Levando os direitos fundamentais à sério: Os direitos fundamentais envolvidos em perícia algorítmica face à proteção de segredo industrial
sexta-feira, 27 de maio de 2022
Atualizado em 10 de junho de 2022 13:19
Proteção de dados como direito fundamental e teoria dos direitos fundamentais: por uma abordagem interdisciplinar e inclusiva
É possível verificarmos a importância essencial do estudo da Teoria dos Direitos Fundamentais ao observarmos que a proteção de dados (autodeterminação informativa) é um direito fundamental, e pois, não apenas um direito humano ou um direito da personalidade autônomo. Stefano Rodotá1, segundo esclarece Ana Frazão, apontaria para o reconhecimento da proteção de dados como um verdadeiro direito fundamental autônomo, expressão da liberdade e da dignidade humana. Danilo Doneda afirma que Stefano Rodotá entenderia a proteção de dados como direito especial da personalidade, embora, por outro lado, Ana Frazão sustente que Rodotá afirmaria a proteção de dados como sendo um direito fundamental autônomo2, postulando por uma proteção dinâmica, abrangendo a observância dos movimentos dos dados. Dispõe Doneda:
"quando os cidadãos passam a ser cada vez mais avaliados e classificados apenas a partir de informações a seu respeito, a proteção e o cuidado com estas informações deixa de ser um aspecto que somente diga respeito às esferas da do sigilo ou da privacidade, passando a figurar um componente essencial para determinar o grau de liberdade de autodeterminação individual de cada pessoa3.
Rony Vainzof, por sua vez, esclarece que Laura Mendes defende que a proteção de dados é um direito da personalidade, ao contrário de outras manifestações recentes da autora, que sustentam o reconhecimento da proteção de dados como direito fundamental. Verbis:
"Laura Schertel entende que a própria personalidade a que os dados pessoais se referem, exige que a proteção de dados pessoais seja compreendida não como um direito à propriedade, mas como uma espécie dos direitos de personalidade, que tem como objetivo equilibrar os direitos de proteção, de defesa e de participação do indivíduo nos processos comunicativos"4.
Destaca-se como caso paradigmático no sentido de tal reconhecimento a decisão judicial da lavra do STF - Supremo Tribunal Federal de 06 e 07.05.2020 nas ADIs n. 6387, 6388, 6389, 6393, 6390, referente à MP 954-2020. Referida MP permitia o acesso irrestrito de dados pessoais de geolocalização de telefonia móvel e fixa ao IBGE para fins de controle da pandemia da COVID19. Destacou-se que toda e qualquer atividade de tratamento de dados deve ser devidamente acompanhada das medidas de salvaguarda sob pena de ser uma interferência desproporcional na esfera pessoal dos brasileiros. No caso em questão, não houve a previsão acerca da necessária publicação prévia de um relatório de impacto à privacidade, a fim de demonstrar de forma transparente aos cidadãos os riscos e meios de mitigação. Tampouco houve uma delimitação temporal acerca do uso dos dados e a forma de descarte após sua utilização; ou seja, não houve a aplicação de boas práticas de segurança, transparência e controle.
Destaca-se o entendimento de Laura Mendes acerca de tal julgado ter reconhecido a proteção de dados como direito fundamental, em suas palavras: "decisão histórica do STF reconhece direito fundamental à proteção de dados pessoais"5.
Importa ressaltar que a LGPD não traz, contudo, expressa previsão da proteção de dados como direito fundamental, como se denota dos seus artigos 1º e 17, quando menciona a proteção de outros direitos fundamentais (liberdade, intimidade, privacidade, livre desenvolvimento da personalidade).6
Da mesma forma, ainda não teríamos uma expressa e direta previsão constitucional de tal direito fundamental, contudo, há a previsão constitucional de proteção de direitos fundamentais relacionados, consoante se denota dos artigos que protegem a garantia da inviolabilidade da vida privada (art. 5º, X), a dignidade humana (art. 1°, III, CF/88,) e ao prever a garantia processual do habeas data (art. 5º, LXXII). Há quem entenda que foi reconhecido pela Constituição, portanto, um direito fundamental à proteção de dados pessoais, a chamada autodeterminação informativa, como uma dimensão material do habeas data, com fulcro na inviolabilidade da intimidade, da vida privada e da dignidade humana (Laura Mendes)7. Por conseguinte, entendemos que foi reconhecido pela CF o direito fundamental à proteção de dados pessoais, como uma dimensão material do habeas data, como parte, portanto, do substantive due process of law.
