Juízo "a quo" e Instância "a qua"?
quarta-feira, 19 de outubro de 2022
Atualizado às 08:34
1) Um leitor envia a seguinte mensagem: "Gostaria de saber se, quando o tribunal faz referência ao Juízo de Primeiro Grau, pode empregar a expressão "instância 'a qua'", como feminino de "Juízo "a quo'".
2) O leitor, em última análise, traz à baila o polêmico e tormentoso problema de variação das palavras e expressões latinas utilizadas em nosso idioma, para o que não há regramento específico emanado dos órgãos competentes, de modo que o que se tenta aqui é solucionar a questão por um raciocínio cientificamente correto, com o acompanhamento do bom-senso que deve nortear soluções dessa natureza.
3) Esclareça-se, desde logo, que, no latim, as palavras, além do gênero (masculino, feminino e neutro) e número (singular e plural), também têm os casos (o que significa que, conforme a função sintática, a palavra deve ir para um caso específico, que tem uma forma própria). E se acrescenta que as terminações dos casos são diferentes para o singular e para o plural.
4) Além disso, deve-se partir do princípio de que palavras e expressões vindas do latim podem-se cristalizar em português de maneiras diversas: a) campus veio na forma do nominativo (caso latino que serve para desempenhar a função sintática de sujeito); b) quorum sedimentou-se aqui na forma do genitivo (caso que serve para exercer a função do antigo complemento restritivo, hoje adjunto adnominal na maioria dos casos); c) a quo veio na forma do ablativo por influência da preposição antecedente (caso que normalmente serve para desempenhar a função de complemento circunstancial, hoje adjunto adverbial); d) ad quem, de igual modo por influência da preposição antecedente, veio no acusativo (que normalmente serve para a função de objeto direto).
5) Como não é de difícil compreensão, essa cristalização do vocábulo estrangeiro em nosso idioma e seu emprego em estruturas sintáticas vernáculas ocorrem (i) sem preocupação de qual seja sua função sintática na oração em português e (ii) sem vínculo com a estrutura sintática do latim; (iii) e se deve observar que, no português, não existe o gênero neutro, que há em latim.
6) Ante esse quadro, se alguém quiser levar em conta a variação do vocábulo latino seguindo os parâmetros de nosso idioma, diversas circunstâncias vão ser tormentosas: (i) judicium (que é juízo em latim) é do gênero neutro, e isso foge ao nosso raciocínio, já que não temos esse gênero em português; (ii) a expressão a quo está no ablativo, e o português não tem os casos, que são próprios daquela língua; (iii) se quisermos usar alterar o gênero (porque o contexto pode dar a entender tratar-se de feminino), também deveremos alterar o caso (conforme seja a função sintática do vocábulo na estrutura).
7) E, assim, fixem-se três importantes premissas para a expressão da consulta, que significa, em síntese, a instância, o juízo ou tribunal do qual se recorre: a) a quo é o ablativo singular masculino ou neutro do pronome relativo latino qui, quae, quod; b) tal expressão, embora continue latina, cristalizou-se no uso vernáculo desse modo, e em geral vem precedida de um substantivo (normalmente instância, juízo ou tribunal); c) contrapõe-se à expressão ad quem, que aponta o tribunal para o qual se recorre. Ex.: "A competência para analisar o mérito dos recursos, em regra, é do tribunal ad quem, e não do juízo a quo".
8) Para melhor didática, considerem-se, em português, os seguintes exemplos: a) "O tribunal do qual se recorre..."; b) "A instância da qual se recorre..."; c) "Os tribunais dos quais se recorre..."; d) "As instâncias das quais se recorre...".
9) Em todos os exemplos, a estrutura sintática é exatamente a mesma: a) qual é um pronome relativo; b) o pronome relativo, por conceito e comportamento, relaciona-se a um nome anteriormente mencionado e com ele concorda em gênero (masculino ou feminino) e número (singular ou plural), concordância essa que é perceptível quando o pronome é qual, já que o que é invariável; c) assim, se o antecedente é "tribunal", o pronome relativo concorda no masculino singular; d) se, porém, o antecedente é "instâncias", o pronome relativo vai para o feminino plural.
10) Se alguém quiser defender a variabilidade da expressão da consulta no latim, mesmo aqui não se pode esquecer que, por coerência, haverá a flexão não apenas para o feminino, mas também para o plural: a) "... o tribunal a quo..."; b) "... a instância a qua..."; c) "... os tribunais a quibus..."; d) "... as instâncias a quibus...".
11) E se vejam as implicações desse raciocínio: a) um emprego assim exige do usuário do vernáculo uma informação que ele normalmente não tem da língua de origem da expressão; b) ou seja, exige dele conhecimento razoável de latim; c) a par disso, além de não termos o gênero neutro em português, também não há correspondência absoluta de gênero em ambos os idiomas; d) isso quer significar que um vocábulo feminino em latim pode ter vindo para o masculino em português, e vice-versa; e) nesse quadro, variar o antecedente de um pronome relativo em latim por seu antecedente em português pode ser equivocado, ante o fato de que o gênero em latim pode ser outro.
12) Por tudo isso, com o devido respeito pelos que pensam de modo diverso, a melhor solução parece obedecer aos seguintes parâmetros para o emprego de palavras e expressões latinas em português: a) tais palavras e expressões estrangeiras não devem ter acentos gráficos ou hifens, já que estes não existiam na língua de origem; b) devem ser grafadas em itálico, negrito, com sublinha ou entre aspas, como todas as palavras que não pertencem a nosso idioma; c) devem desvincular-se de sua função sintática de origem para efeito de suas flexões em português, quer quanto ao gênero (masculino e feminino), quer quanto ao número (singular e plural); d) devem ser empregadas como vieram sedimentadas para o uso no português, sem variações como as pretendidas na consulta: i) "... o tribunal a quo..."; ii) "... a instância a quo..."; iii) "... os tribunais a quo..."; iv) "... as instâncias a quo...".
13) Qualquer outra solução desrespeita a etimologia, fere os critérios mínimos científicos e marginaliza o próprio bom-senso, além de tornar o emprego em português um tormento adicional gravíssimo para o usuário médio do idioma.