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Ines Härtel: juíza do Tribunal Constitucional alemão chega ao Brasil

terça-feira, 20 de agosto de 2024

Atualizado em 19 de agosto de 2024 10:30

Chega ao Brasil esta semana a profa. dra. Ines Härtel, ministra do Tribunal Constitucional alemão (Bundesverfassungsgericht), para uma rodada de palestras organizada por essa articulista. É a primeira vez que Härtel visita o país e isso tem uma importância singular para o diálogo jurídico entre ambos os ordenamentos jurídicos, que, não custa lembrar, têm base juscultural comum: o direito romano-germânico.

Oriunda de Strassfurt, no estado de Sachsen-Anhalt, antiga Alemanha Oriental, Härtel nasceu e cresceu sob o regime soviético. Após a queda do muro em 9/11/1989, foi estudar direito na Universidade de Rudolf von Jhering: a Georg-August Universität, em Göttingen.

Em 2001, concluiu o doutorado na mesma universidade em tese nas áreas do direito agrário e ambiental. Atuou nesse período como assistente (wissenschaftliche Mitarbeiterin) na cátedra de direito público, finalizando, em 2005, sua Habilitation, equivalente à nossa tese de livre-docência, na qual abordou a simbiose existente entre os direitos público, europeu e comparado.

Entre 2003 e 2009, Härtel liderou o Instituto de Direito Agrário da faculdade, assumindo na sequência, de 2009 a 2014, a cátedra de direito público, administrativo, agrário, ambiental e europeu na Ruhr-Universität de Bochum até ser convidada para a Europa-Universität Viadrina, em Frankfurt an der Oder, instituição onde leciona desde 2014.

Paralelamente à meteórica carreira acadêmica, Härtel atuou na magistratura. De 2017 a 2019, ocupou o cargo de desembargadora no Tribunal de Justiça Administrativo (Oberverwaltungsgericht) de Berlim-Brandenburg até ser nomeada, em 2020, para o Tribunal Constitucional.

Ines Härtel vem ao Brasil tratar de tema premente e atual, que reclama atenção tanto no Brasil, como na Alemanha: a proteção climática na jurisdição constitucional. Ela falará no dia 27 de agosto na Procuradoria do Município do Rio de Janeiro, em 29 de agosto no Tribunal de Justiça do Amazonas e dia 03 de setembro no Palácio do Itamaraty, em Brasília.

Todos os eventos terão tradução simultânea e contam com o apoio da Embaixada da Alemanha e da Associação Luso-Alemã de Jurista (Deutsch-Lusitanische Juristenvereinigung).

Abaixo, uma entrevista exclusiva com Ines Härtel sobre questões urgentes que afligem a sociedade e o direito na atualidade, como regulação das plataformas, fake news e discursos de ódio nas redes, ataques à democracia e proteção climática, que contou com a colaboração especial do Prof. Dr. Tiago Fensterseifer, Defensor Público em São Paulo, especialista em direito ambiental. Confira!

A Alemanha tem longa experiência com notícias falsas e discursos de ódio. A máquina de propaganda nazista, em particular, não só espalhou o ódio, mas também a desinformação entre a população. Esses fenômenos são muito diferentes hoje em dia? 

IH: De fato, desinformação e mensagens de ódio direcionadas não são fenômenos novos. No entanto, as suas causas e seus efeitos mudaram ao longo do tempo. As fake news e os discursos de ódio podem hoje ser difundidos anonimamente com maior facilidade na internet. Muitas vezes, é impossível até identificar posteriormente os autores de notícias falsas. A isso acresça-se a rapidez com que as mensagens de ódio se propagam na rede. As pessoas atingidas dificilmente podem se defender de forma eficaz quando essas notícias são visualizadas e compartilhadas milhares de vezes num espaço de tempo muito curto. E os grandes avanços no desenvolvimento da inteligência artificial generativa aumentaram ainda mais esse potencial de risco. Através de softwares de deepfake disponíveis gratuitamente na rede, as campanhas de desinformação podem parecer enganosamente reais e a reputação de uma pessoa pode ser permanentemente lesada por imagens e vídeos falsos, produzidos sem grandes desafios técnicos. Infelizmente, precisamos estar preparados para o fato de que o reconhecimento dessas falsificações no espaço digital se tornará cada vez mais difícil no futuro. 

