Data room não afasta automaticamente o dever de informação e esclarecimento do vendedor
quarta-feira, 20 de setembro de 2023
Atualizado às 08:40
Em recentíssima decisão, publicada no último dia 15 de setembro, a Corte infraconstitucional alemã - Bundesgerichtshof (BGH) - afirmou que a disponibilização de dados e informações em data room pelo vendedor não afasta automaticamente seu dever pré-contratual de informação e esclarecimento.
Dessa forma, o vendedor de um imóvel deve informar suficientemente o comprador sobre custos futuros de reforma das áreas comuns do prédio, sendo insuficiente a inserção de documentos no ambiente virtual pouco antes da conclusão do contrato sem alertar o comprador.
Os detalhes do caso
A ré vendeu à autora, em 25/5/2019, mediante escritura pública, várias unidades comerciais de um complexo imobiliário em Hanover pelo preço de 1.525.000,00 euros, com exclusão de responsabilidade por vícios materiais no bem.
No contrato de compra e venda, a vendedora garantia que não haver qualquer deliberação condominial estipulando a obrigatoriedade de pagamentos extraordinários pela compradora - salvo custos com a renovação do telhado no montante anual de ? 5.600,00.
No decurso das negociações, a vendedora criou e disponibilizou para acesso e análise da compradora um data room com vários documentos relativos ao imóvel. Dentre os documentos encontrava-se, porém, uma ata da assembleia de condôminos do ano de 2016, na qual os proprietários decidiram repartir os custos de medidas de modernização das áreas comuns do complexo imobiliário.
O problema é que o documento foi inserido na nuvem em uma sexta-feira e na segunda-feira seguinte as partes já tinham horário marcado no cartório para assinar a escritura de compra e venda. E como a vendedora nada disse à compradora, esta não viu o documento disponibilizado no apagar das luzes das tratativas.
Após a aquisição da propriedade das unidades comerciais, a compradora foi surpreendida com a demanda dos coproprietários, com base na referida deliberação condominial, para assumir parte dos custos de reforma do complexo imobiliário.
Ela, então, requereu o desfazimento do contrato alegando ter sido vítima de dolo (arglistige Täuschung) por parte da vendedora e pleiteando indenização por perdas e danos em decorrência da violação do dever pré-contratual de informação e/ou esclarecimento.
O juiz de primeira instância julgou improcedente a ação, sentença confirmada em segunda instância pelo Oberlandesgericht Celle, que entendeu que a compradora tinha o ônus de levantar todas as informações necessárias antes da conclusão do negócio. O processo subiu ao BGH por meio do recurso de Revision, tendo a Corte de Karlsruhe, em síntese, devolvido o caso para novo julgamento.
A decisão do Bundesgerichtshof
A despeito das declarações e garantidas prestadas pelo vendedor, o BGH salientou que a quaestio iuris posta não dizia respeito a um vício material ou jurídico na coisa, mas sim à falha informacional durante a fase pré-contratual e, portanto, a um caso típico de culpa in contrahendo, i.e., de responsabilidade pré-contratual, positivada no § 311, inc. 2, n. 1 do BGB após a reforma do Código Civil alemão em 2002.
O dispositivo estabelece que, com a entrada em negociações, surge entre os contraentes uma relação obrigacional com os deveres de consideração do § 241, inc. 2 do BGB, os quais obrigam as partes reciprocamente a ter consideração pelos bens, direitos e interesses legítimos da contraparte1.
Dentre os deveres de consideração (Rücksichtspflichten) - desenvolvidos histórica e substancialmente à partir do princípio da boa-fé objetiva, consagrado no § 242 do BGB - destacam-se os deveres de informação e esclarecimento, que obrigam uma parte a informar a outra acerca daquelas circunstâncias especiais sobre as quais tem (fácil) conhecimento e sabe - ou deveria saber - que influenciam decisivamente a decisão de contratar da contraparte, pois podem, por exemplo, pôr em risco a execução ou o alcance do sentido e do escopo do contrato2.
A regra, contudo, no direito alemão (e brasileiro) é que, pelo menos em relações paritárias, cada parte deve buscar as informações necessárias para a formação de sua decisão de contratar, pois presume-se que ambas tenham acesso - inclusive na mesma extensão - às mesmas fontes de informações, podendo igualmente se informar sobre as chances e riscos do negócio.
Vigora aqui, em princípio, o ônus da autoinformação (Eigeninformationslast) e da autorresponsabilidade (Selbstverantwortung), inerentes à autonomia privada.
Isso só vale, entretanto, quando se tratam de informações gerais de mercado, ou seja, aquelas informações que estão disponíveis para conhecimento geral. Quando se tratam, contudo, de informações sobre circunstâncias especiais, que impactam diretamente a decisão de contratar da contraparte, a parte que as detém - ou que a elas pode obter acesso com mais facilidade - deve comunica-las espontaneamente à outra3. O BGH fala, nesse sentido, em "circunstâncias de revelação obrigatória" ou offenbarungspflichtige Umstände.
