Fórum Permanente de Direito Comparado da EMERJ debate a responsabilidade civil do árbitro
terça-feira, 3 de maio de 2022
Atualizado às 10:22
No dia 25/4/2022, a Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) realizou um Webinar para debater o espinhoso tema da responsabilidade civil do árbitro. O evento foi organizado pelo Fórum Permanente de Direito Comparado, que esta articulista tem o prazer de coordenar juntamente com o Des. Eduardo Gusmão com o objetivo de fomentar o diálogo comparado acerca de temas importantes e atuais.
O evento contou com a ilustre participação da Profa. Dra. Mafalda Miranda Barbosa, Professora Auxiliar da milenar Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, da arbitralista Ana Carolina Weber e do Prof. Dr. Thiago Rodovalho (PUC-Campinas), que lançou instigantes provocações no debate.
O ponto alto do evento foi a visão técnica apresentada pela conceituada Professora portuguesa acerca da relação de base existente entre os árbitros e as partes, da qual surgem deveres, cuja violação dá ensejo, a seu ver, à responsabilidade contratual do árbitro, leitura que destoa do entendimento majoritário na doutrina arbitralista nacional, que prega a imunidade (quase) absoluta do árbitro.
Mafalda Miranda Barbosa explicou que o debate acerca da eventual responsabilidade civil do árbitro é marcado por duas posições extremadas: a absoluta imunidade e a absoluta responsabilidade, embora não se trate aqui de uma responsabilidade de cunho objetivo, mas de uma responsabilidade contratual especial1.
Dentre os principais argumentos a favor da imunidade dos árbitros, tem papel central a comparação funcional com os juízes e suas garantias de independência, essenciais ao desempenho da função jurisdicional. Segundo essa corrente, o interesse público na realização da justiça seria incompatível com eventuais pressões que as partes possam exercer durante a arbitragem com base na ameaça de responsabilização2.
Autores há, como António Menezes Cordeiro, que entendem que o árbitro, "sabendo-se responsabilizável", poderia tender a proferir decisões mais neutras ou pender para a parte mais litigante, temendo responsabilizações3. Por outro lado, há outros que rejeitam a total equiparação do árbitro ao juiz4, sustentando - não sem boa dose de razão - que a imunidade encorajaria a "falta de cuidado" e geraria uma situação de total imunidade, criando uma casta privilegiada de atores (rectius: contratantes) irresponsáveis, i.e., insuscetíveis de responsabilização.
A tese legalista
Como explicou a renomada jurista, a tese legalista assenta na ideia de que o árbitro, tal como o juiz, exerce uma função jurisdicional e, por isso, só poderia, quando muito, ser responsabilizado em casos de dolo ou culpa grave. Atente-se que no Brasil, parte considerável da doutrina só admite responsabilização em caso de dolo, i.e., diante da prova cabal da intenção do árbitro agir conscientemente no intuito de prejudicar uma das partes, embora a dogmática civilista há muito equipare a culpa grave ao dolo.
Essa tese busca amparo legal no art. 9º/4 da lei de arbitragem portuguesa - lei 63/2011, Lei de Arbitragem Voluntária (LVA) - segundo o qual "os árbitros não podem ser responsabilizados por danos decorrentes das decisões por eles proferidas, salvo nos casos em que os magistrados judiciais o possam ser".
O dispositivo trata da específica hipótese da responsabilidade por decisões errôneas, mas, como explicou a palestrante, existem diversas outras situações de responsabilidade civil do árbitro, algumas delas elencadas na própria lei, como a responsabilidade do árbitro que, tendo aceito o encargo, se escusar injustificadamente ao exercício da função (art. 12/3) ou que não se desincumbir, em tempo razoável, de suas funções (art. 15/2) ou que obstar injustificadamente que a decisão seja proferida dentro do prazo fixado (art. 43/4).
Segundo Mafalda Miranda Barbosa, a tese legalista dá ênfase à dimensão funcional (jurisdicional) dos árbitros, deixando em segundo plano o ato de autonomia privada das partes da escolha dos árbitros, que, ao aceitar o encargo, celebram com as partes um contrato de árbitro, que toma a forma de um contrato oneroso de prestação de serviço.