Como a lei na Alemanha combate as fake news e hate speech nas mídias sociais? 

IH: Em 2017, a Alemanha assumiu um papel pioneiro na luta contra as fake news e os discursos de ódio com a chamada "Lei para melhorar a aplicação do direito nas redes sociais" (Gesetz zur Verbesserung der Rechtsdurchsetzung in sozialen Netzwerken - NetzDG). Dentre outras coisas, essa lei obrigou as redes sociais a remover ou bloquear o acesso a conteúdos manifestamente ilegais no prazo de 24 horas após o recebimento de uma reclamação. Além disso, desde então, as redes sociais também têm o dever de apresentar relatórios regulares informando como elas têm combatido as notícias falsas e discurso de ódio, e quais critérios de decisão estão sendo adotados para o apagamento e/ou bloqueio desses conteúdos ilegais. Nesse ínterim, a União Europeia copiou o exemplo alemão de combate às fake news e discursos de ódio nas redes. A Lei dos Serviços Digitais (Digital Services Act - DSA), que substituiu em grande parte a NetzDG, está plenamente em vigor desde fevereiro. Para a implementação do regulamento europeu, foi criado em maio na Alemanha um novo centro de coordenação para serviços digitais na Agência Federal de Redes (Bundesnetzagentur), que tem competência, dentre outras coisas, para controlar o cumprimento do DSA, receber reclamações de usuárias e usuários e impor sanções em casos de infração legal. Outro elemento fundamental na luta contra as fake news é o regulamento europeu sobre inteligência artificial. Ele prevê, pela primeira vez, uma obrigação de transparência para as deepfakes e deverá entrar em vigor em 2026. Além disso, as autoridades responsáveis pela persecução penal continuam a desempenhar um papel importante no combate ao ódio e difamações de todo tipo na rede. 

Por que é tão difícil regular as plataformas? 

IH: A consciencialização da necessidade de regulamentação aumentou significativamente nos últimos anos. Esse fato é evidenciado por uma série de novos regulamentos alemães e europeus que tratam não só de desinformação e discursos de ódio, mas também de outras questões relacionadas com as plataformas online, como a concentração de poder de mercado entre alguns poucos fornecedores e os riscos relacionados com o desenvolvimento da inteligência artificial. Os problemas que se colocam são múltiplos. Por um lado, as plataformas oferecem a seus usuários novas oportunidades de participar na formação da opinião pública e têm, por isso, grande relevância social. Por outro lado, também oferecem um grande potencial de abuso com as notícias falsas e os discursos de ódio. A regulação do espaço digital deve encontrar o equilíbrio certo entre a proteção contra conteúdos nocivos e a salvaguarda da liberdade de expressão. Evidentemente, o constante desenvolvimento tecnológico das plataformas e a sua disseminação global tornam a regulação ainda mais difícil, de modo que uma regulação realmente eficaz exigiria acordos transfronteiriços. 

Qual é o limite da liberdade de expressão na visão do Tribunal Constitucional alemão? E mais: pode-se defender ideias antidemocráticas de forma constitucional na Alemanha? 

IH: A democracia vive da liberdade de opinião. O necessário debate de ideias só é possível quando os diferentes pontos de vista puderem ser livremente manifestados no discurso público. A Lei Fundamental confia no poder desse debate como a arma mais eficaz contra as ideias antidemocráticas. É por isso que a Lei Fundamental não justifica uma proibição geral de difusão de ideias antidemocráticas. Em vez disso, ela confia que as ideias antidemocráticas sejam combatidas com o engajamento cívico. Porém, a liberdade de expressão também tem limites. E eles são certamente ultrapassados quando a tônica já não é colocada em um debate sobre o mérito, mas sim na difamação ou na depreciação de outras pessoas ou de grupos de pessoas. Nesses casos, pode surgir uma responsabilização penal por injúria ou incitamento ao ódio. No contexto das fake news, a divulgação deliberada de fatos inverídicos também não é abrangida pela proteção da liberdade de expressão, uma vez que a informação falsa não é um bem digno de proteção. 

