Quem decide se os filhos devem ser vacinados contra covid?
quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022
Atualizado em 8 de fevereiro de 2022 21:41
Com o início da vacinação de crianças e adolescentes contra a covid-19 acirrou-se a discursão entre os pais para saber se os filhos menores devem ou não ser imunizados contra o coronavírus (SARS-Cov-2).
Infelizmente, por questões político-ideológicas, a vacinação contra a covid-19 virou polêmica no Brasil, onde, desde a famosa Revolta da Vacina em 1904, a população comparecia, sem resistências, regularmente aos postos de vacinação para se imunizar contra as mais variadas doenças.
Na Europa, a discussão também é acessa, embora lá as razões da relutância à imunização sejam bem mais complexas. Acresça-se a isso o fato de inexistir, em geral, obrigatoriedade de vacina na maioria dos países europeus, nos quais, por uma série de fatores, há forte resistência na população contra tamanha intervenção estatal no corpo e na autodeterminação individual.
Por isso, a discussão acerca da exigência de vacina contra a covid-19 tem dividido tantas opiniões. Os governos têm sido cautelosos com o problema e o legislador, tímido.
Na Alemanha, o Parlamento (Bundestag) optou por exigir a vacinação apenas de determinado grupo de pessoas, os profissionais de saúde, que trabalham, sobretudo, com pessoas idosas e/ou do grupo de risco em hospitais, clínicas, consultórios e casas de abrigo1.
A Áustria tomou decisão mais radical, tornando obrigatória a vacinação para a população adulta em geral. E, ao contrário daqui, onde - a despeito da obrigatoriedade da vacina - não há fiscalização, lá o Poder Público tem feito controle nas ruas e em transportes públicos, aplicando multas que variam de 600 a 3.600 euros.
Nenhum dos dois países impôs, porém, uma imunização obrigatória para crianças e adolescentes (na Áustria, a exigência atinge pessoas maiores de dezoito anos). Dessa forma, a decisão de vacinar ou não a prole ainda cabe aos pais. Mesmo no Brasil, onde há em tese obrigatoriedade da vacina, discute-se se essa decisão não caberia exclusivamente aos genitores.
O fato é que tanto aqui, como lá as discussões em torno da vacina contra a covid-19 têm ido parar no Judiciário. E a falta de diálogo sensato e consenso entre os genitores têm transferido, na prática, a decisão sobre a vacinação para o juiz.
E a grande questão que se coloca é: afinal, quem decide se a criança deve ser vacinada ou não?
Na Alemanha, um ex-casal levou a discussão a juízo, pois os dois não conseguiram chegar consensualmente a acordo sobre se os filhos de doze e quatorze anos deveriam ser imunizados contra o coronavírus.
No início, eles decidiram amigavelmente delegar a decisão a terceiro, no caso, a pediatra das crianças, que se pronunciou favoravelmente à vacinação.
A mãe, porém, contrária à vacinação, mudou de opinião e decidiu não acatar a sugestão da médica escolhida para mediar o conflito. O pai, então, pleiteou em juízo que o magistrado lhe atribuísse o poder de decidir sozinho acerca da imunização.
O juiz da vara de Família da comarca de Bad Iburg, na região de Niedersachsen (Baixa Saxônia), acatou o pedido e transferiu ao genitor o poder de decidir sobre a imunização dos menores. Trata-se do processo Familiengericht Bad Iburg 5 F 458/21 EASO, julgado em 14/1/22.
Segundo ele, a decisão de transferir o poder de decisão sobre vacinas baseia-se na jurisprudência da Corte infraconstitucional (Bundesgerichtshof), que entende que o poder de decisão deve, em princípio, ser transferido para o genitor que é favorável à vacinação da criança de acordo com as recomendações do Instituto Robert Koch, desde que do imunizante não decorram riscos especiais para a criança.
A sentença impôs, portanto, duas condições: que a vacinação seja feita com um imunizante reconhecido e recomendado pelo Instituto Robert Koch, a agência do governo federal da Alemanha e instituto de pesquisa responsável pelo controle e prevenção de doenças, e que não haja graves riscos para os menores.
O magistrado fundamentou sua decisão no § 1.628 do BGB, segundo o qual: "Se os pais não conseguem chegar a acordo sobre um determinado assunto individual ou sobre um determinado tipo de assunto relacionado com o poder parental, cujo acordo seja de considerável importância para a criança, o tribunal de família pode, a pedido de um dos pais, transferir a decisão para um dos genitores. A transferência pode estar sujeita a restrições ou condições"2.
A norma autoriza o magistrado, em suma, a transferir, em caso de conflito, decisões importantes relacionadas aos filhos a apenas um dos genitores.
