O acessório segue sempre o principal? Lições da jurisprudência alemã sobre o sublicenciamento de direitos autorais
terça-feira, 26 de março de 2024
Atualizado às 07:39
A coluna German Report recebe o contributo de Yuri Schramm, jovem advogado do escritório Machado Meyer, em São Paulo, especialista em propriedade intelectual. Schramm é mestre em Direito Civil e doutorando pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Durante o doutoramento, o autor passou várias temporadas na Alemanha estudando, em perspectiva comparada, o direito de propriedade intelectual alemão, denominado Recht des geistigen Eigentums.
Ele concluiu um Master of Law and Business na Bucerius Law School em Hamburg (Alemanha), onde também fez o curso Licensing Transactions in Intellectual Property, em parceria com a UC College of the Law San Francisco (Califórnia, EUA), tendo estadia no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht como pesquisador visitante, onde levantou rica bibliografia alemã para a tese atualmente realizada sob orientação do renomado Prof. Eduardo Tomasevicius Filho.
Nesse texto, o autor analisa importante julgado no qual a Corte infraconstitucional alemã - Bundesgerichtshof (BGH) - afirmou que o fim do contrato de licença principal não põe fim automaticamente ao contrato de sublicenciamento. Confira!
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Qual o impacto do fim de um contrato de licença de direitos autorais sobre uma sublicença deste derivada? Se for seguido o princípio constante do título deste texto, o fim do contrato de licença principal deveria ocasionar também o fim do contrato de sublicenciamento.
Todavia, a jurisprudência do Bundesgerichtshof (BGH) nos mostra que o problema não deve ser resolvido de maneira tão simplista. Em uma sequência de decisões iniciada em 2009, o BGH sopesou os interesses dos envolvidos na relação de licenciamento e sublicenciamento e, com fundamentação dogmática, privilegiou a proteção ao sublicenciado.
No presente artigo iremos analisar a primeira decisão paradigmática do BGH sobre o assunto - o caso Reifen Progressiv - e compará-lo com a respectiva situação no Brasil.
O caso Reifen Progressiv - I ZR 153/06
O autor da ação (o "Licenciante") desenvolveu um software chamado Reifen Progressiv destinado a comerciantes de pneus e, posteriormente, licenciou-o exclusivamente a uma sociedade (a "Licenciada") que, por sua vez, sublicenciou-o sem exclusividade à ré (a "Sublicenciada").
Posteriormente, a Licenciada tinha encerrado suas atividades em que utilizava o software e, em seguida, teve sua falência requerida, pelo que o Licenciante execeu o direito previsto no § 41 da Lei de Direitos Autorais Alemã (Urheberrechtsgesetz - UrhG), que consagra ao titular o direito de revogação da licença por ausência de uso pela Licenciada - uma espécie de caducidade, que não tem previsão similar em nossa Lei de Direitos Autorais. Como se tratava de uma licença exclusiva, o Licenciante tinha todo o interesse em requerer sua revogação, considerando que, dada a situação concreta da Licenciada, não havia indícios razoáveis de que ela pudesse contornar a situação que ocasionou a caducidade.
Com o fim da licença principal, o Licenciante esperava que a sublicença também se encerrase, pelo que ajuizou uma ação requerendo que a Sublicenciada parasse de utilizar o software, bem como arcasse com indenização baseada no § 97 da UrhG, isto é, o benefício econômico que a Sublicenciada obteve como resultado da violação ao direito do Licente ao usar o software sem a respectiva a licença ou, não sendo possível ou difícil sua mensuração, o valor razoável que a Sublicenciada teria que ter pago ao Licenciante para obter a licença do software, ou arcasse com a restituição do enriquecimento sem causa (§ 812 I, primeira frase, segunda hipótese, do BGB). Não obteve sucesso na primeira instância, nem na segunda, pelo que recorreu ao BGH.
