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EMERJ discute fake news, discurso de ódio e liberdade de expressão - Parte I

terça-feira, 23 de agosto de 2022

Atualizado às 08:47

No último dia 12/8, a juíza do Tribunal Constitucional da Alemanha (Bundesverfassungsgericht), Sibylle Kessal-Wulf, encerrou um ciclo de palestras no Brasil sobre "fatos alternativos", fake news, discurso de ódio e liberdade de expressão. 

Ela veio a convite da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ), presidida pela ilustre Des. Cristina Tereza Gaulia, e aproveitou a estadia para debater o espinhoso tema em conferências em Brasília e na Bahia, as quais tive o prazer de organizar juntamente com a EMERJ e o Fórum de Democracia Alemanha-Brasil, coordenado pela Embaixada da Alemanha. 

No dia 3/8, Kessal-Wulf foi recepcionada pelo Min. Luiz Fux no Supremo Tribunal Federal, em evento que contou com a participação dos ministros Luís Roberto Barroso (STF), Luís Felipe Salomão (STJ) e Mauro Campbell (Corregedor-Geral do TSE), além do Embaixador da Alemanha, Heiko Tohms. Dia 8/8, a magistrada falou para um auditório lotado no Tribunal da Justiça da Bahia juntamente com Carlos Ayres Britto, Ministro aposentado do STF. 

A viagem encerrou com chave de ouro no plenário do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, com a presença dos desembargadores Henrique Carlos de Andrade Figueira (Presidente do TJRJ), Ricardo Rodrigues Cardoso (Corregedor Geral de Justiça), Cristina Tereza Gaulia, Eduardo Gusmão, André Gustavo Correia Andrade e do Prof. Fábio Carvalho Leite. 

Devido à relevância do tema na atual quadra da história e à riqueza das exposições, o German Report faz hoje uma explanação das principais questões levantadas por Sibylle Kessal-Wulf (Parte I) e o próximo número abordará os pontos mais importantes da rica fala de André Gustavo Correia Andrade (Parte II). 

Ainda vivemos no mesmo universo?

Sibylle Kessal-Wulf iniciou sua exposição explicando que durante as comemorações do aniversário da Grundgesetz, a Lei Fundamental alemã, em 23/5 desse ano, houve uma mesa redonda sobre o tema: "Fatos alternativos: será que ainda estamos vivendo no mesmo universo?".  

O termo "fatos alternativos" foi eleito na Alemanha, em 2017, por um júri de linguistas, como a Unwort des Jahres, i.e., a "não-palavra" ou "antipalavra" do ano justamente por se tratar de uma expressão enganosa, que esconde a tentativa de legitimar afirmações falsas no debate público, tornando-as socialmente aceitáveis.

Fatos alternativos são um fenômeno da nossa época (Zeitgeist-Phänomen), que surgiu nos Estados Unidos na era do ex-presidente Donald Trump, mas que há muito está presente na realidade constitucional alemã. Basta recordar a máquina de propaganda nazista, responsável pela distorção e produção massiva de notícias falsas.

Mas não só: sempre existiram tentativas de formar e/ou manipular a opinião pública (sobretudo as opiniões políticas) a fim de guiar o comportamento social na direção almejada, algo comum em regimes ditatoriais. O que há de novo são as dimensões técnicas que temos hoje na era da globalização e da internet, disse a conferencista.

A questão atual é: quem forma minha opinião?

Não há dúvidas hoje em dia do impacto que as tecnologias provocam na formação da opinião pública. Com efeito, esses espaços virtuais de comunicação, nos quais muitos usuários reforçam mutuamente suas opiniões, têm tido uma importância crescente para a escolha de informações pelo indivíduo.  

Segundo Kessal-Wulf, plataformas como Facebook (Meta) e Google têm assumido a tarefa, através de algoritmos, de filtrar para o usuário, na avalanche de informações disponíveis na internet, aquelas que podem ser de seu interesse e, dessa forma, acabam decidindo, na prática, quais informações serão oferecidas ao usuário. 

Assim, a grande questão que se põe atualmente não é mais como eu formo minha opinião, mas quem forma minha opinião, disse a renomada magistrada.

Se, por um lado, as novas tecnologias digitais significam progresso, não se pode ignorar, por outro, que elas podem deflagrar o que em inglês se denomina de "slippery slope", uma espécie de "ladeira escorregadia", que traduz a ideia de perda de controle.

A juíza do Bundesverfassungsgericht (BVerfG) afirmou que a digitalização mudou a comunicação e, com isso, o acesso ao discurso democrático.

