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A teoria da cegueira deliberada e sua (in)utilidade prática no Direito Penal brasileiro

segunda-feira, 12 de julho de 2021

Atualizado às 08:05

Recentemente, muito se ouviu falar acerca da teoria da cegueira deliberada no Brasil. Essa temática ganhou relevância no âmbito do Direito Penal Econômico a partir de seu uso frequente nos julgamentos da Operação "Lava Jato", em que foi reiteradamente aplicada em substituição ou mesmo complemento ao dolo eventual. Sob essa justificativa, ela tem sido adotada para reconhecer a existência de dolo mesmo nos casos em que ausentes os fundamentos necessários à sua configuração.

A teoria da cegueira deliberada, ou willful blindess doctrine, desenvolveu-se na doutrina e jurisprudência norte-americanas a partir da premissa de que não se poderia permitir a ignorância propositada como defesa à imputação de um crime, motivo pelo qual a auto colocação em situação de ignorância deveria ter as mesmas consequências dos casos de conhecimento efetivo acerca das circunstâncias do tipo.

Segundo Ragués i Vallés, encontra-se em estado de ignorância deliberada "todo aquele que podendo e devendo conhecer determinadas circunstâncias penalmente relevantes de sua conduta, toma deliberada ou conscientemente a decisão de manter-se na ignorância com relação a elas"1. Para Spencer Sydow, a teoria é uma "forma de imputação objetiva criada pelo Direito anglo-saxão para preencher lacuna jurídica da interpretação restritiva do dolo nas situações em que o sujeito de um delito alega desconhecimento de fatos por desídia em investigá-los ou por criação de estratégia de nunca adquirir consciência deles"2.

Sem entrar no mérito da dificuldade (ou impossibilidade) de transplante dessa teoria para o Direito brasileiro, tendo em vista a incompatibilidade entre os sistemas jurídico-penais americano e pátrio, uma análise mais detida acerca da aplicação da teoria da cegueira deliberada permite chegar à conclusão de que além de incompatível, ela é também desnecessária.

Isso porque muitos dos casos em que a cegueira deliberada foi aplicada para condenar os acusados poderiam ser resolvidos a partir da teoria do dolo.

O legislador brasileiro estabeleceu, nos artigos 18 e 20 do Código Penal, algumas balizas quanto à forma de imputação subjetiva e definiu mais ou menos os conceitos de dolo e culpa. A partir da descrição genérica feita pelo legislador, costuma-se afirmar que o dolo é composto por dois elementos: o conhecimento e a vontade. Porém, essa assertiva ainda se mostra insuficiente, sendo necessária a elaboração de teorias por parte da doutrina para complementar o conceito e orientar a aplicação da lei penal.

As teorias do dolo são comumente classificadas em teorias volitivas e teorias cognitivas, a depender da ênfase dada a cada um dos elementos do dolo. Seja qual for a teoria adotada, é evidente que o conhecimento é elemento central do dolo no Direito Penal brasileiro. É justamente a partir dessa premissa que surgem alguns questionamentos importantes, como, por exemplo: de que forma poderíamos enfrentar os casos de ignorância deliberada em um Direito Penal que considera o conhecimento como um elemento básico da responsabilidade? Seria aceitável que um sujeito que busca permanecer em desconhecimento se beneficie penalmente dessa circunstância?3

Para responder a estas perguntas é preciso, primeiramente, estabelecer que o dolo não deve ser definido como um processo mental que ocorre dentro do intelecto do sujeito. Ainda que nenhuma teoria normativo-atributiva tenha obtido êxito em fornecer categorias seguras para a imputação de conhecimento ou vontade, entende-se que os conceitos jurídicos devem ser avaliados a partir de padrões normativos, conforme ensina Claus Roxin4. As construções teóricas mais contemporâneas não podem ser ignoradas, tendo em vista a impossibilidade de constatação segura do conhecimento e da vontade em um sentido psicológico-descritivo5.

Assim, sob um ponto de vista normativo-atributivo, o conhecimento não precisaria ser efetivo ou pleno, como pretende Zaffaroni6, mas é necessário apenas que se demonstre que o agente possui um conhecimento da situação que lhe garanta domínio ou controle da execução da ação. Ainda, o conhecimento não precisa ser completo ou verificável empiricamente, mas é atribuído a partir das circunstâncias do caso concreto.

Diante desse conceito mais amplo, tem-se que aquele que tem consciência da elevada probabilidade de ilicitude de sua conduta e, mesmo diante dessa suspeita, não aprofunda seu conhecimento, de certo modo, já sabe o que espera encontrar. Ou seja, a representação de uma situação de ilicitude pelo autor já preenche o elemento cognitivo do dolo, ainda que o conhecimento não seja pleno.

A equiparação entre os casos em que o agente tem efetiva ciência dos elementos do tipo e aqueles em que há um desconhecimento deliberado tem base na culpabilidade, segundo a ideia de que esta não pode ser menor para aquele que, podendo e devendo tomar conhecimento de determinadas circunstâncias, opta pela ignorância7.

Assim, nos casos de lavagem de dinheiro, em que o agente representa como altamente provável a ilicitude da origem dos bens, mas renuncia à tomada de conhecimento pleno, pode-se afirmar que há uma postura de conformação do sujeito com a produção do resultado.

