Artigos 18 e 18-A da Lei Pelé: Governança e Fair Play Administrativo no Desporto
quarta-feira, 16 de março de 2022
Atualizado às 07:34
Quando se fala em Desporto, é preciso contextualizar a sua importância e relevância social, que transcendem, e muito, o mero intuito lúdico e puramente desportivo de sua prática, para alcançar, com riqueza de conteúdo, uma essencial função social. Seu notório poder transformador justifica o tratamento constitucional dado ao fenômeno esportivo, em especial por meio do dever de fomento público de que trata o artigo 217 da Constituição Federal1, medula espinal do Ordenamento Jurídico Desportivo pátrio, para nos valermos de expressão do saudoso professor Álvaro Melo Filho, um dos baluartes do Esporte e do Direito Desportivo brasileiro.
Quer o presente artigo, nada obstante as peculiaridades e os muitos detalhes que permeiam o amplo e, ao mesmo tempo, específico mundo do esporte, delimitar suas reflexões a um tema único e cada vez mais usual no contexto da aplicação de elementos ligados ao conceito de Governança e de boas práticas de gestão, considerando a necessária observância, por integrantes2 do Sistema Nacional do Desporto de que trata o artigo 13 da lei 9.615/98 (a Lei Pelé), às exigências legais dispostas nos artigos 18 e 18-A da citada lei Federal3 como condição de acesso a recursos de natureza pública (basicamente os provenientes da lei 13.756/18) e/ou benefícios fiscais, na esteira do próprio dever constitucional de fomento atribuído ao Estado.
Vale desde logo apontar que o legislador atribuiu ao então Ministério do Esporte, hoje Secretaria Especial do Esporte vinculada ao Ministério da Cidadania, a averiguação do cumprimento aos citados dispositivos, que, por meio da Portaria ME 115/18,4 regulamentou o cenário para fins de emissão da respectiva Certidão de Registro Cadastral (Certificação), cuja obtenção atesta ao seu portador o efetivo atendimento à legislação e representa espécie de "cartão verde" para a apresentação de projetos e obtenção de recursos públicos no esporte brasileiro, presumindo-se o atendimento e uma aderência estrutural a elementos voltados à Governança, em especial no que se refere à transparência e ao controle social.
Aliás, é importante esclarecer, embora já subentendido no texto, que a preocupação no atendimento integral à legislação e no repasse de recursos públicos se dá em contexto de relevante interesse público e no âmbito de atuação público-privada. O fomento pelo Estado, na delimitação da matéria ora tratada, ocorre em sistema do qual fazem parte entidades de natureza associativa privada, dotadas de peculiaridades, especificidades e de dinamicidade que reclamam, e de fato se lhe atribuem por via constitucional (art. 217 da CF), a plena autonomia administrativa em matéria interna corporis, i.e., nos assuntos referentes à sua organização e funcionamento internos. Resulta-se, assim, na frequente discussão, que neste momento não se desenvolverá, acerca de uma pretensa (in)constitucionalidade dos dispositivos legais5, os quais, de certa forma, compelem referidas entidades a adaptarem seus normativos internos, muitas vezes históricos e centenários, a exemplo do soberano Estatuto Social de uma associação civil de natureza esportiva.
Diante da abordagem geral e genérica do presente artigo, vale o convite ao leitor para uma rápida leitura dos dispositivos legais em comento6, até porque, conforme se verá, são curtos e objetivos, cabendo, porém, breves linhas para demonstrar que a grande preocupação do legislador, impulsionado por movimentos de atletas e demais stakeholders do sistema, e justificada pelos fatos históricos de algumas entidades esportivas imersas em ambiente de fraudes e corrupção, foi a busca pela moralização do esporte, tanto na perspectiva administrativa e, portanto, na atividade meio das entidades esportivas, quanto na perspectiva propriamente esportiva e, in casu, de rendimento, no contexto de suas atividades finalísticas. Nesse cenário, é certo considerar que a má gestão e os respectivos atos temerários, fraudulentos e de natureza corruptiva refletem direta e negativamente nos próprios contornos finalísticos do esporte nacional, trazendo grave prejuízo à própria função social, essencial, a que se atribui ao fenômeno esportivo.
