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Toda guerra ou toda a guerra...?

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Atualizado em 25 de outubro de 2022 13:05

O leitor Marco Aurélio dos Santos envia-nos a seguinte mensagem:

 

"Ao Gramatigalhas: Prezados senhores: No 'Migalhas' de hoje (26.4.07), foi citada a seguinte frase: 'Toda a guerra finaliza por onde devia ter começado... a paz' (Jules Barthélemy Saint-Hilaire - 1805-1895). O correto não seria 'Toda guerra...?'"

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1) Vejam-se os seguintes exemplos e o significado respectivo da expressão em realce:

a) "Todo o dia, o réu está no balcão do cartório, à espera da sentença" (o dia inteiro);

b) "Todo dia, o réu está no balcão do cartório, à espera da sentença" (todos os dias).

2) Laudelino Freire é muito preciso em sua observação a respeito: "O todo, quando se lhe pospõe o artigo (todo o) significa a inteireza de uma coisa, reservando-se a todo, sem o artigo, a significação de cada, qualquer, ou o total de muitas. No primeiro caso indica-se o todo físico, o todo lógico, por inteiro; no segundo, a coleção ou totalidade".

3) Fundando-se em lição de Damião de Góis, continua tal gramático na observação de que:

a) na frase "Laranjeira que todo ano tem fruto", deve entender-se que essa árvore dá frutos todos os anos;

b) se, porém, se disser "Laranjeira que todo o ano tem fruto", deve-se entender que ela frutifica durante o ano inteiro.

4) E finaliza ele com propriedade: "O fato, portanto, ficará regularizado, se se tomar por norma usar sempre de todo seguido de o, menos quando todo tenha a significação de qualquer, ou de totalidade. As expressões toda a parte, toda a vez, todo o momento, todo o caso, etc., melhor exprimirão o que se quer dizer uma vez escritas sem o artigo".1

5) De igual modo, em exemplo significativo, Silveira Bueno desfaz possíveis dúvidas:

a) "Toda vida é uma dádiva de Deus" quer dizer que qualquer vida é uma dádiva de Deus;

b) já "Toda a vida é uma dádiva de Deus" vem a significar que a vida inteira é uma dádiva de Deus.2

6) Vale também transcrever a preciosa síntese e acréscimo de Júlio Nogueira: "Na linguagem do Brasil, faz-se judiciosa distinção. Todo o diz-se quando equivale a inteiro, na totalidade, completamente...Na acepção de qualquer não se usa o artigo". E continua tal gramático com sua observação: "No plural, porém, o artigo aparece em qualquer acepção".3

7) E se reitere, quanto à última lição, com a observação de Édison de Oliveira, para quem, "no plural, as palavras todos, todas sempre se farão acompanhar pelos artigos os, as, independentemente do significado em que tenham sido empregadas".4

8) Buscando esquematizar o emprego exato de tais vocábulos, leciona Laudelino Freire que se deve "usar sempre de todo seguido de o (todo o) menos quando todo tenha a significação de qualquer. Todo o significa a inteireza de uma coisa; todo, sem o artigo, significa cada, qualquer, ou o total de muitos. A distinção é inconfundível. 'Toda a casa foi queimada', isto é, a casa, toda ela, foi queimada. 'Toda casa deve pagar impostos', isto é, todas as casas são sujeitas ao imposto. 'Todo o dia' = dia inteiro; 'Todo dia' = todos os dias".5

9) Na lição de José de Nicola e Ernani Terra, "os pronomes indefinidos todo e toda (no singular), quando desacompanhados de artigo, significam qualquer"; porém, "quando acompanhados de artigo, passam a dar a idéia de inteiro, totalidade".6

10) Para Antonio Henriques e Maria Margarida de Andrade, todo "tem a idéia de totalidade numérica, de generalização" (toda responsa­bilidade = qualquer tipo de responsabilidade), enquanto todo o "tem idéia de totalidade das partes, especificação" (toda a responsabilidade = responsabilidade total, inteira, completa)".7

11) Sousa e Silva, por um lado, lembra que há gramáticos, como Eduardo Carlos Pereira, para os quais "é facultativo o uso do artigo nas frases em que muitos o omitem presentemente"; por outro lado, observa ele que essa moderna distinção entre toda a casa ("a casa inteira") e toda casa ("todas as casas" ou "qualquer casa"), por exemplo, "tende a fixar-se em nossa língua, por influência do francês".8

12) Para Luciano Correia da Silva, os arcaicos e os clássicos usavam indiferentemente uma forma pela outra, e "somente a partir do Romantismo é que se passou a ensinar esta diferença: todo é sinônimo de cada, qualquer, e todo o quer dizer inteiro, na totalidade".9