Vale ressaltar que o desconhecimento deliberado de determinadas circunstâncias do comportamento do agente apenas pode conduzir à modalidade dolo eventual, e apenas nas situações em que o sujeito possui um conhecimento básico que seja o suficiente para permitir a imputação por dolo.

Nesse ponto, é importante destacar que há uma distinção entre os casos em que o sujeito não quer conhecer a origem delitiva dos bens, mas a representa como provável em função das circunstâncias objetivas, e os casos em que o sujeito não quer saber nada acerca dos bens, mas tampouco representa sua origem delitiva. Esse segundo caso, segundo Blanco Cordero8, não pode estar abarcado pelo dolo, enquanto que o primeiro é um caso de dolo eventual.

A partir de relevante análise jurisprudencial realizada por Guilherme Lucchesi9, pode-se chegar à conclusão de que há a aplicação da teoria da cegueira deliberada pelos tribunais brasileiros em, basicamente, três grupos de casos: (i) casos em que houve condenação por dolo eventual; (ii) casos em que a cegueira deliberada foi usada apenas como complemento da decisão; e (iii) casos em que houve condenação sem que estivessem presentes os requisitos para a condenação na modalidade dolosa.

Nos casos em que houve condenação por dolo eventual, aplicando-se a cegueira deliberada, verifica-se a absoluta dispensabilidade da teoria, diante da inexistência de lacunas de punibilidade a serem preenchidas. Se já estão presentes os requisitos para a imputação do crime por dolo eventual, não há necessidade de aplicação da teoria da cegueira deliberada, posto que suficientes e adequados os critérios do dolo já existentes no Direito Penal brasileiro.

Sob esse mesmo fundamento se mostra igualmente desnecessária a aplicação da teoria da cegueira deliberada apenas como reforço argumentativo.

Já o terceiro grupo de casos é o que aparenta ser mais problemático, pois cria uma nova categoria de imputação subjetiva, nunca prevista pelo legislador, que foge completamente aos parâmetros estabelecidos pelos artigos 18 e 20 do Código Penal. Pior ainda, em alguns casos, os tribunais chegaram a criar um dever de conhecimento para o autor em situações nas quais as circunstâncias não revelavam alta probabilidade de ilicitude, em absoluta distorção da teoria originária da willful blindness.

Esse uso inadequado da cegueira deliberada tem como resultado inúmeras condenações indevidas em casos de inexistência de provas suficientes a demonstrar o conhecimento mínimo exigido pela lei penal para a imputação na modalidade dolosa.

Em face da análise apresentada, pode-se perceber que o dolo tem amplo alcance como modalidade de imputação subjetiva, abrangendo desde casos de autêntica intenção, até aqueles em que o sujeito representa o risco de realização típica e se conforma com a produção do resultado. O alcance mais amplo da imputação dolosa na construção jurídico-penal brasileira permite a punibilidade de muitos dos casos que, no Direito Penal norte-americano, precisam da cegueira deliberada para que não fiquem impunes.

Portanto, em última análise, no Direito Penal brasileiro, a teoria da cegueira deliberada não parece ter nenhuma utilidade legítima, acabando por servir apenas para a punição de condutas culposas como se dolosas fossem.

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1 RAGUÉS I VALLÉS, Ramón. La ignorancia deliberada en Derecho penal. Barcelona: Atelier Libros Juridicos, 2007, p. 25.

2 SYDOW, Spencer Toth. A teoria da cegueira deliberada. Belo Horizonte: Editora D'Plácido, 2017, p. 19

3 RAGUÉS I VALLÈS, Ramon. Mejor no saber: sobre la doctrina de la ignorância deliberada en Derecho penal. In Revista Discusiones, v. 13, n° 2 (2013): Ignorancia deliberada y Derecho Penal, p. 12.

4 ROXIN, Claus. Strafrecht Allgemeiner Teil. Bd. 1. Grundlagen, der Aufbau der Verbrechenslehre. - 3. Aufl. - München: Beck, 1997, p. 376-377.

LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo: o uso da cegueira deliberada no Brasil. 1. Ed. São Paulo: Marcial Pons, 2018, p. 144-145.

6 Para Zaffaroni, "O dolo requer sempre conhecimento efetivo; a mera possibilidade de conhecimento (chamada "conhecimento potencial") não pertence ao dolo. O "querer matar um homem" (dolo do tipo de homicídio do art. 121 do CP) não se confunde com a "possibilidade de conhecer que se causa a morte de um homem", e sim com o efetivo conhecimento de que se causa a morte de um homem". (ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. Volume 1. Parte geral. - 9. ed. rev. e atual. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 420).

7 CALLEGARI, André Luís; WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de Dinheiro. - 2. ed. rev., atual. e ampl. - São Paulo: Atlas, 2017, p. 120.

8 BLANCO CORDERO, Isidoro. El Delito de Blanqueo de Capitales. Pamplona: Arazandi, 1997, p. 383.

9 LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo: o uso da cegueira deliberada no Brasil. 1. Ed. São Paulo: Marcial Pons, 2018, p. 174-187.