Além disso, destaca-se a Proposta de Emenda à Constituição 17/19 que insere a proteção de dados pessoais, incluindo os digitalizados, na lista de garantias fundamentais da Constituição Federal de 1988, ou seja, no rol do art. 5º, da Constituição.
O direito à proteção de dados é considerado direito fundamental pelo art. 8º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, proclamada pelo Parlamento Europeu, pelo Conselho da União Europeia e pela Comissão Europeia em 7.12.2000. Da mesma forma o Regulamento Europeu de proteção de dados - GDPR 2016/679 do Parlamento europeu e do Conselho europeu, revogando a Diretiva 95/46/CE prevê a proteção de dados como direito fundamental (item 1), bem como a necessidade da aplicação do princípio da proporcionalidade, já que não há que se falar em direitos absolutos, devendo a proteção de dados ser equilibrada com outros direitos fundamentais, com o princípio da proporcionalidade (item 4).
Ainda no sentido de haver previsão acerca da necessidade da aplicação da proporcionalidade, a Agência Espanhola de Proteção De Dados (AEPD), em fevereiro de 2020, publicou o documento "Adecuación al RGPD de tratamientos que incorporan Inteligencia Artificial", no tocante à regulamentação da proteção de dados pelo regulamento europeu, onde destaca a necessidade da observação da proporcionalidade.8
No mesmo sentido aponta a Resolução 1-2020 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) denominada "Pandemia y derechos humanos em las Américas" de 10.04.2020, trazendo expressa previsão do princípio da proporcionalidade como forma de evitar a generalização de um estado de exceção em tempos de pandemia, ressalvando sua limitação temporal e a obrigatoriedade da observância do princípio da proporcionalidade em seus três subprincípios, proporcionalidade em sentido estrito, adequação e necessidade (item 21). Em seu item 20 enfatiza que o estado de exceção presente nestas situações de pandemia deverá cumprir e respeitar os direitos humanos.
Ainda quanto ao reconhecimento da proteção de dados como direito fundamental e a necessidade do princípio da proporcionalidade, noção-chave da teoria dos direitos fundamentais, ele próprio expressão de uma garantia fundamental, que entendemos como princípio dos princípios e, logo, como "garantia das garantias", destaca-se o entendimento da jurisprudência internacional.
- Clique aqui e confira a íntegra do texto;
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1 Stefano Rodotá, "A vida na sociedade da vigilância. A privacidade hoje". Trad. Danilo Doneda e Laura Cabral Doneda, Rio: Renovar, 2008, p. 18-19. Juliana Abrusio, em sua tese de doutorado na PUC/SP, "Proteção de Dados na Cultura do Algoritmo", afirma que "passa-se a percorrer como tornar os sistemas de inteligência artificial explicáveis é essencial para garantir direitos fundamentais como a proteção de dados pessoais". Laura Mendes, por sua vez aponta para a necessidade da cultura jurídica compreender a proteção dos dados pessoais como um direito fundamental autônomo - cf. "Privacidade, proteção de dados e defesa do consumidor". São Paulo: Saraiva, 2014, p.78-79.
2 Stefano Rodotá. "Avida na sociedade da vigilância - A privacidade hoje". Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 17.
3 Danilo Doneda. "Princípios e proteção de dados pessoais". In: LUCCA, Newton de; SIMÃO FILHO; Adalberto; LIMA, Cíntia Rosa Pereira de (Coord.). Direito & Internet III: Marco civil de internet. São Paulo: Quartier Latin, 2015. t. I. p. 370.
4 Laura Schertel Mendes. "Privacidade, proteção de dados e defesa do consumidor: linhas gerais de um novo direito fundamental", cit. p. 124; Maldonado, Viviane Nóbrega; Blum, Viviane Nóbrega. LGPD: Lei Geral de Proteção de Dados comentada, p. 177. Edição do Kindle.
5 10/05/2020, Decisão histórica do STF reconhece direito fundamental à proteção de dados pessoais.
6 Art. 1º Esta Lei dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural. Art. 17. Toda pessoa natural tem assegurada a titularidade de seus dados pessoais e garantidos os direitos fundamentais de liberdade, de intimidade e de privacidade, nos termos desta lei.
7 Laura Schertel Mendes, "Privacidade e dados pessoais. Proteção de dados pessoais. Fundamento, conceitos e modelo de aplicação". Panorama setorial, ano XI.
8 Disponível aqui. Acesso em 15 fev.2020.