Quais são os pressupostos para a proibição de partidos políticos na Alemanha e por que tem sido tão difícil proibir partidos antidemocráticos? 

IH: Na Alemanha, um partido só pode ser proibido pelo Tribunal Constitucional Federal mediante requerimento do Parlamento (Bundestag), do Conselho Federal (Bundesrat) ou do Governo Federal. Na prática, é necessário que o partido esteja trabalhando ativa e sistematicamente com o objetivo de prejudicar a nossa ordem fundamental livre e democrática, e que existam, adicionalmente, indícios concretos de que esse projeto possa ser bem sucedido. As barreiras para a proibição partidária são elevadas. A democracia defensiva depende de pessoas na política, na economia e na sociedade que respeitem e defendam os valores da Lei Fundamental, e se comprometam a lutar por eles. Em outras palavras: "A democracia precisa de democratas". 

O que significa a dimensão intergeracional dos direitos fundamentais e qual status constitucional têm as gerações futuras no direito alemão, de acordo com a decisão do Tribunal Constitucional no processo Neubauer versus Alemanha? 

IH: "O Estado protege os fundamentos naturais da vida também em responsabilidade pelas gerações futuras..." - Essa é a disposição do art. 20a da Lei Fundamental, incorporado à Lei Fundamental em 1994 e que determina os objetivos do Estado. Ao mesmo tempo, o direito fundamental à vida e à integridade física obriga o Estado a proteger seus cidadãos contra os perigos das alterações climáticas. Neste contexto, o Tribunal Constitucional decidiu em 2021 que devemos tratar o nosso meio ambiente com tal grau de cuidado que as gerações futuras não precisem adotar medidas radicais de sustentabilidade ambiental. Portanto, não podemos simplesmente transferir os encargos associados à transição para uma neutralidade climática para as futuras gerações. A garantia da liberdade futura vem descrita no acórdão do Tribunal Constitucional sobre a proteção do clima como uma garantia de liberdade intertemporal.

Estas questões de justiça intergeracional não se colocam apenas em relação à proteção do clima e do meio ambiente. Outras disposições da Lei Fundamental, como o limite do endividamento do Estado, destinam-se também a proteger as futuras gerações contra encargos excessivos. Os custos futuros com segurança social, saúde, aposentadoria, assim como os custos do progresso tecnológico serão debatidos também neste sentido - tendo em vista ainda a evolução demográfica. No entanto, ainda é questionável se a ideia de justiça intergeracional representa um princípio constitucional geral. As tentativas de a incluir expressamente entre um dos objetivos do Estado na Constituição alemã fracassaram até agora. 

Qual o papel das cortes constitucionais e da jurisdição constitucional na defesa dos interesses e direitos fundamentais dos mais jovens (crianças e adolescentes) e das gerações futuras em matéria de meio ambiente e clima? 

IH: A maioria dos autores da reclamação constitucional na decisão do clima de 2021, acima mencionada, eram crianças e adolescentes. Em julho do ano passado, o Tribunal Constitucional austríaco também teve de se pronunciar sobre um pedido de doze crianças relacionado com a lei austríaca de proteção climática, o qual, porém, fora rejeitado como inadmissível por razões formais. Enquanto "guardião da Constituição", o Tribunal Constitucional alemão assegura que o legislador cumpra a sua missão constitucional de proteger o clima e o meio ambiente para as gerações futuras. A Lei Fundamental, contudo, não especifica em pormenor o que deve ser regulamentado para criar as condições para o desenvolvimento de alternativas neutras para o clima. É responsabilidade do legislador iniciar o mais cedo possível os processos de desenvolvimento e implementação necessários à defesa climática.