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Não se faz ou Não se fazem?

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Atualizado às 10:53

O leitor Wagner Baggio envia à coluna Gramatigalhas a seguinte mensagem:

"Gostaria que o professor me esclarecesse como é certa a flexão do verbo fazer na frase 'Não se faz cidades inteligentes sem administradores inteligentes'; ou seria 'Não se fazem cidades inteligentes sem administradores inteligentes'?"

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1) Um leitor envia a seguinte indagação: "Gostaria de que o professor me esclarecesse como é certa a flexão do verbo fazer na frase 'Não se faz cidades inteligentes sem administradores inteligentes'; ou seria 'Não se fazem cidades inteligentes sem administradores inteligentes'"?

2) Em realidade, a necessidade de algumas explicações técnicas exige um raciocínio mais prolongado, razão pela qual se pede paciência do leitor para acompanhar o raciocínio mais extenso, a começar por um primeiro bloco de premissas.

3) Parte-se do princípio de que voz ativa e voz passiva são duas maneiras sintaticamente diversas de dizer a mesma realidade de fato, conforme o sujeito pratique ou receba a ação indicada pelo verbo: (i) "O magistrado proferiu a sentença" (voz ativa, porque o sujeito magistrado pratica a ação indicada pelo verbo proferir); (ii) "A sentença foi proferida pelo magistrado" (voz passiva, porque o sujeito sentença recebe a ação indicada pelo verbo proferir).

4) Embora se pretenda utilizar no mínimo as explicações técnicas, não se pode fugir aqui à afirmação de que, por um lado, o objeto direto da voz ativa (no caso, sentença) torna-se sujeito da voz passiva, enquanto, por outro lado, o sujeito da voz ativa (no exemplo, magistrado) passa a ser o agente da passiva.

5) Também como regra, pela própria estruturação apresentada (já que é necessário existir um objeto direto na ativa para haver voz passiva), só tem voz passiva um verbo que seja transitivo direto ou transitivo direto e indireto (também conhecido como bitransitivo).

6) Num segundo bloco de premissas, vê-se que, diferentemente da frase "Gosta-se de um bom vinho" - com a qual deve ser sempre comparada em análise - uma frase como "Aluga-se uma casa", em que há um se acoplado ao verbo, pode ser dita de outra forma: "Uma casa é alugada".

7) E, por permitir essa transformação, pode-se dizer que é uma frase reversível, que serve de modelo para todas as outras, também reversíveis, que tenham o se unido ao verbo desse modo.

8) Em frases reversíveis dessa natureza, podem-se extrair as seguintes conclusões: (i) se a frase é reversível, o exemplo está na voz passiva sintética; (ii) o se, nesse caso, é partícula apassivadora; (iii) o sujeito é uma casa (insista-se, sujeito e não objeto direto).

9) Por essas razões, se, em vez de uma casa, se diz casas, tem-se, por consequência, que o sujeito está no plural, de modo que o verbo também deve ir para o plural ("Alugam-se casas", e não "Aluga-se casas").

10) Por outro lado, na frase "Gosta-se de um bom vinho", não é possível dizê-la de outro modo, de modo que se pode afirmar que não é uma frase reversível, e nela o raciocínio que se faz é o seguinte: (i) se não é reversível, uma frase assim tem um sujeito indeterminado (equivale a "Alguém gosta de um bom vinho"); (ii) nesse caso, o se se chama símbolo (ou índice) de indeterminação do sujeito; (iii) o termo "de um bom vinho" é objeto indireto; (iv) na prática, se esse termo é preposicionado (como no caso, em que é precedido pela preposição de), isso já é sinal de que a frase não é reversível; (v) como "um bom vinho" não é o sujeito, se ele é posto no plural, o verbo em nada é afetado ("Gosta-se de bons vinhos"), já que, afinal, a regra diz que o verbo concorda com o seu sujeito.

11) Com essas premissas, podem-se extrair algumas conclusões para a dúvida do leitor: (i) se a frase permite reversão, então deve ela ser tratada como efetiva frase reversível, não admitindo outro raciocínio; (ii) na prática, se "Não se fazem cidades inteligentes sem administradores inteligentes" permite ser tornada em "Cidades inteligentes não são feitas sem administradores inteligentes", não se pode pretender raciocinar conferindo ao exemplo a conotação semântica de "Ninguém faz cidades inteligentes sem administradores inteligentes"; (iii) e isso quer dizer (a) que ele está na voz passiva sintética, (b) que o se é partícula apassivadora e (c) que o sujeito é cidades inteligentes, de modo que seu único modo de ir para o plural é "Não se fazem cidades inteligentes..."; (iv) vale dizer, ao revés, que não se pode pensar como se o exemplo estivesse na voz ativa, sendo o se um índice de indeterminação do sujeito, e como se cidades inteligentes fosse um objeto direto; (v) insista-se em que a consideração do exemplo como frase reversível é obrigatória, e não optativa, e também obrigatórias são as conclusões, tais como acima extraídas.

12) Confirmando o raciocínio acima realizado, lembre-se o ensino de Mário Barreto: "Pondo de lado discussões teóricas, complicadas e difíceis, todos, na prática, estamos de acordo, sábios e leigos, em que viu-se muitas desgraças, aceita-se comensais, via-se lindas flores, aqui vende-se jornais [...] são concordâncias absolutamente intoleráveis em português".1

13) Ou seja: pelas observações já feitas, tais frases, exatamente por serem reversíveis, devem ser obrigatoriamente assim corrigidas: viram-se muitas desgraças, aceitam-se comensais, viam-se lindas flores, aqui vendem-se jornais.

14) Vale, em abono, registrar a observação de Júlio Nogueira2, para quem, em situações dessa natureza, a índole de nossa língua exige que se concorde o verbo com o seu sujeito (Alugam-se casas), do mesmo modo como usaríamos o plural com outra forma passiva (Casas são alugadas).

15) Atente-se, de igual modo, à admoestação de Eduardo Carlos Pereira de que "são, pois, solecismos, que importa evitar, as expressões: Corta-se árvores, Vende-se queijos, Conserta-se relógios, Compra-se livros usados, Ferra-se cavalos".3

16) A exemplo de ensino anterior, tais frases devem ser assim corrigidas: Cortam-se árvores, Vendem-se queijos, Consertam-se relógios, Compram-se livros usados, Ferram-se cavalos.

17) Ainda se deve lembrar que, a um consulente que lhe indagava qual a forma correta - Fez-se tentativas ou Fizeram-se tentativas -, Cândido de Figueiredo, asseverando que, "a este respeito, não pode haver duas opiniões fundamentadas", observava ser "pecado grave contra a língua portuguesa" a primeira forma, que "é construção francesa, e portanto galicismo de frase, além de erro de gramática".4

18) De modo objetivo, responde-se à indagação do leitor: a única forma correta de dizer no plural o exemplo por ele proposto é "Não se fazem cidades inteligentes sem administradores inteligentes"; é errado em português, portanto, dizer e escrever "Não se faz cidades inteligentes sem administradores inteligentes".

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1 BARRETO, Mário. Através do Dicionário e da Gramática. 3. ed. Rio de Janeiro: Organização Simões Editora, 1954, p. 263.

2 NOGUEIRA, Júlio. A Linguagem Usual e a Composição. 13. ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1959, p. 72.

3 PEREIRA, Eduardo Carlos. Gramática Expositiva para o Curso Superior. 15. ed. São Paulo: Monteiro Lobato & Cia., 1924, p. 321.

4 FIGUEIREDO, Cândido. Falar e Escrever. 6. ed. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1948, vol. I, p. 13-14.