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O direito ao esquecimento como um direito fundamental na Alemanha, na Europa... e no Brasil?

quarta-feira, 10 de maio de 2023

Atualizado às 07:46

A coluna German Report dessa semana recebe o contributo do jovem Professor João Alexandre Silva Alves Guimarães, que nos brinda com um julgado do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) sobre um tema sensível e ainda não claramente resolvido aqui no Brasil: o direito ao esquecimento.

O autor é Mestre em Direito da União Europeia pela Universidade do Minho, em Portugal, e doutorando na tradicional Universidade de Coimbra. É associado fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados (IAPD), membro do Comitê Executivo do Laboratório de Direitos Humanos - LabDH da Universidade Federal de Uberlândia e pesquisador do Observatório Jurídico da Comunicação do Instituto Jurídico de Comunicação da Universidade de Coimbra.

Nesse artigo, nosso convidado recorda que o direito ao esquecimento já foi reconhecido como direito fundamental tanto pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, quanto pelos tribunais alemães, estando expressamente previsto no art. 17 do Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD).

De fato, na Alemanha, a Corte infraconstitucional - Bundesgerichtshof (BGH) - já reconheceu em vários julgados a existência de um direito ao esquecimento, o qual, conquanto possua natureza jusfundamental, não tem caráter absoluto, devendo ser ponderado no caso concreto com os demais direitos fundamentais em colisão.

E aqui vale observar que, apesar do reconhecimento do direito ao esquecimento, não se pode, em absoluto, apontar qualquer censura ou prejuízo à liberdade de expressão na terra de Goethe.

Isso, por si só, já mostra o equívoco da decisão do Supremo Tribunal Federal, no Tema 786, que concluiu pela incompatibilidade do direito ao esquecimento com a Constituição Federal.

Mas a realidade dos fatos sempre acaba se impondo, mais cedo ou mais tarde, à lei ou a uma decisão equivocada e o fato é que várias situações de esquecimento na internet estão sendo chanceladas pelo Judiciário brasileiro sob o manto do direito à desindexação.

Como salienta o autor ao longo do texto, o desafio (prático e teórico) agora é avaliar se - e, em caso positivo, até que ponto - o direito à desindexação é realmente algo distinto do direito ao esquecimento, como vêm afirmando a jurisprudência por aqui.

Isso se torna mais premente tendo em vista que o art. 17 do RGPD coloca aparentemente o direito ao esquecimento como um gênero que engloba outros direitos, como apagamento e a desindexação. Essa desafiadora discussão é abordada com maestria pelo articulista. Confira! 

 * * * 

João Alexandre Silva Alves Guimarães 

Não podemos dizer de forma alguma que o direito ao esquecimento é algo novo. Quando olhamos para a ideia de Thomas Cooley1 com o right to be let alone, em 1879, sendo aplicado no direito civil com Samuel Warren e Louis Brandeis2 nos Estados Unidos em 1890, percebemos que a invasão da privacidade, a usurpação da imagem e da honra, faz parte da preocupação dos juristas há um tempo considerável.

Porém, para discutir o presente, é importante revisar dois casos paradigmáticos julgados na Alemanha: Lebach I e II e, na sequência, examinar as recentes decisões da Corte infraconstitucional, o Bundesgerichtshof (BGH). 

O caso Lebach

O famoso caso Lebach I envolveu um latrocínio que teve lugar em 1969 na cidade de Lebach, na República Federal da Alemanha. O caso foi amplamente divulgado pela mídia e televisão, sendo conhecido como "o assassinato dos soldados de Lebach".

Durante o incidente, quatro soldados foram assassinados e outro ficou seriamente ferido quando criminosos roubaram armas e munições do depósito onde eles estavam de guarda. Em 1970, dois réus foram sentenciados à prisão perpétua, enquanto outro recebeu uma pena de seis anos de reclusão por auxiliar na preparação do crime.3

A repercussão do caso Lebach foi tão grande que a emissora de televisão ZDF (Zweites Deutsches Fernsehen) produziu um documentário sobre o crime, usando dramatização por atores e divulgando fotos e nomes reais dos condenados, incluindo informações sobre possíveis relações homossexuais entre eles.

