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Direito ao reparo na era do feudalismo digital

terça-feira, 4 de junho de 2024

Atualizado às 07:41

Em fevereiro deste ano, o Parlamento e o Conselho Europeu aprovaram proposta de lei que assegura aos consumidores o direito de reparar seus produtos. O texto ainda precisa ser formalmente aprovado e publicado no diário oficial para entrar em vigor, mas isso deve ser apenas uma questão de tempo1.

Com isso, a Europa reconhecerá mais um direito aos consumidores europeus: o right to repair ou, no vernáculo alemão, Recht auf Reparatur, o qual inclui até o direito de consertar parafernálias digitais, como smartphones e tablets.

A razão para a intervenção do legislador é simples: todos os anos são produzidos cerca de 35 milhões de toneladas de lixo e sucata somente na Europa, porque os produtos, em vez de consertados, são substituídos por novos.

Em muitos casos, é mais barato e/ou conveniente trocar um produto defeituoso do que consertá-lo. Em outros, o consumidor não tem alternativa: é forçado a substituir o bem, seja porque o fabricante não faz reparos, seja porque a própria construção do produto impede o conserto.

Quem não conhece alguém que "ganhou" um celular novo, porque a Apple não consertava o defeito do aparelho antigo? Ou que precisou trocar o notebook por causa de um defeito na tecla "enter"?2 A realidade mostra que atualmente o conserto tem se mostrado mais caro que a substituição: consertar a tela de um smartphone é tão ou mais caro do que comprar um novo.

Essa é a lógica da chamada economia linear. Calcada na obsolescência programada, essa economia se estrutura sobre as fases estanques da extração, industrialização, comercialização e descarte dos produtos. E, ao contrário do esperado, o avanço tecnológico não inverteu, mas agravou essa lógica.

Com efeito, os grandes fabricantes concentram em suas mãos o monopólio da produção, distribuição e manutenção dos dispositivos eletrônicos, impedindo usuários e oficinas não autorizadas de mexer em seus equipamentos, sob pena de perda da garantia ou do aparelho não voltar a funcionar. Um bom exemplo disso são os celulares da Apple que impedem a bateria de recarregar quando detectam o carregador "pirata" de outro fabricante.

O problema é que a economia linear não é um modelo sustentável. A eliminação prematura de bens reparáveis gera um aumento dos resíduos e da emissão de gases com efeito estufa, além de maior procura por recursos valiosos para a produção de novos bens.

Além de poluir o meio ambiente, ela colabora para o superendividamento dos consumidores e esmaga a concorrência ao impedir pequenas e médias oficinas não autorizadas de prestar serviços de conserto. Nesse modelo econômico, aparentemente só os fabricantes saem ganhando.

Mas os usuários estão insatisfeitos com essa economia destrutiva: pesquisas indicam que 77% dos cidadãos europeus preferem consertar seus aparelhos do que substitui-los por novos3. Com efeito, é antiga a demanda por uma maior autonomia dos consumidores de livremente consertar (do-it-yourself-repair) ou mandar consertar seus equipamentos em oficinas não autorizadas, que cobram bem menos que as autorizadas.

Se, por um lado, a sociedade anseia por desenvolvimento tecnológico, por outro exige que esse se dê de forma sustentável, garantindo maior durabilidade, reciclabilidade, reutilização e reparabilidade dos produtos, pondo fim à produção e descarte desenfreado de bens. No jargão econômico: cresce a pressão social por uma economia circular sustentável, principalmente em relação aos novos bens tecnológicos.

Porém, para tanto, é necessário não só que os produtos sejam concebidos e configurados de modo a terem uma vida útil mais longa, mas também de forma que possam ser consertados com segurança pelos usuários ou terceiros. Além disso, é imprescindível que suas peças sejam facilmente removíveis e acessíveis no mercado4.

Nessa lógica, aqueles parafusos que só podem ser abertos com chave especial devem desaparecer com a nova legislação europeia, bem como os dispositivos de software que fazem com que o produto não funcione mais corretamente após reparo por terceiro não autorizado pelo fabricante.