Como o Robert Koch Institut tem recomendado a proteção imunológica com a vacina Comirnaty, fabricada pela Pfizer-BioNTech, que utiliza a biotecnologia mRNA - RNA mensageiro, o pai terá que optar por esse imunizante específico, a menos que outro seja aprovado e recomendado nesse ínterim.
O juiz assinalou ainda que, em princípio, deve-se levar em consideração também a vontade da criança, nos termos do § 1.697a BGB. Entretanto, essa regra só vale quando o menor, considerando sua idade e desenvolvimento, consegue formar uma opinião autônoma sobre o objeto da disputa.
No caso concreto, porém, os menores não tinham opinião própria sobre a vacina de covid-19, seus riscos e benefícios, pois estavam submetidos massivamente a medos e intimidações por parte da mãe, concluiu o julgador. Assim, deve prevalecer o bem-estar dos menores, afirmou a sentença.
No Brasil, o STF decidiu, em dezembro de 2020, no ARE 1.267.879, com repercussão geral (tema 1103), que os pais não podem deixar de vacinar os filhos, independentemente de questões ideológicas, religiosas ou morais. A vacinação não pode ocorrer à força, mas pode ser condição para a prática de certos atos, como a matrícula na escola, a percepção de benefícios como o Bolsa Família, sendo possível inclusive a imposição de penalidades.
Dessa forma, os pais devem ser obrigados a vacinar os filhos desde que o imunizante esteja registrado em órgão de vigilância sanitária, incluído no PNI - Programa Nacional de Imunizações, tenha sua aplicação determinada por lei ou seja objeto de determinação da União, Estado, DF ou município, com base em consenso médico-científico.
Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar, diz a tese fixada em repercussão geral pelo STF em 17/12/20.
Em janeiro passado, o ministro do STF, Ricardo Lewandowski, oficiou os procuradores-gerais de Justiça dos Estados e do DF para que adotem medidas para fiscalizar os pais que se recusam vacinar seus filhos contra a covid-19. O ofício ordena que o MP empreenda as "medidas necessárias" para a vacinação das crianças3.
A medida causou polêmica, pois a vacina contra covid-19 ainda não integra o PIN do governo Federal e o Ministério da Saúde, ao anunciar a liberação do uso de imunizante para o público infanto-juvenil, teria afirmado que a vacinação não era obrigatória e só poderia ser aplicada com o consentimento dos pais4.
Os críticos da medida argumentam que, como a vacina de covid não é obrigatória, não poderia ser alvo de fiscalização. Ademais, a admitir-se a medida, corre-se o risco de se instaurar um estado policialesco, no qual a população passa a vigiar e denunciar o outro.
Outro ponto controverso diz respeito às sanções que podem recair sobre os pais que não vacinarem seus filhos. O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê a aplicação de multa de três a vinte salários-mínimos para pais que descumprem deveres inerentes ao poder familiar.
Mas outra medida possível é a perda da guarda ou do poder familiar, prevista no art. 129 do ECA, embora alguns argumentem que a falta de vacina não esteja listada em lei como causa determinante dessa drástica medida.
No meio dessa discussão, a Secretaria de Educação de São Paulo baixou resolução em janeiro passado determinando a apresentação de comprovante de vacinação contra a covid-19 por estudantes da rede estadual, pública e privada. Caso os pais não apresentem o documento, as escolas são obrigadas a informar o conselho tutelar para que sejam adotadas as "medidas cabíveis".
Porém, mesmo diante da falta de apresentação do documento ou do registro de algum imunizante, a matrícula, rematrícula ou frequência do estudante às aulas não poderá ser impedida, vez que o direito à educação tem status jusfundamental5.
Disso tudo percebe-se quanta insegurança jurídica pode ser causada pela dissonância entre os poderes executivo e judiciário acerca de temas fundamentais para a sociedade.
Independente de qualquer filiação político-ideológica, uma coisa é certa: o poder familiar não autoriza aos pais a - invocando convicções pessoais - colocar em risco a vida e a saúde de seus filhos.
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1 Alemanha aprova vacina obrigatória para setor da saúde. DW Brasil, 10/12/2021.
2 No original: "§ 1.628. Können sich die Eltern in einer einzelnen Angelegenheit oder in einer bestimmten Art von Angelegenheiten der elterlichen Sorge, deren Regelung für das Kind von erheblicher Bedeutung ist, nicht einigen, so kann das Familiengericht auf Antrag eines Elternteils die Entscheidung einem Elternteil übertragen. Die Übertragung kann mit Beschränkungen oder mit Auflagen verbunden werden."
3 Lewandowski manda MP fiscalizar pais que não vacinam filhos contra a Covid. Gazeta do Povo, 19/1/2022.
4 Juristas questionam fiscalizacao de pais sobre vacinação de crianças contra a Covid-19. Gazeta do Povo, 20/1/2022.
5 Exigência de comprovante de vacina em escolas de SP segue a linha de orientação do Ministério Público. O Globo, 29/1/2022.