Diante da difusão ilimitada de informações na internet, o emissor perde facilmente o controle sobre as suas manifestações, sendo praticamente impossível reverter as informações falsas, as quais podem adquirir, por vezes, uma dinâmica própria.

O simples fato do indivíduo poder participar das discussões sob o manto do anonimato faz com que muitas pessoas percam a inibição e, não raramente, as opiniões de vários usuários se transformam - de forma espontânea ou deliberada - em ataques coletivos (Shitstorms), contribuindo para um embrutecimento na comunicação.

Com isso, a polarização das opiniões aumenta, surgem novas frentes de conflitos e o embate de opiniões torna-se mais acirrado. A tolerância e a cultura do debate tornam-se palavras desconhecidas a ponto de muitos alertarem atualmente para a existência de um "ódio digital" (digitaler Hass).

Kessal-Wulf adverte, porém, que a mera possibilidade de se propagar uma informação falsa na mídia digital produz uma atmosfera de desconfiança e um clima insalubre no seio social, fazendo com que toda e qualquer espécie de declaração seja rotineiramente checada a fim de verificar se os fatos veiculados são eventualmente "fatos alternativos".  

O problema é que os "fatos alternativos" minam a confiança dos cidadãos nos agentes públicos. E, entanto, essa confiança é essencial em uma democracia representativa e elemento imprescindível à convivência em uma sociedade pluralista.. Se isso não existe, alerta Kessal-Wulf, pode surgir uma espécie de desânimo político generalizado e nos tornaremos uma sociedade na qual os cidadãos acabam se afastando do sistema político e da democracia.

Como evitar a "década sem limites"?

Por isso, a grande questão, segundo ela, não é se ainda vivemos no mesmo universo, mas sim como podemos evitar que a nossa década entre para a história como a "década sem limites", na qual perdemos os limites e o respeito, permitindo a desintegração das regras sociais e jurídicas até então existentes e sedimentadas.

As primeiras consequências da temida "ladeira escorregadia" já podem ser sentidas, disse a juíza do 2. Senado do Bundesverfassungsgericht.

O Estado tem perdido em capacidade de comando; a sociedade, em competência social e a democracia tem perdido o fundamento para o discurso público, necessário para seu funcionamento. O processo democrático tornou-se mais difícil e, devido a reiterados discursos de ódio contra candidatos a cargos públicos, cada vez menos cidadãos estão dispostos a enfrentar uma campanha eleitoral.

Kessal-Wulf disse que na Alemanha, alguns candidatos a cargos municipais já desistiram de se candidatar para se proteger e/ou preservar sua família e seu entorno social desse ambiente tóxico.

A pandemia da covid-19 é outro bom exemplo dos danos provocados pelo descontrole das mídias digitais: circularam nas redes sociais informações falsas não apenas sobre o vírus, mas também sobre os riscos, a suposta falta de eficácia da vacina e diversas teorias conspiratórias de cunho racista e até antissemita.  

A magistrada revelou que o relatório do Departamento de Proteção da Constituição, de 2021, contém, pela primeira vez, um capítulo sobre os movimentos radicais que surgiram no país. Segundo o documento, surgiu "um cenário de hostilidade à Constituição, que ataca, de forma contínua e sistemática, as instituições e as medidas estatais; despreza o parlamentarismo; desrespeita as decisões dos tribunais de forma consciente e provocativa, e ataca os representantes da mídia não só verbal, mas também fisicamente"1.

Ela citou alguns exemplos dos riscos que a verborragia do ódio pode causar: grupos radicais convocaram seus adeptos pela internet a sequestrar e torturar o Ministro da Saúde, acusado de representar a "ditadura da covid-19" e a marchar rumo à residência de um governador a fim de intimidá-lo. Até o Tribunal Constitucional foi acusado de confirmar, de forma servil, as decisões do legislador quanto à pandemia e de se transformar em um instrumento do chamado "regime do corona".

Tudo isso sobrecarrega o aparato policial e judiciário, pondo em risco a capacidade do Direito Penal de se impor, afirmou. As vítimas sentem-se cada vez mais indefesas enquanto os contraventores têm a certeza da impunidade, o que passa a impressão de que a internet é um espaço sem lei, criticou Kessal-Wulf.

Ela asseverou, porém, que é tarefa dos três poderes do Estado - Executivo, Legislativo e  Judiciário - intervir e tomar as medidas de necessárias para combater essa situação. E isso deve ser feito no plano fático, mas, principalmente, no plano jurídico.

