Gerúndio Demitido por Decreto
quarta-feira, 10 de outubro de 2007
Atualizado em 11 de outubro de 2022 13:16
Na semana passada, conforme o "Migalhas" fartamente noticiou, o Governador do Distrito Federal editou o Decreto 28.314, de 28.9.07, pelo qual demitiu (sic!) o gerúndio dos órgãos do Governo do Distrito Federal e proibiu seu uso para desculpa de ineficiência (1.752 - 3/10/07 - "ProibiNDO" - clique aqui). Recuperados da verdadeira estupefação de que foram acometidos, diversos leitores entraram em contato conosco, rogando esclarecimentos e comentários do autor de Gramatigalhas.
1) Pelo Decreto 28.314, de 28.9.07 - refreie o leitor sua estupefação, pois é a estrita verdade o que aqui se fala - o gerúndio foi demitido de todos os órgãos do Governo do Distrito Federal "para desculpa de ineficiência".
2) Um diploma legal tão exótico como esse enseja a oportunidade de algumas importantes considerações sobre o assunto em diversas de suas facetas práticas.
3) Veja-se, como premissa, que o gerúndio tem três valores em português:
I) Circunstancial, em que funciona como adjunto adverbial. Ex.: "Apartando as ondas, os ventos inflavam as velas";
II) Atributivo, quando funciona como adjetivo e, portanto, adjunto adnominal. Ex.: "Ele pôs água fervendo sobre o pó de café";
III) Integrante de locução verbal, em que acrescenta a idéia de continuidade, de ação prolongada. Ex.: "Ele estava trabalhando".1
Anote-se que, em correspondência com esse último caso, em Portugal se costuma empregar o infinitivo preposicionado. Ex.: "Ele estava a trabalhar".
4) Os empregos referidos e os exemplos dados estão em total conformidade com as regras de estruturação lingüística do vernáculo, de modo que, até aqui, não há o que observar adicionalmente.
5) Um primeiro equívoco, porém, entre os casos de galicismos de sintaxe por emprego abusivo do gerúndio, está em seu uso em lugar de uma preposição. Exs.:
I) "Serviu uma taça contendo o melhor vinho branco";
II) "Comprei uma casa tendo quatro quartos..."
Corrijam-se tais frases:
a) "Serviu uma taça com o melhor vinho branco";
b) "Comprei uma casa com quatro quartos..."
6) Um segundo erro está em seu emprego quando não indica uma continuidade de ação (caso em que Edmundo Dantès Nascimento fixa preciosa regra de cunho prático de que, quando indica continuidade de ação, pode o gerúndio ser substituído pelo infinitivo regido pela preposição a). Exs.:
I) "Vi o carro passando a curva do estádio" (correto, pois se pode dizer: "Vi o carro a passar a curva do estádio");
II) "Livro contendo estórias" (errado, pois não pode ser substituído por "Livro a conter estórias".2
7) Outro defeito muito corriqueiro na redação forense, segundo ensino de Geraldo Amaral Arruda, é "o encadeamento de gerúndios, quando um se subordina ao outro". Ex.: "O pesado caminhão, após parar no cruzamento, pôs-se em marcha, desenvolvendo baixa velocidade, levando a vítima a tentar a ultrapassagem, acelerando sua motocicleta, a fim de passar pela frente do caminhão, esperando que ele parasse".
8) Tal erro, ainda conforme lição do referido autor, desfaz-se com a alteração da estrutura e, se for o caso, com o emprego do verbo em outro tempo. Ex.: "O pesado caminhão, após parar no cruzamento, pôs-se em marcha, em baixa velocidade, o que levou a vítima a tentar a ultrapassagem, acelerando sua motocicleta, na expectativa de que ele parasse".3
9) Além disso, nos últimos tempos, quer como tentativa de aparentar uma ilusória erudição ou ilustração na fala, quer por influência do emprego dos tempos compostos em inglês, surgiu uma nova praga no vernáculo, a que se pode chamar de linguagem de telemarketing: as mocinhas encarregadas das mensagens ao telefone são ensinadas a usar perífrases verbais inexistentes no idioma, locuções compostas de diversos verbos a rigor desnecessários, com pretensão de expressão polida e elevada. Exs.:
I) "Já que a dona da casa não se encontra, quando vou estar podendo entrar em novo contato com ela?";
II) "Ou será que ela vai estar podendo retornar a ligação?"
10) Veja-se a correção de tais exemplos:
I) "Já que a dona da casa não se encontra, quando poderei entrar em novo contato com ela?";
II) "Ou será que ela poderá retornar a ligação?"
11) Longe de se buscar a correção de tais estruturas, paira no ar a impressão de que as pessoas se muniram do sentimento de que quanto mais alongam tais locuções verbais, mais se mostram eruditas e maior é o peso e seu poder de convencimento.
12) Ante um tal quadro, o Governador do Distrito Federal, com a edição do famigerado Decreto 28.314, de 28.9.07 - será porque não mais vai estar podendo suportar a situação? - , resolveu demitir o gerúndio do Distrito Federal e regrou a situação do seguinte modo:
I) "Fica demitido o gerúndio de todos os órgãos do Governo do Distrito Federal" (art. 1º);
II) "Fica proibido a partir desta data o uso do gerúndio para desculpa de INEFICIÊNCIA" (art. 2º).
13) Uma primeira observação final a esse respeito é que, assim como malograram tentativas anteriores com relação à fome e à inflação, também o certo é que não se melhora por decreto a qualidade do usuário do idioma, e, assim, talvez mais aconselhável seja investir, por exemplo, na melhoria da educação.
14) Uma segunda observação concerne ao fato de que, ainda que fosse possível o intento estampado no referido decreto, seria indispensável ressalvar os casos em que o gerúndio se emprega de modo necessário e correto, o que, assim, não estaria abrangido pela demissão.
15) Por fim, ainda que se leve a sério o risível decreto, não se pode esquecer que se trata de norma que não prevê penalidade para o caso de descumprimento. E norma sem sanção fica sem o poder essencial de coação que a caracteriza, de modo que a transforma em mero conselho. E, em última análise, a função da lei não é aconselhar.
_________
1Cf. MELO, Gladstone Chaves de. Gramática Fundamental da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1970. p. 294-299.
2Cf. NASCIMENTO, Edmundo Dantes. Linguagem Forense. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1982. p. 144.
3Cf. ARRUDA, Geraldo Amaral. Como Aperfeiçoar Frases. São Paulo: edição interna do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, 1987. p. 22-23.