracterização como negócio jurídico de natureza mista: processual e material9. Após, é examinado o acordo sob a ótica da teórica civilista dos contratos - tal como fundamentado no HC n.º 127.483 pelo Pleno do STF -, chegando à conclusão de que, mesmo presentes tais características, não há impedimento à impugnação por terceiro cujos interesses seriam prejudicados pelo negócio, caso do delatado10. Avançando na abordagem, em oposição ao entendimento que até então prevalecia nas Cortes Superiores (mencionado no início deste artigo), os autores demonstram a existência de interesse do terceiro delatado na impugnação pelo reconhecimento da ilicitude por derivação da prova oriunda de negócio jurídico inválido - no caso, a colaboração11.

No mais, os autores concluem pela impropriedade da leitura civilista do acordo de colaboração premiada, apresentando uma concepção publicista deste, inspirada na teoria dos contratos do Direito Administrativo12.

A abordagem apresentada por DE-LORENZI e CEOLIN soa bastante correta, principalmente ao refutar a leitura civilista da colaboração premiada, o que, aparentemente, ocorre tão somente pela ausência de disciplina legal que reconheça a natureza jurídica do instituto e dê o enfoque necessário ao tema dos negócios jurídicos penais e processuais penais.

Em síntese, o que remanesce indubitável das conclusões apresentadas pelos autores é a possibilidade de impugnação pelo terceiro delatado do acordo inválido, o que, de acordo com a teoria civilista dos contratos, corresponde àquele que não cumpre os requisitos legais - no caso, os expressos nos incisos do §7º do art. 4º da lei 12.850/13.

Apresentada uma das vertentes, resta a análise dos casos em que há vícios relacionados à decisão de homologação.

O primeiro ponto de enfrentamento quanto à impugnação das decisões homologatórios é a ausência de previsão legal do instrumento cabível para tanto. Contudo, não é caso isolado no ordenamento jurídico brasileiro a inexistência de previsão de meio específico para o controle de validade das decisões que homologam os acordos celebrados.

Não seria essa a razão, por conseguinte, para impedir a impugnação pelo terceiro delatado, na esteira do pensamento de PACELLI, ao afirmar que eventual homologação judicial de acordo ilegal não o legitimaria, ensejando, enfim, seu questionamento em instâncias superiores "como qualquer outra decisão judicial"13.

O pensamento é compartilhado por DIDIER JR. e BOMFIM. A decisão homologatória pode ser prejudicada pela transmissão de vícios do negócio jurídico ou conter vício próprio - tal como nos casos de homologação por órgão jurisdicional incompetente -, o que torna indispensável a existência de exercício do controle de validade das decisões de homologação14.

Esse parece ter sido o caminho tomado pela 2ª Turma do STF, embora pela tortuosa aplicação do in dubio pro reo com o empate, no julgamento dos Habeas Corpus nº 143.427 e 142.205, apresentados mais acima.

Da mesma forma como ocorre com outros meios de obtenção de prova - interceptação telefônica, quebra de sigilo bancário, fiscal e telemático etc. - não deve o indivíduo incriminado na narrativa do colaborador e, posteriormente, denunciado com base em tal incriminação, "suportar os prejuízos de se responder a uma ação penal nula de plano"15.

Nesse sentido, MARIANA ALMEIDA defende a pertinência constitucional da possibilidade de terceiros impugnarem a validade do acordo, como negócio jurídico, e da decisão de homologação16.

Ainda, cabe destacar que a impugnação dos acordos ilegais, a priori, não implica em prejuízo ao colaborador, mormente porque não pode a ele ser imputado eventual vício no juízo homologatório, como nos casos de incompetência do órgão jurisdicional.

Inclusive, foi nesse sentido que o Min. Gilmar Mendes, ao conceder a ordem de ofício declarando a nulidade de acordo de colaboração premiada no julgamento dos Habeas Corpus nº 143.427 e HC 142.205, reconheceu que os benefícios firmados com os colaboradores não seriam afetados, com fundamento na segurança jurídica.