No plano fático, deve-se observar os fatos e, se for o caso, corrigi-los, disse. Foi o que fez, por exemplo, o encarregado da supervisão das eleições da Alemanha, que corrigiu expressamente a falsa notícia, veiculada na internet nas últimas eleições parlamentares de 2021, de que eleitores que votassem pela primeira vez poderiam participar de um sorteio desde que colocassem seu nome na cédula eleitoral.

No plano jurídico, tanto o judiciário quanto o legislador têm combatido com firmeza a difusão de fake news e discursos do ódio na Alemanha, avaliou Kessal-Wulf.

A liberdade de expressão é direito fundamental, mas não absoluto

Segundo a ministra, o Bundesverfassungsgericht tem afirmado, pelo menos desde a corajosa decisão que extinguiu o radical partido comunista alemão (KPD) em 1956, que a liberdade de expressão é um dos bens jurídicos mais importantes de qualquer democracia liberal, pois só com o embate de ideias os cidadãos conseguem formar suas opiniões pessoais.  

Kessal-Wulf ressaltou que a livre disputa intelectual é pressuposto indispensável ao funcionamento da democracia liberal, pois só ela garante o debate público sobre questões de interesse geral e de importância político-estatal.

A formação livre de ideias ocorre em um processo de comunicação e pressupõe, de um lado, a liberdade de emitir e divulgar opiniões e, de outro, a liberdade de se informar e de tomar conhecimento das opiniões externadas por outras pessoas.

Segundo o BVerfG, o direito fundamental à liberdade de expressão é a manifestação mais imediata da personalidade humana e um dos direitos humanos mais elementares. Ele é, em certo sentido, o fundamento de toda e qualquer liberdade pessoal.  

Isso significa que a pessoa pode dizer e acreditar em bobagens. Os juízos de valor, disse Kessal-Wulf, precisam ser protegidos independente de serem racionais ou emocionais, certos ou errados, de terem ou não valor sob a ótica de terceiro. Há, por assim dizer, um "direito à insensatez" (Recht auf Unvernunft) ou até um "direito à burrice" (Recht auf Dummheit), afirmou provocativamente. 

A questão tormentosa que se põe nesse contexto é: se posso acreditar em bobagens, posso também divulgá-las? E de que forma isso pode ser feito? 

Fatos alternativos não são protegidos pela liberdade de expressão

A ministra afirmou, inicialmente, que não se pode hoje em dia ignorar a realidade de que as transformações digitais alteraram profundamente a formação da opinião pública. Mas, por outro lado, é necessário evitar o que tem sido chamado de "lixo verbal" das mídias sociais.

Na análise do que é ou não protegido sob o manto da liberdade de expressão, o Tribunal Constitucional alemão faz importante distinção entre afirmações de fatos (Tatsachenbehauptungen) e juízos de valor (Werturteile). Segundo a Corte, afirmações falsas sobre fatos não são protegidas como liberdade de expressão, pois fatos não são juízos de valor. Esses se caracterizam por conter um elemento de opinião, ausente nas meras declarações factuais.  

Kessal-Wulf reconheceu que nem sempre é fácil distinguir o que é afirmação factual e juízos de valor, devendo o intérprete, em caso de dúvida, priorizar a liberdade de expressão sob pena de restringir inadequadamente a proteção do direito fundamental à liberdade de expressão.

Ponderação dos direitos fundamentais

Apesar dessa interpretação ampla e favorável ao direito fundamental, a Lei Fundamental alemã - conquanto proibindo a censura no art. 5, inc. 1 - impõe limites à liberdade de expressão, como, por exemplo, o respeito às leis gerais (aquelas que têm por escopo a proteção de bem jurídico individual ou de valores sociais comuns, que gozam de precedência em relação à manifestação da opinião), às normas de proteção de crianças e adolescentes ou ao direito à honra.

Isso requer uma ponderação entre as posições jusfundamentais em colisão. Tomando como exemplo violações ao direito à honra, isso significa uma ponderação entre a gravidade da violação do direito de personalidade e a restrição à liberdade de expressão.

Também importante levar em consideração a forma e a propagação da opinião manifestada, disse Kessal-Wulf. Quem dela tomou conhecimento: apenas a pessoa afetada, os participantes de um círculo fechado ou a opinião pública em geral? A opinião foi expressa de forma verbal ou ficou perpetuada por escrito ou na internet, que, como dizem, não esquece tão rapidamente? A ministra lembrou que o Tribunal Constitucional alemão reconheceu expressamente, em maio de 2020, que a internet pode aumentar o efeito violador da honra da pessoa atingida.