A decisão do BGH
O BGH confirmou o entendimento do Tribunal a quo (Berufungsgericht), esclarecendo que não houve violação pela Sublicenciada dos direitos de autor do Licenciante, pois uma sublicença não exclusiva não se extingue automaticamente com o fim da licença principal exclusiva, pelas razões detalhadas abaixo e, ademais, seus interesses já estariam satisfeitos pelo fato de a revogação da licença principal ter lhe possibilitado voltar a explorar patrimonialmente o software.
Um parêntese é necessário - na Alemanha e na prática anglo-saxã é comum diferenciar a exclusividade de uma licença em dois níveis: sole ou exclusive. Na primeira hipótese, o licenciante ou titular do direito de propriedade intelectual não fica proibido de explorar patrimonialmente o direito licenciado, como ocorre na segunda hipótese, sendo esta a situação do caso em comento, pelo menos até o momento da revogação da licença por caducidade.
O BGH reconheceu que a sobrevivência ou não de uma sublicença (Enkelrecht) no caso de expiração da licença principal (Tochterrecht) era tema controverso. A Corte acentuou que a favor do fim do Enkelrecht existem robustos argumentos.
Em primeiro lugar, como o direito de autor e a proteção ao autor são regidos pela ideia de vinculação à finalidade (Zweckbindungsgedanke), o autor não transfere mais direitos do que o necessário para cumprir a finalidade do contrato referente à transação, conforme disposto no § 35 V da UrhG. Logo, com o fim do contrato, os direitos dele derivados, que foram objeto de transferência, são revertidos para o autor.
Em segundo lugar, a continuidade dos direitos de uso derivados enfraquecem o direito do autor em relação aos licenciados expressamente autorizados, pois aquele não poderia mais conceder uma licença exclusiva a qualquer terceiro já que o sublicenciado continuaria com o direito de uso, nem teria o direito de negociar diretamente os termos de uma licença com o sublicenciado.
Tendo em vista que ninguém pode transferir mais direitos do que tem, nem pode haver aquisição de boa-fé no campo dos direitos autorais, o fim do principal (Tochterrecht) ocasionaria automaticamente o fim do acessório (Enkelrecht).
Por fim, o sublicenciado não seria necessária e injustificadamente prejudicado pelo fim do seu Enkelrecht, pois (a) não seria obrigado a pagar o preço de uma sublicença que não existe mais; (b) poderia pedir indenização ao sublicenciante ou (c) ser protegido por disposições contratuais sobre o tema (por exemplo, se o contrato entre licenciante e licenciado prever expressamente que o fim do Tochterrecht não causa o fim do Enkelrecht).
Apesar desses argumentos, a Corte afirmou que várias razões falam à favor da sobrevivência do Enkelrecht, ou seja, do direito à sublicença do sublicenciado, mesmo diante da expiração do direito à licença principal.
Segundo o BGH, a proteção dos interesses do sublicenciado deveria prevalecer no caso concreto, pois aquele não pode perder seu direito de uso por circunstâncias que não lhe são imputáveis, nem sofrer prejuízos consideráveis decorrentes, por exemplo, de ficar impedido de recuperar as despesas em que incorreu para adquirir e preparar a exploração econômica do direito autoral.
Para a Corte, a vinculação à finalidade (Zweckbindung) serve apenas para explicar uma reversão ao autor do direito de uso que é objeto do contrato entre o autor e o licenciado, justamente pela relação contratual ter chegado ao fim. Mas a sublicença é baseada em um contrato diferente, celebrado entre o licenciado e o sublicenciado. Assim, com base na mesma ideia de vinculação à finalidade, o segundo contrato tem uma finalidade diferente daquela do primeiro contrato celebrado entre o autor e o licenciado, pelo que o fim de tal contrato não pode acarretar, automaticamente, o fim do contrato celebrado entre o licenciado e o sublicenciado, pois isso não significa que sua finalidade foi atingida.