A contratualidade da situação jurídica subjacente à arbitragem impede, por si só, que se enquadre a responsabilidade do árbitro como uma espécie de responsabilidade extracontratual, fundada entre nós no ato ilícito, vale dizer, na violação de direitos absolutos, válidos erga omnes (art. 186 CC2002), em contraposição à responsabilidade contratual, cuja causa reside na violação culposa de deveres obrigacionais, eminentemente relativos, como os deveres de prestação (obrigações) e os deveres laterais de conduta, impostos pelo princípio da boa-fé objetiva, como recentemente sintetizou didaticamente o Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp. 1.303.374/ES, julgado em 30/11/2021 sob a relatoria do e. Min. Luis Felipe Salomão.
Não apenas os contratos que envolvem a arbitragem depõem a favor da responsabilidade contratual do árbitro, mas ainda o fato de que não se poder afirmar que os árbitros - sobretudo nas arbitragens voluntárias - desempenham uma função jurisdicional absolutamente equivalente à dos juízes estatais, disse a Professora de Coimbra.
A tese contratualista
A tese contratualista parte do fato de que a espinha dorsal do fenômeno arbitral é a autonomia privada das partes que, de comum acordo, decidem afastar o Poder Judiciário e se submeter a um tribunal arbitral por elas constituído. Para tanto, as partes celebram um negócio jurídico (convenção de arbitragem) submetendo um litígio - presente (compromisso arbitral) ou futuro (cláusula compromissória) - à decisão de árbitros que, por sua vez, aceitam a incumbência de solucionar o conflito. Surge, então, entre as partes e os árbitros um contrato de árbitro ou Schiedsrichtervertrag, no vernáculo alemão.
Dessa forma, a autonomia privada das partes é a fonte de legitimação direta do poder dos árbitros. Em outras palavras: é o contrato que legitima a arbitragem, sobretudo a voluntária. Mesmo a arbitragem institucionalizada funda-se no contrato, pois requer a celebração de um contrato de colaboração arbitral, concluído entre o árbitro e o centro de arbitragem, e de um contrato de organização de arbitragem, celebrado entre as partes e a instituição, explica Mafalda Miranda Barbosa.
E conquanto na arbitragem institucionalizada não haja um contrato entre o árbitro e as partes, a pujante dogmática obrigacional continental justifica a responsabilidade contratual do árbitro em face das partes com base na eficácia protetora a terceiros irradiante do contrato de colaboração arbitral5.
A figura do contrato com eficácia de proteção em favor de terceiros (Vertrag mit Schutzwirkung zugunsten Dritter), vale recordar, surgiu no direito alemão à partir da ideia de que o contrato - rectius: a relação obrigacional (Schuldverhältnis) - pode gerar uma eficácia protetora a terceiros que se encontram especialmente próximos ao campo normativo do negócio jurídico e podem ser afetados pelo cumprimento da prestação, o que justifica a concessão de uma pretensão ressarcitória ao lesado face ao devedor, mesmo quando aquele não tenha contra este nenhuma pretensão contratual direta.
De qualquer forma, para o que aqui interessa, deve-se reter que a vontade das partes desempenha papel fulcral na medida em que fundamenta e justifica o próprio instituto da arbitragem enquanto instrumento alternativo de resolução de conflitos. Estruturando-se a relação dos árbitros com as partes sobre um contrato, a responsabilidade civil do árbitro se põe necessariamente no quadro da responsabilidade contratual, afirmou a brilhante jurista portuguesa.
Os contratos celebrados na arbitragem
A painelista explicou que surgem na arbitragem diversos contratos. De início, destaca-se a convenção de arbitragem, negócio jurídico por meio do qual as partes submetem aos árbitros a decisão de um litígio. Essa convenção, porém, não basta, sendo imprescindível para a constituição de um tribunal arbitral que sejam escolhidos árbitros e que estes aceitem a incumbência. A doutrina fala, então, em contrato de investidura ou, como prefere a Professora de Coimbra, contrato de árbitro, no qual se definem diversos elementos, como a missão, a retribuição, etc.
E mesmo a arbitragem institucionalizada, a qual funciona em centros com tribunais permanentes e árbitros predeterminados, estrutura-se, segundo a autora, com base na figura do negócio jurídico (seja o contrato de colaboração arbitral, seja o contrato de organização de arbitragem), de modo que, a despeito das particularidades desses contratos, não pairam dúvidas: a arbitragem é marcada pela contratualidade.
A responsabilidade contratual do árbitro
A partir do momento em que se considera que entre os árbitros e as partes existe um contrato de prestação de serviços de arbitragem, conclui-se, necessariamente, que o descumprimento de deveres reconduzíveis ao contrato gera a responsabilidade contratual do árbitro.