A nova lei tem em mira, em primeira linha, os aparelhos indispensáveis ao cotidiano atual, como eletrodomésticos, servidores e suportes de dados, dispositivos eletrônicos, aparelhos digitais, como telefones celulares, computadores, tablets e até bicicletas.

Os fabricantes têm resistido em aceitar o direito à reparação alegando desde riscos de segurança durante o manuseio do produto até a violação dos direitos de propriedade industrial, como patentes e desenho industrial. Mas, fato é que a oposição ao right to repair acaba por garantir um controle efetivo pelo fabricante sobre os processos de produção e manutenção dos equipamentos, tolhendo a liberdade dos usuários, reais proprietários dos bens, de plenamente manusear e deles dispor.

Essa realidade deve mudar em breve na Europa, pois a nova regra estabelece que os produtos devem ser consertados antes de serem substituídos por outros e que as peças de reposição devem ficar disponíveis por um período mais longo de tempo, correspondente à vida útil do produto, além de se tornarem mais baratas e facilmente encontradas no mercado. Com isso, pretende-se elevar o nível de conserto e reutilização de bens defeituosos viáveis dentro e fora da garantia legal.

Detalhes da diretiva

O art. 1º da diretiva deixa claro o objetivo da norma de melhorar o funcionamento do mercado interno europeu mediante o estabelecimento de regras comuns destinadas a promover o reparo dos bens adquiridos pelos consumidores. E o bloco pretendente fixar um nível elevado de proteção aos consumidores e ao meio ambiente, pois o art. 3º fixa o nível de harmonização plena ao proibir os Estados-Membros de introduzir ou manter na legislação nacional disposições divergentes da diretiva.

O art. 2º traz um catálogo de definições, dentre as quais destaca-se a de "oficina de reparação", entendida como qualquer pessoa, singular ou coletiva, que preste serviços de reparo aos consumidores para fins comerciais, incluindo fabricantes, vendedores que ofereçam tais serviços e prestadores de serviços de conserto independentes.

O art. 4º estabelece a obrigação das oficinas de - antes da celebração do contrato de prestação de serviços de reparo - fornecerem informações essenciais detalhadas sobre seus serviços no chamado "formulário europeu de informações sobre as reparações".

Esse formulário deve especificar, de forma clara e compreensível, dentre outras coisas, o nome, endereço, telefone e e-mail do prestador do serviço; o bem a consertar; a natureza do defeito e o tipo de reparo sugerido; o preço ou seu modo de cálculo, bem como o preço máximo do serviço; tempo estimado; a disponibilidade e os custos de bens substitutos durante o período do conserto, além de eventual disponibilidade de serviços complementares, como retirada do bem, instalação e transporte prestados pela oficina de reparo, bem como os custos desses serviços para o consumidor.

O art. 5º estabelece a obrigação de reparo ao fabricante, afinal ele é quem melhor está em condições de realizar um conserto da forma mais eficiente em termos de recursos e de custos5.

Segundo a norma, os Estados-Membros "devem assegurar que o produtor proceda à reparação, gratuitamente, por um preço ou mediante uma contrapartida de outra natureza", de bens considerados reparáveis dentro da União Europeia, salvo se o conserto puder ser qualificado como impossível, por exemplo, se o bem estiver danificado de tal forma que torne o conserto tecnicamente impossível. A impossibilidade do conserto é a única hipótese de isenção da obrigação de consertar os bens de consumo.

Se o produto for reparado dentro do prazo de garantia legal, esta será estendida por mais um ano, benefício que visa estimular os usuários a optar pelo conserto ao invés da troca6. Fora do período de garantia, o fabricante deverá oferecer o reparo durante toda a vida útil do produto, a qual vem estabelecida na lei de acordo com as diversas categorias de produtos.

Além disso, os consumidores terão ainda a possibilidade de pegar um produto emprestado durante o período no qual o produto defeituoso estiver no conserto ou, ainda, optar por um modelo substituto restaurado.