13) Vale a pena teorizar com a lição de Alfredo Gomes: "a palavra todo tem duas acepções: a de inteiro e a de qualquer. Apesar de confundidas essas duas idéias no emprego..., convém fazê-lo seguir de artigo - todo o, toda a - no sentido de inteiro, e usá-lo sem artigo quando significar qualquer:

a) 'Todo homem é mortal';

b) 'Nem toda a casa está estragada'".10

14) Em caso muito particular, anote-se que, Silveira Bueno, por um lado, observa que "a expressão todo mundo é galicismo que desde os tempos de Gil Vicente entrou no uso português, mais velho, portanto que o próprio Brasil".

15) Por outro lado, mostra esse autor uma visão permissiva no emprego dela: "Esta antiguidade da expressão já lhe deu foros de idioma e pode ser empregada, sabendo-se, contudo, que é empréstimo".11

16) Antonio Henriques refere lição de Said Ali e de Rui Barbosa de que a equivalência de todo o (inteiro) e todo (qualquer) "engenhosa e clara, mas falsa", acrescentando que o primeiro dos autores que cita "aduz inúmeros exemplos em que falha tal correlação".12

17) O Código Civil de 1916 nem sempre observava a distinção:

a) "Todo o ato lícito, que tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos, se denomina ato jurídico" (art. 81 - todo o ato lícito está por qualquer ato lícito);

b) "A mulher pode, em todo o caso, reter os objetos de seu uso..." (art. 303 - todo o caso está por qualquer caso);

c) "Estão sujeitos à curatela: I - os loucos de todo o gênero" (art. 446, I - todo o gênero está pela totalidade completa);

d) "A certidão negativa exonera o imóvel e isenta o adquirente de toda responsa­bilidade" (art. 1.137, parágrafo único - toda responsabilidade está por qualquer responsabilidade).

18) O Código Comercial, de igual modo, nem sempre faz a referida distinção:

a) "Todo documento de contrato comercial não ressalvada pelos contraentes com assinatura da ressalva não produzirá efeito algum em juízo..." (art. 134 - a distinção foi observada);

b) "Todo o corretor é obrigado a matricular-se no Tribunal de Comércio do seu domicílio" (art. 38 - a distinção não foi observada).

19) Com essas observações, passa-se à análise da frase trazida para consulta: "Toda a guerra finaliza por onde devia ter começado... a paz". Siga-se este raciocínio:

I) O significado da expressão "toda a guerra" é todas as guerras ou qualquer guerra, e não a guerra inteira;

II) Nessa acepção, usa-se o pronome e o substantivo, sem a interposição do artigo;

III) Está certo, portanto, o leitor, em sua correção: "Toda guerra finaliza por onde devia ter começado... a paz".

________

1Cf. Freire, Laudelino. Estudos de Linguagem. Sem número de edição. Rio de Janeiro: Cia. Brasil Editora, impresso em 1937. p. 53.

2Cf. Bueno, Silveira. Português pelo Rádio. São Paulo: Saraiva & Cia., 1938. p. 65.

3Cf. Nogueira, Júlio. A Linguagem Usual e a Composição. 13. ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1959. p. 31.

4Cf. Oliveira, Édison de. Todo o Mundo Tem Dúvida, Inclusive Você. Porto Alegre: Gráfica e Editora do Professor Gaúcho Ltda., edição sem data. p. 143.

5Cf. Freire, Laudelino. Sintaxe da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Empresa Editora ABC Ltda., 1937. p. 89.

6Cf. Nicola, José de; Terra, Ernani. 1.001 Dúvidas de Português. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 215.

7Cf. Henriques, Antonio; Andrade, Maria Margarida de. Dicionário de Verbos Jurídicos. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1999. p. 75.

8Cf. Silva, A. M. de Sousa e. Dificuldades Sintáticas e Flexionais. Rio de Janeiro: Organização Simões Editora, 1958. p. 295.

9Cf. Silva, Luciano Correia da. Manual de Linguagem Forense. 1. ed. São Paulo: Edipro, 1991. p. 23.

10Cf. Gomes, Alfredo. Gramática Portuguesa. 19. ed. Livraria Francisco Alves, 1924. p. 365.

11Cf. Bueno, Francisco da Silveira. Questões de Português. São Paulo, Saraiva, 1957. 2. vol., p. 476.

12Cf. Henriques, Antonio. Prática da Linguagem Jurídica. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1999. p. 191.