Segundo Mafalda Miranda Barbosa, reina relativo consenso no direito comparado de que o árbitro assume como obrigação principal o dever de proferir uma decisão justa ao caso que lhe foi submetido. Ele não se obriga a decidir o caso em um determinado sentido, nem conforme aos interesses da parte que o indicou, menos ainda de defender tais interesses, pois não assume uma relação de mandato ou de representação, própria dos advogados.
Há também consenso de que o árbitro só responde pelas decisões errôneas que profira em caso de dolo ou culpa grave, pois em relação à responsabilização pelo conteúdo das decisões deve-se aplicar o mesmo regime jurídico dos juízes. Segundo a expositora, no ordenamento jurídico português o árbitro só é responsável pelos danos decorrentes de decisões manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou, ainda, injustificadas por erro grosseiro de fato ou de direito.
Ou seja: não basta qualquer erro, é necessário a presença de um erro qualificado. Da mesma forma, não basta que a decisão seja desconforme com a Constituição ou com o texto da lei, nem que apresente uma interpretação divergente, mas plausível do direito positivo. É necessário que a inconstitucionalidade ou a ilegalidade da decisão seja manifesta e o erro, grosseiro.
A doutrina lusitana diverge, porém, em relação à natureza jurídica da responsabilidade pelo (mau) conteúdo da decisão, pois alguns autores entendem que a responsabilidade do árbitro, enquanto julgador, tem natureza extracontratual, à semelhança da responsabilidade dos juízes, embora ele responda, enquanto prestador de serviços de arbitragem, segundo o regime da responsabilidade contratual6. A responsabilidade civil do árbitro se submeteria, segundo essa corrente, a uma duplicidade de regimes de responsabilidade, entendimento do qual a autora discorda por entender que a responsabilidade do árbitro tem sempre natureza contratual.
Mas o árbitro não responde apenas pelo conteúdo de sua decisão. No quadro da relação contratual que entabula, ele assume uma prestação de serviço e, portanto, uma gama de deveres relacionados à arbitragem.
Ele não pode, por exemplo, escusar-se de cumprir a função que aceitou, salvo causa superveniente que o impossibilite de realizar a arbitragem ou se, não tendo sido fixados os honorários na convenção de arbitragem, não for concluído acordo escrito acerca da remuneração antes da designação. O art. 12/3 da LAV prevê a hipótese de responsabilidade do árbitro que, após aceitar a designação, se escusa injustificadamente de exercer o encargo, responsabilidade que tem clara natureza contratual, como bem pontua Mafalda Miranda Barbosa, vez que o que está em jogo é o descumprimento da prestação a que se obrigou.
O mesmo diga-se em relação à responsabilidade do árbitro pela demora injustificada em jugar o litígio. Ao assumir uma arbitragem, diz a painelista, o árbitro se compromete a exercer a função com elevada diligência, o que implica não só na qualidade do serviço, mas também na temporização adequada. Essa hipótese está prevista no art. 15/2 da lei portuguesa, mas, na falta de previsão legal, poderia ser exigida com base no princípio da boa-fé objetiva, afirmou a Professora da Universidade de Coimbra.
Grande relevância prática possui ainda o dever de revelação dos árbitros, consagrado tanto no art. 13 da lei portuguesa, como no art. 14 § 1º da lei brasileira de arbitragem7. O mencionado art. 13/1 diz que quem for convidado a exercer funções de árbitro deve revelar todas as circunstâncias que suscitar fundadas dúvidas sobre sua imparcialidade e independência. E o inciso 2 da norma complementa estabelecendo o dever do árbitro de, durante todo o processo arbitral, revelar sem demora às partes e aos demais árbitros circunstâncias supervenientes que possam suscitar fundadas dúvidas ou das quais só tenha tomado conhecimento depois de aceitar o encargo.
A ofensa ao dever de revelação é um problema sensível, porque, como afirma-se no direito comparado, a qualidade da arbitragem depende da qualidade de seus árbitros, já que nesse sistema de resolução de litígios não existem os mecanismos de controle que caracterizam o sistema judicial. É imprescindível, pois, que os árbitros sejam independentes, imparciais e neutros para bem pacificar o litígio. Mas não só: a comunidade internacional tem exigido cada vez mais uma conduta ética dos árbitros, pois comportamentos moral e eticamente reprováveis têm efeitos devastadores para a arbitragem e para o sistema arbitral como um todo.