Por isso, o Tribunal afirmou que, no caso concreto, a vendedora deveria ter esclarecido espontaneamente - ou seja, ainda quando não questionada - a contraparte de que poderiam vir a surgir custos elevados em razão da reforma do objeto do contrato, pois o conhecimento dessas despesas e de sua extensão tinha grande relevância para a decisão da compradora de celebrar (ou não) o contrato.
Esse esclarecimento era devido ainda quando os mencionados custos fossem suportados preponderante pela maioria dos coproprietários e mesmo que o valor exato ainda não tivesse sido apurado no momento da celebração, pois, em todo caso, havia para a compradora o risco concreto de ter que suportar parte desses custos futuramente.
Como bem apontou o Bundesgerichtshof, o cerne da questão era saber se a compradora havia sido ou não suficientemente esclarecida antes da conclusão do negócio. E, para os juízes de Karlsruhe, a vendedora não se desincumbiu do dever ao ter simplesmente inserido no data room a ata da assembleia condominial na qual constava aquela informação.
Ou seja, a simples possibilidade do comprador obter por si próprio conhecimento acerca das circunstâncias de divulgação obrigatória, não exclui automaticamente o dever de informação e esclarecimento do vendedor.
Um vendedor sensato e honesto pode até legitimamente supor que, em caso de vistoria, o comprador logo identificará os vícios perceptíveis na coisa e que, por isso, não será necessário qualquer esclarecimento adicional de sua parte. Mas há diferença considerável entre inspecionar in loco o objeto contratual e ter acesso apenas a dados e documentos.
Ademais, segundo o BGH, o vendedor não pode esperar que o comprador vá procurar pelos vícios da coisa nos documentos de financiamento ou numa pasta com documentos sobre o objeto do contrato. O mesmo raciocínio deve ser aplicado mutatis mutandis aos casos em que o vendedor cria um data room com documentos acerca do objeto da compra e venda e franqueia seu acesso ao comprador.
Em outras palavras: o simples fato do vendedor criar uma sala on-line de dados e liberar o acesso a tais dados e informações ao interessado não autoriza sempre a conclusão de que o potencial comprador tomará conhecimento das circunstâncias de revelação obrigatória.
Logo, o vendedor de um imóvel, que concede ao comprador acesso a uma nuvem com documentos e informações sobre o bem, só cumpre seu dever de informação e esclarecimento se e na medida em que ele pode legitimamente supor que o comprador, através da consulta ao data room, tomará conhecimento das circunstâncias de divulgação obrigatória.
E isso depende das peculiaridades do caso concreto, por exemplo, se e em que medida o comprador realizou uma due diligence (o que, por lei, não está obrigado a fazer), como o data room e seu acesso foram estruturados e organizados, quais regras foram acordadas em relação a isso, a importância da informação que deveria ter sido revelada, o grau de facilidade/dificuldade para encontrá-la no banco de dados, etc.
No caso sub judice, a vendedora não poderia legitimamente supor que a compradora tomaria conhecimento da informação, contida na ata da assembleia condominial, antes da celebração do contrato, pois ela só inseriu o documento na nuvem no dia 22/3/2019, na véspera do fim de semana que antecedeu a celebração do contrato e não alertou a compradora para esse fato.
A compradora, por seu turno, sem um alerta especial acerca do documento recém inserido, não tinha motivos para acessar o data room antes da manhã de segunda-feira (25/3/2019), data na qual as partes compareceram em cartório para celebrar a escritura de compra e venda.
Dessa forma, o Tribunal concluiu que a compradora fazia jus à indenização dos danos sofridos em decorrência da violação culposa do dever pré-contratual de esclarecimento pela vendedora, nos termos dos § 280, inc. 1 c/c os §§ 241, inc. 2 e 311, inc. 2, n. 1 do BGB, vale dizer, por responsabilidade pré-contratual por violação do dever de informação e esclarecimento.
Concluindo, pode-se dizer que o acórdão do BGH constitui significativo reforço dos deveres pré-contratuais dos vendedores de imóveis. O vendedor deve informar o comprador, de forma proativa, acerca de questões essenciais, como um investimento elevado que precisará ser realizado no bem em futuro próximo.
Se algo for acrescentado à transação, isso não pode ser feito secretamente, devendo, ao contrário, ser claramente indicado pelo vendedor com a devida antecedência a fim de que o comprador não seja pego de surpresa no momento da celebração do contrato e lhe sobre tempo suficiente para examinar a questão.
Paralelo com o Brasil
Em apertada síntese, pode-se dizer que o controle do efetivo cumprimento dos deveres de informação e esclarecimento, principalmente no âmbito de relações eminentemente privadas, ainda carece de aprofundamentos no direito brasileiro.
É provável que, em situação análoga à aqui descrita, parte da doutrina e da jurisprudência entenda que o vendedor se desincumbiu de seus deveres informacionais simplesmente por ter disponibilizado a mencionada informação no data room.