Os fabricantes também devem informar aos consumidores acerca de sua obrigação de consertar o bem e fornecer informações sobre os serviços de reparo de forma clara, compreensível e facilmente acessível, nos termos do art. 6º. A norma visa assegurar que os consumidores tomem ciência da obrigação legal imposta aos fabricantes, o que aumenta a probabilidade de que optem por consertar ao invés de adquirir novos produtos, alcançando o objetivo de fomento do consumo sustentável.

Se o fabricante estiver estabelecido fora da União Europeia, ficará a cargo de seu representante a obrigação de reparo. Caso não tenha mandatário no continente, o dever legal recairá sobre o importador ou o distribuidor do bem, conforme o disposto no art. 5º.

As práticas que restrinjam injustificadamente o direito ao reparo ou provoquem a desvalorização do bem devido à obsolescência podem ser consideradas práticas comerciais desleais e, consequentemente, proibidas pela legislação europeia.

A diretiva prevê ainda a criação de plataformas onlines para serviços de reparo, nas quais os consumidores poderão buscar por oficinas que realizem os consertos de seus bens, escolhendo a que melhor atenda a seus interesses, nos termos do art. 7º.       

Resumo da ópera

Em suma, a nova diretiva da União Europeia impõe aos fabricantes a obrigação legal de reparar os bens colocados no mercado de consumo, garantindo aos consumidores, como reverso da medalha, um "direito ao reparo".

Isso significa que, dentro e fora do período de garantia, eles deverão priorizar o reparo à substituição do produto. Dessa forma, os consumidores poderão recorrer a esses serviços mesmo depois do fim da garantia de produtos como geladeiras, aspiradores de pó, máquinas de lavar, bicicletas e smartphones.

Aliás, a inclusão de tablets e smartphones na lista dos bens reparáveis foi uma forma de impor regulação às big techs, como a Apple, cuja política de ligar seus softwares às peças impede oficinas não autorizadas de consertarem seus produtos7.

Condição sine qua non para a efetividade do direito ao reparo é a obrigação legal dos fabricantes de disponibilizar aos consumidores e às oficinas as informações necessárias para a realização do reparo dos produtos por meio, v.g., de manuais de instrução, diagramas de circuitos, permissão de atualizações de software, as quais devem ser reversíveis e não podem provocar uma redução do desempenho dos aparelhos, como ocorre com frequência em smartphones8.

Os eurodeputados comemoraram a aprovação do diploma enfatizando ser a primeira vez na história que medidas legais incluem um aumento da durabilidade, reciclagem, reutilização e eficiência energética dos produtos, o que está em harmonia com a ideia de uma economia circular sustentável.

O deputado alemão René Repasi saudou a nova lei como uma "mudança no sistema"9. Anna Cavazzini, do Partido Verde, afirmou que o direito ao reparo é um avanço para a economia de reciclagem e pode impedir o consumo maciço de recursos10. 

Right to repair na era do feudalismo digital

Sem dúvidas, o direito à reparação pode sinalizar uma mudança cultural na medida em que exige de fabricantes e consumidores o abandono da mentalidade do descarte em prol de uma produção e consumo responsável e sustentável. Mas não deixa de causar espécie que o legislador precise intervir, nessa quadra da história, para assegurar aos proprietários o direito de reparar (pessoalmente ou por terceiros) seu próprio bem.

Afinal, ainda quando não expressamente positivado em lei, esse "direito" ao reparo integra - lógica e substancialmente - o conteúdo do direito de propriedade, que se manifesta principalmente (mas não exclusivamente) no poder de usar, gozar e dispor da coisa e de reavê-la do poder de quem injustamente a possua ou detenha, na precisa dicção do art. 1.228 do Código Civil.

Nada obstante, parece que esse direito vem sendo sorrateiramente subtraído do conteúdo do domínio com o desenvolvimento tecnológico, razão pela qual alguns falam em feudalismo digital (digitaler Feudalismus) para ilustrar o fenômeno da perda de importantes poderes proprietários na era digital.