Cabe abrir um parêntese para lembrar que, no Brasil, alguns questionamentos acerca do comportamento enviesado de alguns árbitros têm chegado ao Judiciário e provocado muita polêmica, de modo que a discussão acerca da responsabilidade civil do árbitro não é um problema afeto exclusivamente à comunidade arbitral, mas tema de interesse da comunidade científica, da sociedade e do Judiciário, onde - ao fim e ao cabo - esses problemas acabam desaguando.
Retornando à questão da responsabilidade contratual do árbitro, há de se ter em mente que, a rigor, a gama - e o conteúdo - dos deveres assumidos pelos árbitros só podem ser concretizados no caso concreto com base nas regras de interpretação do negócio jurídico, sendo certo que, além dos deveres expressamente previstos no contrato, na lei ou nos regulamentos dos centros de arbitragem, surgem frequentemente, de acordo com as peculiaridades do caso, deveres de consideração (Rücksichtspflichten) decorrentes do mandamento da boa-fé objetiva, que a autora denomina, com base na doutrina alemã mais antiga, deveres de proteção (Schutzpflichten).
"Na verdade, a boa-fé, enquanto regra ordenadora de condutas que impõe a honestidade, a correção e a lealdade aos contraentes, inspira deveres de proteção no quadro contratual. Não basta que se cumpra o dever principal de prestação que assumiu. Imperioso é, também, o modo e o tempo de cumprimento", salientou Mafalda Miranda Barbosa8.
Dessa forma, concluiu a renomada Professora, a imparcialidade e independência a que alguns autores fazem referência para justificar a irresponsabilidade dos árbitros não se justifica perante o negócio jurídico (contrato atípico, bilateral e oneroso) celebrado entre as partes e, cabe acrescentar, nem perante o ordenamento jurídico, que não imuniza a priori nenhum contratante de responsabilidade. Ao contrário, como regra, todo agente que atua no comércio jurídico responde por seus atos.
Conclusões
Da riquíssima e técnica fala de Mafalda Miranda Barbosa, conclui-se, em suma, que a ideia de uma irresponsabilidade, i.e., uma imunidade absoluta dos árbitros não se justifica tecnicamente, considerando a regra geral de responsabilidade imposta aos partícipes do comércio jurídico e a natureza eminentemente contratual da relação de base que une os árbitros às partes.
Conclui-se ainda que os árbitros não podem, em regra, ser responsabilizados pelos danos decorrentes de suas decisões, salvo dolo ou culpa grave materializado em erro grosseiro de fato ou de direito, como ocorre em caso de decisões manifestamente ilegais ou inconstitucionais.
No mais, em relação à violação dos demais deveres obrigacionais impostos no contrato, na lei, nos regulamentos dos centros de arbitragem ou pelo mandamento da boa-fé (deveres laterais de conduta), os árbitros respondem segundo o regime jurídico contratual, calcado na presunção de culpa.
Concorde-se ou não com a visão de Mafalda Miranda Barbosa, uma coisa é certa: a leitura obrigacional da responsabilidade civil do árbitro com base no contrato subjacente abre um horizonte imenso de reflexões aqui no Brasil, onde ainda se fala amplamente na imunidade dos árbitros, dando margem às críticas que alertam para a necessidade de abrir a "caixa preta" da arbitragem.
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1 Confira-se o Webinar "Responsabilidade civil do árbitro", realizado na EMERJ, disponível aqui. Acesso: 1/5/2022. Para aprofundamento do tema, confira-se: MIRANDA BARBOSA, Mafalda. Responsabilidade civil do árbitro. In: Actas - Colóquio "Resolução alternativa de litígios de consumo". Centro de Direito do Consumo da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2016, p. 115-154.
2 A presente coluna tem por base a exposição de Mafalda Miranda Barbosa no Webinar, bem como o artigo homônimo, mencionado na nota de rodapé anterior.
3 António Menezes Cordeiro. Tratado da arbitragem. Coimbra: Almedina, 2015, p. 137. No mesmo sentido: MULLERAT, Ramón. The liability of arbitrators: a survey of current practice. In: International Bar Association - Commission on Arbitration. Chicago, 21 September 2006, p. 10, informando que esse é o entendimento dominante nos Estados Unidos.
4 BARBOSA MIRANDA, Mafalda. Op. cit., p. 120.
5 MIRANDA BARBOSA, Mafalda. Op. cit., p. 129.
6 Nesse sentido, MENEZES CORDEIRO, António. Op. cit., p. 137.
7 Art. 14, § 1º As pessoas indicadas para funcionar como árbitro têm o dever de revelar, antes da aceitação da função, qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência.
8 No mesmo sentido: MIRANDA BARBOSA, Mafalda. Op. cit., p. 134.