E neste contexto, é possível sintetizar a questão no sentido de que somente serão beneficiadas com isenções fiscais e repasses de recursos públicos federais, da administração direta e indireta, as entidades do SND que verdadeiramente possuam viabilidade e autonomia financeiras para a gestão dos referidos recursos, que estejam em conformidade com a legislação, que estejam adimplentes com as respectivas obrigações fiscais e trabalhistas, que garantam alternância no poder, que garantam independência e autonomia de Conselho Fiscal e que garantam transparência na gestão, além da participação efetiva de stakeholders na gestão, a exemplo dos atletas das variadas modalidades esportivas, que representam, e o são, por evidente, os maiores interessados e protagonistas do próprio sistema. Não descurando, ainda, da necessária observância aos princípios de gestão democrática, da implementação de instrumentos eficazes de controle social e de controle interno e da garantia de lisura nos procedimentos eleitorais, inclusive com a proporcionalidade e razoabilidade que viabilizem maior democracia nas respectivas Assembleias Gerais de cunho eleitoral.
Como se observa, e sem a adoção de qualquer juízo de valor acerca da conveniência ou não da hiper-regulação a que se acostuma o cidadão brasileiro, ao esporte, que por sua própria natureza é dotado de regras, se impõe, frequentemente, outras mais, sobretudo no que se refere à sua estrutura organizacional e administrativa, com vistas a uma proteção estatal àquilo que o esporte, de forma evidente, representa na Sociedade. Daí a justificar-se as barreiras e imposições, ao menos quando do tratamento específico do dinheiro público, à atuação administrativa e gerencial no Desporto.
E é neste contexto que, recordando a aplicação de princípios esportivos e, portanto, próprios desta seara, joga-se luz ao dos mais importantes, nominado "Fair Play", ou, popularmente conhecido como "Jogo Justo", "Jogo Limpo", ou, ainda, "Espírito Desportivo", traduzido na necessária adequação do intérprete e dos destinatários da norma às especificidades tão notáveis do já exaltado fenômeno esportivo. Esse princípio já fundamentou, na busca pelo equilíbrio técnico das competições, o próprio estabelecimento de uma política de responsabilidade financeira lato sensu, a abarcar os conceitos fiscais e laborais no esporte, tanto a nível internacional quanto a nível nacional, com a nominação do já conhecido "Fair Play Financeiro", viabilizando ou fazendo nascer, ao menos em termos iniciais e reflexivos, no contexto da matéria a que se refere este artigo, e diante das regras impostas pelo Estado com vistas ao aprimoramento do sistema, um verdadeiro "Fair Play Administrativo" no Desporto, termo, portanto, que ousamos sugerir, visando contribuir com a evolução do esporte brasileiro e internacional, a partir da adoção, especialmente voluntária, dos importantes elementos de Governança em discussão.
Resta oportuno ressaltar, nada obstante, que as regras, sejam elas públicas ou privadas, não necessariamente representam o canal de salvação de qualquer que seja o setor, sendo certo afirmar que as mudanças de paradigma e a efetiva adoção de instrumentos de Governança dependem, muito mais, do aprimoramento da cultura e do ajuste das condutas daqueles que se propõem a gerir, e daqueles que se propõem, na qualidade de integrantes do respectivo sistema, a participar ativamente de sua evolução, em prol da coletividade e do desenvolvimento sustentável, neste caso, do esporte nacional.
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1 Disponível aqui.
2 Neste particular, vale ressalvar a necessária diferenciação entre as entidades componentes do citado SND, havendo discussões, consubstanciadas em Pareceres de órgaos públicos e entidades privadas, em decisões judiciais e em Acórdãos do Tribunal de Contas da União (TCU), que delimitam o alcance desta obrigatoriedade, sobretudo na consideração da natureza jurídica e da fonte dos recursos, se oriundos por meio de comando legal e, portanto, direto, ou se pela via da descentralização.
3 Vale ressaltar a necessária observância de outros dispositivos legais, para além dos artigos 18 e 18-A da Lei Pelé, como condição de acesso aos recursos públicos e benefícios fiscais a que se refere o presente estudo, a exemplo dos artigos 22, 23 e 24 da mesma Lei, não diretamente abordados neste momento em vista da delimitação temática do artigo.
4 Atualizada após a edição da lei 13.756/18, pela Portaria - ME 392, de 31 de dezembro de 2018.
5 Ressalta-se que os recursos destinados ao SND são de natureza pública, razão pela qual a legislação, conforme artigo 25[5] da lei 13.756/18, assegura a fiscalização da aplicação dos referidos recursos pelo Tribunal de Contas da União - TCU, o qual entende como de necessária observância as exigências legais contidas nos artigos 18 e 18-A da Lei Pelé, tendo em vista que tais dispositivos visam garantir a transparência, o controle e a eficiência na utilização dos recursos públicos.
6 Disponível aqui.