O documentário estava programado para ser exibido em uma sexta-feira, dias antes do terceiro condenado deixar a prisão após cumprir sua pena. No entanto, o terceiro condenado entrou com um pedido de medida liminar para impedir a exibição do programa.4

Embora o Tribunal de Justiça de Mainz e o Tribunal de Justiça de Koblenz tenham julgado o pedido improcedente, o Tribunal Constitucional Federal alemão (Bundesverfassungsgericht ou BVerfG) decidiu que a reclamação constitucional era válida, alegando violação do direito ao desenvolvimento da personalidade. Como resultado, o BVerfG proibiu a exibição do documentário até a decisão final da ação principal pelos tribunais ordinários competentes.5

De acordo com as práticas do Bundesverfassungsgericht na época do julgamento, nem toda a esfera da vida privada desfruta de proteção absoluta dos direitos fundamentais.6

Se um indivíduo, em sua capacidade de cidadão, vive dentro de uma comunidade e entra em relações que afetam outros ou interferem nos interesses da vida comunitária, seu direito exclusivo de ser senhor de sua própria esfera privada pode se sujeitar a restrições, a menos que sua esfera mais íntima de vida esteja em causa.7

Em particular, qualquer envolvimento social suficientemente forte pode justificar medidas das autoridades públicas no interesse do público em geral, como a publicação de fotos de uma pessoa suspeita para facilitar uma investigação criminal.8

O Tribunal Constitucional alemão afirmou no julgado que a liberdade de expressão pode limitar as reivindicações baseadas no direito de personalidade, desde que o dano resultante não seja desproporcional à importância da publicação para a defesa da liberdade de comunicação. Na ponderação de interesses deve-se levar em conta a violação da esfera pessoal, o interesse específico atendido pela transmissão e se pode ser satisfeito de outra forma sem interferir na proteção da personalidade, disse a Corte.9

Porém, a garantia constitucional da personalidade não permite que a mídia trate indefinidamente da esfera privada do criminoso. O direito de "ser deixado em paz" ganha importância crescente uma vez que o interesse em receber informações foi satisfeito, limitando o desejo da mídia e do público de discutir ou entreter-se com a esfera individual da vida do indivíduo. Para o Tribunal Constitucional, após a condenação, invasões adicionais na esfera pessoal do criminoso não podem ser justificadas se o interesse público já foi atendido.10

O caso Lebach II pode ser considerado uma nova abordagem do problema do "direito ao esquecimento", com um resultado diferente. Em 1996, um canal de televisão alemão produziu uma série sobre crimes históricos, incluindo um episódio sobre o crime ocorrido em Lebach. Ao contrário do canal ZDF, os produtores da série, que seria transmitida no canal SAT 1, mudaram os nomes dos envolvidos e não mostraram suas imagens, e convidaram o ex-chefe de polícia de Munique para comentar o episódio.11

Os envolvidos no caso Lebach II solicitaram liminarmente que a série não fosse transmitida, solicitação deferida pela instância ordinária. Como resultado, a SAT 1 apresentou uma reclamação constitucional perante o BVerfG.12

Diferentemente do caso Lebach I, a Corte anulou a decisão anterior e, após ponderar a liberdade de radiodifusão do programa de televisão e o direito geral de personalidade dos reclamados, deferiu o pedido da SAT 1 para garantir a transmissão do documentário. Isso ocorreu devido ao fato que a SAT 1 não revelou a identidade dos ofensores, incluindo fotos e nomes, e devido ao tempo decorrido desde o crime, que mitigava os riscos de prejudicar a ressocialização dos condenados.13

__________

1 COOLEY. Thomas M. A treatise on the Law of Torts, or, The wrongs which arise independent of contract. 2ª Edição, Chicago: Callaghan and Company, 1879.

2 WARREN, Samuel D.; LOUIS, D. Brandeis. The Right to Privacy. Harvard Law Review, vol. 4, no. 5, p. 193-220, 1890. Disponível em .

3 Bundesverfassungsgericht. BVerfGE 35, 202 - Lebach, de 5 de junho de 1973.

4 CARMONA, Paulo Afonso Cavichioli; CARMONA, Flávia Nunes de Carvalho Cavichioli. A aplicação do direito ao esquecimento aos agentes delitivos: uma análise acerca da ponderação entre o direito à imagem e as liberdades de expressão e de informação. Rev. Bras. Polít. Pública. Brasília, v. 7, n.º 3, p. 436-452, 2017. Página 440.

5 Idem.

6 Idem.

7 Idem.

8 Idem.

9 Bundesverfassungsgericht. BVerfGE 35, 202 - Lebach, de 5 de junho de 1973.

10 Idem.

11 FRAJHOF, I. Z. O Direito ao Esquecimento na Internet: Conceito, Aplicação e Controvérsia. São Paulo: Almedina, 2019. Páginas 55 e 56.

12 Idem.

13 Idem.