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Em pauta: STF e responsabilidade civil dos provedores, o que está em jogo?

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Atualizado em 21 de novembro de 2024 15:17

Está agendada para a próxima quarta-feira, dia 27 de novembro, o início do julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), do futuro da internet brasileira. Ou, pelo menos, a definição de como passará a ser regulamentada a responsabilidade civil dos provedores de aplicações pelo conteúdo produzido por terceiros. Nesta ampla categoria de provedores encontram-se redes sociais como Tik Tok, Instagram e X; serviços de mensagens, como WhatsApp, Telegram e Signal, que se tornou conhecido esta semana por ter sido utilizado pelos militares que supostamente planejavam o assassinato de autoridades; plataformas de áudio e vídeo, com destaque para YouTube, Netflix e Spotify; serviços de busca como o onipresente Google, entre outros.

Serão julgados os seguintes processos1:

1 - Recurso Extraordinário (RE) 1.037.396, da relatoria do ministro Dias Toffoli, recurso envolvendo o Facebook;

2 - Recurso Extraordinário (RE) 1.057.258, tendo como relator o ministro Luiz Fux e como recorrente o Google;

3 - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 403, da relatoria do ministro Edson Fachin, ação constitucional ajuizada pelo partido Cidadania em face de decisão do juiz de direito da Vara Criminal de Lagarto, em Sergipe.

Os dois recursos extraordinários possuem repercussão geral reconhecida, respectivamente o tema 987: discussão sobre a constitucionalidade do art. 19 da Lei n. 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) que determina a necessidade de prévia e específica ordem judicial de exclusão de conteúdo para a responsabilização civil de provedor de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros e o tema 533: Dever de empresa hospedeira de sítio na internet fiscalizar o conteúdo publicado e de retirá-lo do ar quando considerado ofensivo, sem intervenção do Judiciário.

Já a ADPF discute a possibilidade de bloqueio em âmbito nacional do aplicativo WhatsApp por decisões judiciais em processos específicos em que não tenha sido atendida uma ordem judicial, analisando se o bloqueio ofende o direito à liberdade de expressão e comunicação, bem como o princípio da proporcionalidade. Este é o único dos três processos cujo julgamento colegiado já teve início, em maio de 2020, com votos do relator e da ministra Rosa Weber, ambos pela procedência do pedido: i) no caso do ministro Fachin, para declarar a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, do inciso II do art. 7º e do inciso III do art. 12, ambos do Marco Civil da Internet, para afastar qualquer interpretação que autorize ordem judicial que exija acesso excepcional a conteúdo de mensagem criptografada ponta-a-ponta; ii) e da ministra Rosa, conferindo  interpretação conforme a Constituição aos mencionados dispositivos de lei. Na sequência, pediu vista o ministro Alexandre de Moraes.

Um dado interessante é que nenhum dos três processos é novo na Suprema Corte: o RE 1.037.396 chegou ao STF em 2017, a ADPF 403 foi ajuizada em meados de 2016 e o RE 1.057.258 é ainda mais antigo, tendo chegado a Brasília há treze anos, em outubro de 20112.

Aplica-se a eles a célebre lição do grande processualista italiano Francesco Carnelutti, que em 1958 já dizia que "o tempo é um inimigo implacável do processo, contra o qual todos - o juiz, seus auxiliares, as partes e seus procuradores - devem lutar de modo obstinado". Isto porque podemos afirmar que, tivessem os recursos e a ação sido julgados há alguns anos, as chances de decisões mais favoráveis aos provedores de aplicações seriam consideravelmente maiores.

Tome-se por exemplo a ADPF. À época em que foi proposta, em meados da década passada, o Brasil recém passara por quatro ordens de bloqueio do Whatsapp por descumprimento de decisões judiciais proferidas por juízes criminais de diferentes localidades do país. As medidas foram consideradas desarrazoadas - por prejudicarem um serviço utilizado por milhões de brasileiros em função de uma questão isolada - e cassadas poucas horas depois dos bloqueios (a mais longa durou aproximadamente 24h)3.