A ponderação entre os direitos em colisão é obrigatória e só pode deixar de ser realizada em casos excepcionais, afirmou a conferencista, como no caso da chamada crítica degradante (Schmährkritik), a qual não se baseia em um contexto material, mas tem por fim exclusivo denegrir a pessoa, atingindo sua dignidade, como no caso em que uma política alemã foi vítima de ataques na internet com expressões do mais baixo calão (leia aqui a coluna German Report). 

Críticas a pessoas e agentes públicos

Kessal-Wulf ressaltou, porém, que, em princípios, as pessoas públicas e os agentes políticos têm que tolerar criticas, mesmo as formuladas de forma ácida, exagerada ou polêmica. E aqui, a proteção da honra cede quando não estão em jogo questões relacionadas à esfera privada da pessoa, mas questões de interesse público.

Nesse casos, dá-se prevalência à participação democrática do cidadão no debate público. "Quando um cidadão, por receio de (sofrer) sanções jurídicas, não participa mais do discurso público, isso pode pôr em risco os fundamentos da democracia, já que não ocorre mais uma intercâmbio livre de opiniões", surgindo o chamado "efeito silenciador" (silencing-Effekt)2. Faz parte, portanto, da liberdade de expressão que o cidadão possa criticar um detentor de cargo público, inclusive de forma acusadora e pessoal.

Isso não significa, porém, ponderou Kessal-Wulf, que políticos e detentores de cargos públicos devam tudo tolerar, afinal, só se pode esperar que as pessoas se disponham a atuar no estado e na sociedade se lhes for assegurada uma proteção suficiente a seus direitos de personalidade.

Por isso, é também do interesse público que haja uma proteção eficaz dos direitos de personalidade de políticos e outros detentores de cargos públicos, dentre os quais os juízes, disse a palestrante. 

 Eficácia horizontal dos direitos fundamentais

A ministra chamou atenção ainda para a interessante questão da eficácia horizontal dos direitos fundamentais no contexto da liberdade de expressão nas redes sociais.

Segundo ela, doutrina e jurisprudência precisam refletir com mais vagar sobre o papel da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas tendo em vista que atualmente o usuário precisa recorrer a um provedor privado para manifestar suas opiniões.

E aqui surge a controvérsia: será que o operador de uma rede social pode apagar, por iniciativa própria, as postagens de seus usuários, tuteladas pela liberdade de expressão, quando elas violarem as regras de comunicação estabelecidas no contrato?, questionou de forma provocativa.

A seu ver, essa questão ainda não foi suficientemente discutida na Alemanha e carece de uma resposta das cortes superiores, inclusive do Tribunal Constitucional.  

De qualquer modo, disse ela, no processo de interpretação das regras privadas em conformidade com os direitos fundamentais, não se pode levar em conta apenas a liberdade de expressão dos usuários, devendo-se considerar ainda os direitos fundamentais dos provedores, mais precisamente o direito ao livre exercício da profissão, garantido no art. 12 da Lei Fundamental.

Mas, a verdade é que a comunicação digital levanta uma série de novas questões na medida em que o indivíduo depende dos serviços de empresas privadas para emitir suas opiniões, reconheceu Kessal-Wulf.

A reação do legislador às fake news e discursos de ódio

Não apenas o judiciário alemão, mas também o legislador tem estado alerta aos abusos da liberdade de expressão. Em abril de 2021, entrou em vigor, na Alemanha, a lei de combate ao extremismo de direita e à criminalidade de ódio que, dentre outras coisas, promoveu uma alteração do Código Penal.

O legislador fez o que ele gosta de fazer nessas situações: adaptou o Direito Penal, tornando-o mais rígido, disse em tom de crítica a magistrada.

Na exposição dos motivos, o legislador justificou as medidas adotadas em razão do crescente embrutecimento da comunicação na internet e nas mídias sociais, que põe em risco a liberdade de expressão.

E face às massivas interferências no discurso público (inclusive no discurso político), o Estado tem - independente de denúncia do ofendido - um interesse próprio na persecução penal do autor a fim de impor no meio digital o respeito pelo Estado de Direito e pelas regras democraticamente postas, disse a conferencista.