Portanto, parece estar bem estabelecido que não deve ser negada ao terceiro delatado a possibilidade de questionar a validade do acordo entabulado e eventual vício presente no juízo homologatório, sobretudo porque não se visa, nesses casos, discutir o conteúdo do acordo, mas a sua legalidade, princípio tão caro ao Direito Penal.

Pensar em contrário, recorrendo à terminologia acertadamente proposta por GIZELA DE ARAÚJO, levaria à criação de categoria probatória imune a impugnações17, o que deve ser rechaçado na persecução penal de um Estado Democrático de Direito.

O conteúdo desta coluna é produzido pelos membros do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da Universidade Federal do Paraná - NUPPE UFPR. 

__________

1 STF - HC 127.483/PR, Tribunal Pleno, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 27.08.2015, DJe de 4/2/2016.

2 STJ, Ação Penal 843/DF, Corte Especial, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 06.12.2017.

3 "De todo modo, nos procedimentos em que figurarem como imputados, os coautores ou partícipes delatados - no exercício do contraditório - poderão confrontar, em juízo, as declarações do colaborador e as provas por ele indicadas, bem como impugnar, a qualquer tempo, as medidas restritivas de direitos fundamentais eventualmente adotadas em seu desfavor." STF - HC 127.483/PR, Tribunal Pleno, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 27.08.2015, DJe de 4/2/2016.

4 STF, HC 151605/PR, 2ª Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, J. 20.03.2018.

5 Operação que investiga esquema de corrupção no âmbito da Receita Estadual no Paraná.

6 STF, HC 142.205/PR, 2ª Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, J. 25.08.2020; STF, HC 143.427/PR, 2ª Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, J. 25.08.2020 (Inteiro teor, p. 17).

7 DE-LORENZI, Felipe da Costa; CEOLIN, Guilherme Francisco. A impugnação da colaboração premiada pelo delatado na jurisprudência do STF: uma análise de seus fundamentos e elementos para uma compreensão penal do negócio jurídico. Revista do Instituto de Ciências Penais, Belo Horizonte, v. 6, n. 2, p. 347-385, 2021. p. 353.

8 Idem.

9 Ibid, p. 356.

10 Ibid, p. 361

11 Ibid, p. 370-371.

12 "A colaboração premiada consiste em negócio jurídico em matéria penal e processual penal. Assim, a concepção privatista não pode ser simplesmente transplantada para o Direito Penal e Processual Penal, sendo necessário fazer as devidas adaptações aos fundamentos e fins destes ramos do Direito. Para tanto, pode ser de grande auxílio a compreensão dos contratos no Direito Administrativo, já que, por fazer parte do Direito Público, tem maior proximidade com o Direito Penal, compartilhando a submissão à lógica dos direitos indisponíveis, dos interesses públicos e da legalidade." Ibid, p. 379.

13 PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 23 ed. São Paulo: Atlas, 2019. p. 884.

14 DIDIER JR., Fredie; BOMFIM, Daniela. Colaboração premiada (Lei n. 12.850/2013): natureza jurídica e controle da validade por demanda autônoma: um diálogo com o Direito Processual Civil. Civil Procedure Review, [S.l.], v. 7, n. 2, p. 135-189, may.-aug. 2016.

15 ALMEIDA, Mariana Ribeiro de. Impugnação do acordo de colaboração premiada pelo terceiro delatado: limites e critérios. Revista de Processo. vol. 315. ano 46. p. 25-53. São Paulo: RT, maio 2021.

16 Idem.

17 DE ARAÚJO, Gisela Borges. Da legitimidade do delatado para impugnação do acordo de delação premiada. In: Colaboração premiada: aspectos teóricos e práticos. André Luís Callegari (coord.). São Paulo: Saraiva Educação, 2019. p. 134.