O Tribunal também ressaltou que o fato de ninguém poder transferir mais direitos do que tem e de não haver aquisição de boa-fé de direitos autorais, não gera a invalidade das disposições sobre o direito autoral antes do fim do Tochterrecht, pois o Enkelrecht é juridicamente autônomo e independente em relação àquele por incidência do princípio da separação entre negócios jurídicos obrigacionais e negócios jurídicos de disposição (Trennungsprinzip).
Tal princípio faz parte da espinha dorsal do direito privado alemão e reflete, com maior precisão, a summa divisio do direito privado patrimonial. Sem maiores pretensões de aprofundamento, dada a finalidade e o formato do presente texto, esse princípio separa os negócios jurídicos de direito das obrigações (com todas suas características, como relatividade entre as partes e atipicidade) dos negócios jurídicos de direito reais (também com todas suas características, como efeitos perante terceiros e numerus clausus).
Exemplo clássico é a compra e venda: no contrato de compra e venda (negócio jurídico obrigacional) previsto no 433 I e II do BGB, o vendedor se obriga a transferir a propriedade da coisa, enquanto o comprador se obriga a pagar o preço (isto é, a também transferir sua propriedade). Contudo, apenas o negócio jurídico obrigacional não é suficiente para a execução das transferências da propriedade, pelo que se faz necessário o negócio jurídico de disposição de transferência da propriedade previsto no § 929, S. 1 do BGB (Übereignung), por meio do qual as efetivas transferências da propriedade ocorrem.
Ou seja, o princípio da separação entre negócios jurídicos obrigacionais e negócios jurídicos de disposição (Trennungsprinzip) incide quando do licenciamento de direitos autorais. Diante disso, o § 31 da UrhG ao tratar das licenças de uso, está tratando de negócios jurídicos de disposição (Verfügungsgeschäft) separados do negócio jurídico obrigacional, enquanto este negócio jurídico obrigacional subjacente é regido pelas disposições de direito das obrigações e dos contratos constantes do BGB.
Nesse sentido, na visão do Bundesgerichtshof, no § 33 da UrhG reside um dos principais fundamentos legais e dogmáticos para a sobrevivência do Enkelrecht, pois a norma prevê expressamente que as licenças de uso, exclusivas ou não, continuam a produzir efeitos mesmo se o licenciante perder seu direito.
Diante disso, nessa situação de sublicenciamento de direitos autorais, existem pelo menos 4 (quatro) negócios jurídicos diferentes: (i) o negócio jurídico obrigacional de licenciamento celebrado entre o autor e o licenciado, regido pelas regras de direitos e obrigações e contratos do BGB; (ii) o negócio jurídico de disposição de licenciamento celebrado entre o autor e o licenciado, regido pelas regras do § 31 e seguintes da UrhG; (iii) o negócio jurídico obrigacional de sublicenciamento celebrado entre o licenciado e o sublicenciado; e (iv) o negócio jurídico de disposição celebrado entre o licenciado e o sublicenciado.
Ao se separar cada um dos negócios no caso concreto, nota-se que a caducidade atinge diretamente o negócio jurídico de disposição de licenciamento (ii). Pela regra do § 33 da UrhG, os negócios jurídicos (iii) e (iv) não são prejudicados.
Além disso, a revogação por caducidade, disposta no § 41 da UrhG, tem por finalidade garantir que o autor não veja prejudicados seus direitos morais de fazer conhecida sua obra, nem seus direitos patrimoniais de explorá-la economicamente. Por isso requer-se, para o exercício da revogação por caducidade, que a licença de uso seja exclusiva (não cabe quando a licença é sole ou não exclusiva), pois quando a licença é exclusiva, o autor se vê prejudicado em relação aos seus referidos direitos morais e patrimoniais se o licenciado não utilizar o direito objeto da licença, já que este também não poderá ser exercido pelo autor (que se vê restrito na utilização de sua obra pelo direito de exclusividade que concedeu ao licenciado).