Com isso, ao lado da tutela a bens jurídicos individuais, surge aqui uma proteção do espaço do discurso público e, com isso, um interesse supraindividual, da sociedade como um todo, o qual deve ser levado em conta, segundo a vontade do legislador, pelas novas normas penais.

A "Lei do Facebook"

Fora da esfera penal, há na Alemanha, desde 2017, uma lei que regula as plataformas: a Netzwerkdurchsetzungsgesetz (NetzDG),  popularmente apelidada de Lei do Facebook.

Trata-se de lei nacional que visa combater a crescente disseminação de crimes de ódio e outros conteúdos ilícitos nas mídias sociais como Facebook, Youtube e Twitter. A lei vale para todos os operadores de redes sociais que possuam mais de dois milhões de usuários não país.

Dentre os conteúdos tidos por ilegais, destacam-se: ameaça ao Estado Democrático de Direito, a incitação do povo ao ódio, crimes contra a ordem pública, como a formação de associações criminosas, o xingamento de comunidades religiosas, calúnia, injúria, difamação, bem como a falsificação de dados relevantes para a produção de provas, como a convecção de passaporte de vacina falso pelos negacionistas do coronavírus.

As plataformas que receberem durante o ano mais de cem reclamações de seus usuários acerca de conteúdos ilícitos são obrigadas a apresentar uma prestação de contas, em língua alemã, relatando como lidaram com essas reclamações, a qual deve ser publicada no diário oficial e em sua própria homepage.

Os operadores de plataformas sociais devem bloquear ou apagar, em 24 horas, os conteúdos manifestamente ilícitos. Em casos mais complexos, a plataforma dispõe do prazo de sete dias para decidir sobre o apagamento ou bloqueio, o qual pode ser prorrogado por motivo justificado, concedendo-se oportunidade de defesa ao usuário, autor da postagem.

Além disso, as plataformas devem, mediante ordem judicial, fornecer os dados constantes de seus acervos ao prejudicado quando necessário para ele pleitear em juízo pretensões de natureza civil - em regra: indenização - pela violação de seus direitos provocada pela postagem de conteúdo ilícito.

As empresas são obrigadas ainda a indicar um representante legal para receber citação na Alemanha, o que se justifica pelo fato das grandes empresas de tecnologia estarem sediadas no exterior.  

A observância das novas normas será fiscalizada pelo Departamento Federal de Justiça e seu descumprimento sujeita a empresa infratora a pesadas multas.

Desde fevereiro de 2022, a nova versão da lei obriga as plataformas a comunicar ao departamento da polícia federal (Bundeskriminalamt) determinados conteúdos para fins de persecução penal nos casos em que houver indícios concretos de ameaça ao Estado Democrático de Direito ou à ordem pública.

Para tanto, foi criada uma central de denúncias de conteúdos ilícitos na internet, a qual consta com cerca de duzentos funcionários encarregados de verificar a relevância penal e/ou o potencial de ameaça das postagens, identificar o autor e informar o ocorrido aos órgãos competentes para eventuais persecuções penais.

As críticas e oposições às novas regras não tardaram a surgir, contou Kessal-Wulf. Houve, sobretudo, resistência ferrenha por parte dos operadores das redes sociais.

As críticas vão desde o aumento dos custos com recursos humanos que as novas regras acarretam (só o Facebook tem atualmente mais de mil moderadores de conteúdo na Alemanha) até o questionamento de sua constitucionalidade.

Ao que parece, as plataformas estão tentando burlar as novas regras, não reagindo, por exemplo, às reclamações dos usuários. Estudos mostram que conteúdos que polarizam opiniões e provocam cisão no seio social estão sendo difundidos por algoritmos - como o do Facebook - com uma velocidade maior que os conteúdos que trazem uma informação mais equilibrada, disse a magistrada.

Isso ocorre, porque esses conteúdos induzem uma interação maior dos usuários, que permanecem mais tempo na plataforma permitindo que seus dados possam ser usados de forma lucrativa em publicidade. Além disso, o Facebook esconde os canais de reclamação, enquanto o Twitter tem um formulário de reclamações desnecessariamente complicado, criticou Kessal-Wulf.

Em relação aos problemas de constitucionalidade, alguns alegam que a lei limita indevidamente a liberdade de opinião. Os curtos e rígidos prazos para apagamento ou bloqueio de postagens fazem com que as redes, na dúvida, prefiram retirar determinados conteúdos mesmo quando a liberdade de opinião exija uma ponderação no caso concreto.