Com efeito, em meio à euforia generalizada provocada pelas novas tecnologias, vozes mais atentas alertam para o fato de que na Belle Époche digital tem-se constatado, de um lado, o esvaziamento dos poderes proprietários dos consumidores e, de outro, o robustecimento dos direitos de propriedade intelectual (copy rights) das empresas de tecnologia, que vendem um bem (v.g., um smartphone), mas reservam para si o controle do sistema operacional (v.g., iOS da Apple) desse objeto ou dispositivo, sem o qual ele não funciona.

Tendo em vista que o sistema operacional é "alma" do objeto, pois é o software que permite o uso do dispositivo, na prática os fabricantes continuam a deter a propriedade do bem mesmo após sua venda, impedindo ao comprador e/ou terceiro não autorizado mexer no bem.

É como se uma concessionária vendesse um veículo, mas se reservasse o direito de propriedade sobre o motor do carro. Por incrível que parece, a realidade não está muito longe disso. Em 2017, a John Deere, renomada fabricante norte-americana de máquinas agrícolas, informou a seus clientes que apenas licenciava o software usado em tratores, plantadeiras e colheitadeiras, razão pela qual não lhes era permitido consertar as próprias máquinas, nem levá-las a oficinas independentes11.

Os agricultores, indignados, iniciaram nos Estados Unidos uma campanha para ter reconhecido o direito de consertar seus equipamentos como seus pais e avós faziam, requerendo que a empresa franqueasse aos consumidores e a oficinas independentes o acesso aos manuais de serviço, ferramentas de diagnóstico e peças a fim de não ficarem nas mãos de um único fornecedor e/ou de assistência técnica ou reparo autorizados - exatamente o que os europeus fizeram agora.

Esse exemplo mostra que, na prática, a John Deere vendia o bem, mas detinha a propriedade sobre o sistema operacional da máquina, vale dizer, conservava o poder de controle sobre o funcionamento e a manutenção do bem, impedindo o proprietário de proceder com o bem da forma que lhe aprouvesse, por exemplo, escolhendo quem iria consertar o equipamento em caso de defeito.

O problema é que quando o proprietário não tem poder de controle sobre o próprio bem, ele não tem realmente propriedade sobre o mesmo, não passando - dizem os mais atentos - de um mero "camponês digital" que, tal como os servos da Idade Média, tem apenas o poder de usar os instrumentos necessários em seu dia-a-dia, os quais permanecem sob o domínio e controle do senhor feudal. Ao que tudo indica, na era digital também há senhores feudais digitais...

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1 Recht auf Reparatur: EU-Kommission begrüsst Einigung auf neue Verbraucherrechte. Disponível aqui. Acesso: 2/2/2024.

2 Direito ao reparo: um grande passo em direção à economia circular. Exame, 24/9/2021.

3 Recht auf Reparatur: für Produkte, die langlebiger und reparierbar sind. Comunicado do Parlamento Europeu de 7/2/2022. Disponível aqui.

4 Comunicado do Parlamento Europeu, p. 2.

5 MEHNERT, Victor. Reparaturen für alle? Rechtlice Perspektiven des "Right to repair". ZPR 1 (2023), p. 9.

6 Consumidores da UE terão "direito ao reparo" de produtos. Deutsche Welle Brasil, 2/2/2024. Confira-se ainda: Kampf gegen Wegwerfgesellschaft: Komission will Recht auf Reparatur. Comunicado oficial da representação alemã da Comissão Europeia, 22/3/2023. Acesse aqui. Acesso em 2/12/2023.

7 Consumidores da UE terão "direito ao reparo" de produtos. Deutsche Welle Brasil, 2/2/2024.

8 Das Ende der Wegwerfgesellschaft rückt näher. Süddeutsche Zeitung, 21/11/2023.

9 Das Ende der Wegwerfgesellschaft rückt näher. Süddeutsche Zeitung, 21/11/2023.

10 Das Ende der Wegwerfgesellschaft rückt näher. Süddeutsche Zeitung, 21/11/2023.

11 A right to repair: why Nebraska farmers are taking on John Deere and Apple. The Guardian, 6/5/2017.