A Corte também acentuou que o § 41 V da UrhG se limita a dispor que, mediante a revogação por caducidade, a licença expira como um todo ou apenas deixa de ser exclusiva, a depender da opção do titular do direito (sem prejuízo de a opção pela consequência da caducidade ser determinada previamente pelas partes no contrato). Dessa forma, a norma nada diz acerca dos efeitos da revogação por caducidade sobre eventuais sublicenças, pelo que uma interpretação plausível deste dispositivo seria que, com a revogação por caducidade de uma licença exclusiva, as sublicenças não exclusivas desta derivadas continuariam eficazes.
Ou seja, pelo espírito da regra, que não faz distinção entre uma licença exclusiva concedida pelo autor ou por um licenciado exclusivo, se houver sublicença exclusiva, esta deverá ser alcançada pela revogação por caducidade. Mas se a sublicença for simples, o autor não terá seus direitos morais e patrimoniais prejudicados, pois não estará impedido de tornar sua obra conhecida, nem de explorá-la economicamente.
Ademais, pelo § 35 I, primeira frase, da UrhG, o autor precisa consentir para que o licenciado exclusivo possa conceder sublicenças. Tendo o autor concordado com o sublicenciamento quando da vigência do Tochterrecht, precisará aceitar que, havendo a reversão, seu direito estará onerado com licenças de uso não-exclusivas, disse o BGH.
Dessa forma, a Corte concluiu que a revogação por caducidade de uma licença de direito autoral exclusiva não ocasiona automaticamente o fim de uma sublicença de direito autoral não exclusiva daquela derivada.
Considerações finais
A partir dessa decisão, tornou-se regra na prática contratual alemã prever expressamente no contrato referente ao licenciamento que o fim da licença principal acarretaria automaticamente o fim da sublicença. Isso vincula automaticamente os distintos negócios jurídicos, fazendo o sublicenciamento depender da licença.
Aqui no Brasil essa preocupação não é necessária, pois não há na nossa Lei de Direitos Autorais disposição similar àquela do § 33 da UrhG. Ou seja, apesar de no direito privado patrimonial brasileiro também haver o princípio da separação (basta pensar na necessidade de tradição ou registro para a transferência da coisa), aqui vigora o princípio da causalidade.
Sobre o tema, outro parêntese é necessário. O sistema de direito privado patrimonial do BGB é regido pelo princípio da abstração (Abstraktionsprinzip). Isso significa que eventuais vícios do negócio jurídico obrigacional, via de regra, não afetam o negócio jurídico de disposição. Atualmente existem regras e jurisprudência excepcionando a aplicação a ferro e fogo desse princípio, mas a consequência em uma compra e venda, por exemplo e a princípio, seria de que se o contrato for nulo, o negócio jurídico de disposição não seria, de maneira que a transferência da propriedade permaneceria, surgindo ao prejudicado uma pretensão por enriquecimento sem causa contra o novo proprietário.
Contudo, o sistema de direito autoral alemão é regido pelo princípio da causalidade (Kausalitätsprinzip), justamente com base na noção já mencionada acima de vinculação à finalidade, que o permeia. O princípio da causalidade ocasiona uma situação oposta ao princípio da abstração: apesar de serem negócios jurídicos separados, o negócio jurídico obrigacional subjacente pode impactar o negócio jurídico de disposição. Contudo, aqui também existem determinadas regras e jurisprudência que mitigam ou excetuam esse princípio, como é o caso do disposto no § 33 da UrhG.
Pelo sistema de direito patrimonial brasileiro ser regido pelo princípio da causalidade e não haver regra relativa a direito autoral que o mitigue ou excetue de maneira similar à regra do § 33 da UrhG, a consequência desse caso no Brasil (se previsto no contrato de licença uma rescisão por caducidade) seria o fim do direito de uso do software pelo sublicenciado que, por sua vez, poderia requerer indenização por perdas e danos ao licenciado que ocasionou a perda do seu direito de uso.