Até porque muitos sustentam - com base na boa-fé! - que o comprador tem o dever de se informar sobre todas as circunstâncias relevantes para a formação de sua decisão negocial, ignorando que o comprador, via de regra, não tem acesso a essas informações como tem em relação às informações gerais disponíveis no mercado, sobre as quais recai efetivamente o ônus da autoinformação.
Talvez alguns considerem descumprido o dever pré-contratual devido ao tempo exíguo no qual a informação foi inserida no data room, muito embora parte significativa da doutrina entenda que a realização de due diligence afasta ou mitiga consideravelmente os deveres de informação do vendedor.
Mas, no atual estágio da arte, é improvável que se sustente - como faz o BGH - que o vendedor só cumpre seu dever de informação e esclarecimento se e na medida em que ele puder legitimamente supor que o comprador, através da consulta ao data room, tomará conhecimento das circunstâncias que influenciam diretamente sua decisão negocial e que, por isso, são de divulgação obrigatória.
De qualquer forma, admitida a violação do dever, surge outro problema relacionado a seu enquadramento dogmático: a doutrina majoritária tende a classificar as falhas informacionais durante a fase de preparação do contrato ora como dolo, ora como erro, ora como ambos. No rigor dogmático, porém, as figuras não se confundem.
Enquanto o erro consiste em uma falha endógena na formação da vontade, oriunda da esfera de responsabilidade do próprio sujeito, o dolo nada mais é que o descumprimento intencional do dever de informação pré-contratual e, portanto, uma hipótese de responsabilidade pré-contratual por violação dos deveres de informação.
Contudo, a responsabilidade surge ainda quando os deveres informacionais são violados negligentemente, como ocorreria se, no caso mencionado, o vendedor tivesse deixado de inserir no data room, por descuido, um bloco de documentos, dentre os quais a ata da assembleia dos condôminos, onde a informação sobre os custos da reforma poderia ser encontrada.
Nos casos de violação - dolosa ou negligente - dos deveres de informação e esclarecimento, tem-se uma falha exógena na formação da vontade (rectius: decisão de contratar) da parte, destinatária da informação, falha esta oriunda da esfera de responsabilidade da contraparte e que, portanto, não pode ser qualificada juridicamente como erro.
Em outras palavras: indução (dolosa ou negligente) ao erro não é tecnicamente a mesma coisa que erro. A indução ao erro decorrente de falhas informacionais no período pré-contratual configura uma hipótese de responsabilidade in contrahendo por violação dos deveres de informação.
Alguns autores procuram ainda ampliar o conceito de dolo para abarcar tanto a violação intencional, quanto a culposa dos deveres de informação, falando-se até em "dolo culposo", o que constitui grave contradictio in terminis tendo em vista que desde o direito romano o vocábulo dolus exprime uma ação intencional.
Além de perversão conceitual, a ampliação do instituto do dolo mostra-se desnecessária, pois a figura é inadequada para solucionar os problemas resultantes da violação dos demais deveres pré-contratuais da boa-fé, a exemplo do dever de lealdade, cujo descumprimento no estágio pré-contratual pode dar ensejo à configuração da responsabilidade in contrahendo por rompimento imotivado das negociações.
Dessa forma, a solução mais coerente é reconhecer o instituto da responsabilidade pré-contratual ou, na terminologia de Rudolf von Jhering, culpa in contrahendo, categoria geral apta a abranger a violação (dolosa ou negligente) de qualquer um dos deveres da boa-fé na fase de preparação do contrato e que não se limita, ao contrário do que comumente se pensa, aos casos de rompimento imotivado das negociações.
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1 Os §§ 241 II e 311 II do BGB consolidam uma riquíssima dogmática desenvolvida ao longo do século 20 pela doutrina e jurisprudência alemãs que não pode ser aqui explicitada. À guisa de exemplo, basta mencionar que o § 311 II do BGB, ao se referir expressamente a uma relação obrigacional entre as partes durante a longa fase de preparação do contrato, consagra na lei a figura da relação obrigacional sem prestação, identificada inicialmente por Heinrich Stoll e aperfeiçoada por Karl Larenz, ideia que revolucionou - e modernizou - o conceito de obrigação herdado do direito romano. Sobre o tema, permita-se remeter a: NUNES FRITZ, Karina. A culpa in contrahendo no direito alemão: um contributo para reflexões em torno da responsabilidade pré-contratual. RDCC v. 15, 2018, p. 161-207.
2 EMMERICH, Christian. In: Münchener Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch. Wolfgang Krüger (coord.). v. 2, 7a ed. München: Beck, 2016, p. 1599.
3 EMMERICH, Christian. Op. Cit., p. 1599. Permita-se referir ainda a: NUNES FRITZ, Karina. Die culpa in contrahendo im deutschen und brasilianischen Recht - ein Vorvertragsregime auf der Grundlage der deutschen Schuldrechtsdogmatik. Berlin: de Gruyter, 2018, p. 393.