Os operadores seriam obrigados a apagar também conteúdos potencialmente lícitos sem uma decisão prévia dos tribunais estatais. A solução de apagar em caso de dúvida traz consigo o risco de um overblocking, alertam os críticos.

Em última análise, a lei acaba transferindo às plataformas tarefas que cabem ao Estado e que não deveriam ser exercidas por um particular. Evitar e combater o discurso de ódio e as fake news é uma tarefa pública, à qual o Estado não pode se furtar, dizem os opositores das medidas. 

A ministra informou que o Google, a pedido de sua subsidiária YouTube, já acionou a justiça administrativa na Alemanha questionando as novas regras. Facebook (Meta), TikTok e Twitter também entraram com ações.

O Digital Service Act

Kessal-Wulf mencionou ainda que recentemente foi aprovado na União Europeia um pacote abrangente de regras para regular as plataformas online: o Digital Services Act, conhecido como a lei dos serviços digitais.

O diploma europeu surgiu a partir da constatação de que um único país não tem condições de combater sozinho, de forma eficaz, os desenvolvimentos negativos na internet.

A lei dos serviços digitais tem por fim fazer respeitar os valores europeus no espaço digital. Ela veio complementar e atualizar partes da diretiva sobre o comércio eletrônico, promulgada há 20 anos.

Isso inclui uniformizar em toda a Europa os procedimentos de denúncia e remoção imediata de conteúdos ilegais, bem como impor deveres de diligência às grandes plataformas.

Em razão da invasão russa na Ucrânia e de possíveis manipulações de informações online, Kessal-Wulf informou que foi proposto recentemente um novo regulamento que introduz um mecanismo que permitirá analisar as atividades das principais plataformas e motores de busca e seu impacto na Guerra da Ucrânia, possibilitando ainda, se necessário, a adoção de medidas para salvaguardar os direitos fundamentais.

A chegada a um denominador comum no plano europeu tem sido vista de forma positiva na Europa, disse a juíza do BVerfG. Fala-se até em uma virada na história da regulamentação da internet. As discussões constitucionais vão nos acompanhar no futuro, afirmou, mas temos vários catálogos fundamentais para nos ajudar: a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, a Convenção Europeia de Direitos Humanos e as constituições nacionais, concluiu a palestrante.

Conclusão: a Lei Fundamental optou pela democracia defensiva

Kessal-Wulf finalizou suas reflexões afirmando que a democracia precisa da liberdade de expressão e da diversidade de opiniões para poder se desenvolver e evoluir. A democracia precisa, por isso, suportar não apenas as opiniões contrárias, mas também as opiniões incômodas, errôneas e absurdas. "Nisso se manifesta a força da democracia", acentuou a ministra alemã3. 

Mas, acima de tudo, a democracia precisa de uma coisa: de democratas, que a preencham com vida, alertou. A democracia só pode ser protegida e preservada se os cidadãos se identificarem com ela e participarem no debate intelectual e político. Se isso não ocorre, porque, devido a notícias falsas e discursos de ódio, ninguém quer se envolver-se na vida política, então estamos, de fato, ameaçados pela "ladeira escorregadia" e, como resultado, por uma "década desregrada". 

Por isso, a liberdade de expressão pode e deve ter limites. A Lei Fundamental alemã optou expressamente pela democracia defensiva e, por isso, ela não permite que os inimigos da Constituição, sob o escudo da liberdade de expressão, destruam ou ameacem a ordem constitucional e a existência do Estado Democrático de Direito, concluiu brilhantemente Kessal-Wulf. Sábias lições para qualquer democracia, sobretudo as mais jovens.

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1 "Hier ist eine verfassungsfeindliche Szene entstanden, die staatliche Maßnahmen und Institutionen anhaltend und systematisch attackiert, die den Parlamentarismus verächtlich macht, gerichtliche Entscheidungen bewusst provozierend missachtet und Medienvertreter verbal und auch körperlich angreift."

2 "Wenn Bürger aus Angst vor rechtlichen Sanktionen nicht mehr am öffentlichen Diskurs teilnehmen, kann das die Grundfesten der Demokratie gefährden, weil kein freier Meinungsaustausch mehr stattfindet (sogenannter "silencing"-Effekt)."

3 "Demokratie braucht Meinungsfreiheit und Meinungsvielfalt, um sich entfalten und weiterentwickeln zu können. Demokratie muss deshalb nicht nur die jeweils andere Meinung, sondern auch die unbequeme Meinung und selbst die irrige und abwegige Meinung aushalten. Gerade darin zeigt sich demokratische Stärke."