De lá para cá, muita coisa mudou. O ministro Alexandre de Moraes determinou a suspensão nacional do Telegram (2022) por descumprimento de seguidas ordens e recusa em indicar representantes legais no Brasil e, no caso de maior repercussão, pelos mesmos motivos, suspendeu o X em todo território nacional por quase 40 dias (2024). Como ele é o próximo a votar na ADPF, é esperado um voto que venha a fixar exceções à regra proposta no voto do ministro Fachin, que veda qualquer decisão judicial que "enfraqueça a proteção criptográfica de aplicações de internet". Talvez uma fórmula que impeça juízes de primeiro grau de determinar o bloqueio dos aplicativos de mensagens, mas permita que, satisfeitas determinadas condições, os tribunais possam fazê-lo4.

Algo semelhante ocorre com os dois recursos extraordinários onde se discute a constitucionalidade o artigo 19 do Marco Civil da Internet. De acordo com a lei, o provedor de aplicações só se torna civilmente responsável pelo conteúdo publicado por terceiros em sua plataforma se, após ordem judicial que identifique de forma inequívoca o conteúdo infringente, não tomar as providências que estejam a seu alcance para deletar o conteúdo.

As únicas exceções à regra são: i) os direitos autorais e conexos, que dependem de previsão legal específica, até hoje não editada; e ii) a divulgação não autorizada de imagens, vídeos ou outros materiais contendo nudez ou atos sexuais privados, situação em que basta o participante notificar o provedor, dispensando a exigência de ordem judicial (art. 21 do Marco Civil da Internet).

Quando da edição da lei, a regra foi festejada por combater a censura prévia, privilegiar a liberdade de expressão e retirar dos ombros dos provedores a difícil tarefa de fazer uma triagem entre o que era lícito e ilícito, arriscando-se duplamente, tanto ao manter no ar algo depois considerado ilegal, quanto ao remover precipitadamente um conteúdo que depois seu autor conseguisse uma ordem judicial que o declarasse lícito.

Esta lógica tem prevalecido até os dias atuais, sobretudo pela jurisprudência consolidada pelo Superior Tribunal de Justiça. Porém, vem sendo cada vez mais questionada nos últimos anos5, diante da proliferação de fake news e das propostas de criação de novas exceções à necessidade de obtenção de ordem judicial para remoção de conteúdo, como nos casos de desinformação (de difícil conceituação e alcance), criação e uso de perfis falsos, conteúdos impulsionados (pagos) ou em situações realmente graves, como crimes contra o Estado Democrático de Direito ou incentivo/apologia a massacres em escolas.

Não é fácil prever o que acontecerá no julgamento desses processos. Nossa aposta é que o artigo 19 do Marco Civil da Internet não seja declarado inconstitucional, mas que o Supremo Tribunal Federal crie ou abra brechas para a criação - talvez em uma interpretação conforme a Constituição - de novas fórmulas de responsabilização das plataformas que não sejam atuantes na proteção dos usuários, independentemente de ordem judicial.

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1 Esta coluna acompanha o trâmite dos recursos aqui citados no STF desde 2019, quando publicamos "Exclusão de conteúdo impróprio por provedores de aplicação: os limites de aplicabilidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet". 

2 O recurso ingressou no STF como Agravo em Recurso Extraordinário (ARE) 660.861 e possui repercussão geral reconhecida desde março de 2012.

3 Sobre o tema, recomendamos a leitura do trabalho Bloqueios.info, organizado pelo InternetLab e pelo instituto Iris, especialmente a página https://bloqueios.info/pt/linha-do-tempo/.

4 Especialmente diante das notícias mais recentes da existência de um plano golpista em que militares utilizaram um aplicativo de mensagens para - segundo o que vem sendo divulgado na imprensa - colocar em prática o plano, que teria como alvo justamente o ministro Alexandre de Moraes.