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Alemanha proíbe realização de cirurgias corretivas de sexo em menores

terça-feira, 23 de novembro de 2021

Atualizado às 08:43

Em março desse ano, o Parlamento alemão (Bundestag) aprovou importante lei garantindo respeito e autonomia a pessoas intergênero, ditas não-binárias ou - equivocadamente - de "agênero, pois não se deixam biologicamente enquadrar como pertencente ao gênero feminino ou masculino. 

A lei tutela basicamente as crianças intergênero, que possuem sexo indefinido ao nascer, dificultando ao médico identificá-las como do gênero masculino ou feminino. A nova lei proíbe a realização de intervenções cirúrgicas e/ou hormonais feitas normalmente nos primeiros meses de vida com o objetivo exclusivo de adaptar o sexo das crianças à categoria binária (masculino ou feminino). 

Cabe, de início, já salientar a importante distinção entre intergênero e transexualidade: enquanto uma pessoa intergênero nasce biologicamente sem as características sexuais definidas, a pessoa trans possui caracteres sexuais claros, razão pela qual se lhe imputa desde cedo um gênero com o qual ela, porém, não se identifica. 

Em outras palavras: a pessoa trans tem biologicamente um gênero definido, mas se sente pertencente a outro gênero: masculino, feminino ou algo intermediário. O intergênero, ao contrário, apresenta ao nascer variações genéticas, hormonais, gonodais ou genitais que dificultam sua identificação como homem ou mulher. Isso levou a doutrina médica a classificar tais alterações como "distúrbios do desenvolvimento sexual" ou Disorders of Sex Development (DSD) - Störungen der Geschlechtsentwicklung, no vernáculo alemão. 

A lei aqui comentada regula, portanto, apenas a realização de tratamentos cirúrgicos, clínicos e/ou hormonais em crianças intergênero sem seu consentimento e nada tem a ver com a discussão em torno da transexualidade. 

 As crianças intergênero: cicatrizes no corpo e na alma 

Todo mundo ao nascer é identificado como pertencente ao gênero masculino ou feminino, de acordo com o sexo biológico. Essa exigência consta expressamente do art. 54 da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/1973) e do § 21 I 3 da lei alemã que disciplina o estado pessoal do indivíduo (Personenstandsgesetz). 

Porém, desde os primórdios existem pessoas que nascem sem as características biológicas (v.g., genéticas, hormonais, gonodais ou genitais) claramente definidas, dificultando aos médicos enquadrá-las na milenar categoria binária de gênero. 

Na Antiguidade, essas pessoas eram chamadas de hermafroditas, em alusão ao belo Hermafrodito, filho de Hermes e Afrodite, cujo corpo passou a apresentar características masculinas e femininas quando se fundiu ao da ninfa Salmacis, que havia caído de amor por ele. A pedido dela, ambos se transformaram em um único ser, segundo os contos do poeta grego Publius Ovidius Naso. 

O termo retrata (pejorativamente) as pessoas intergênero, embora o hermafroditismo seja apenas uma variante de ampla paleta de um gênero distinto, dotado de caraterísticas biológicas masculinas e femininas: o inter-gênero.

Esse não é um "diagnóstico" fácil para os pais, afinal, vivemos em um mundo binário e heteronormativo, no qual quem não se enquadra nas duas categorias de gênero é visto como alguém deformado, portador de um "distúrbio" ou "doença", vivendo à margem da aceitação, do reconhecimento e da valorização social.

Por isso, os pais, temerosos com as discriminações e dificuldades que a criança enfrentará ao longo da vida, resolvem submetê-la a cirurgias corretivas e adaptadoras da genitália aos padrões masculino/feminino, como a retirada de gônadas (órgãos responsáveis pela produção de células sexuais), modelação do pênis, redução do clitóris ou a (re)construção plástica da vagina1.

Frequentemente, esses infantes são submetidos ainda a permanentes tratamentos hormonais a fim de garantir o desenvolvimento de "características" masculinas ou femininas, como crescimento dos seios, surgimento de barba, etc., cujos efeitos colaterais ainda não são totalmente conhecidos.

Em regra, são necessárias várias intervenções cirúrgicas ao longo da vida da criança a fim de forçar a adaptação do corpo infante aos padrões binários de gênero e os pais e/ou representantes legais são fortemente pressionados a tomar decisões sem estarem plenamente informados sobre as consequências a longo prazo do tratamento para seus filhos2.

O "tratamento" das crianças intergênero é um caminho longo e doloroso. Embora feito com a melhor das intenções por médicos e familiares, deixa profundas marcas no corpo e na alma do indivíduo.

Além de danos funcionais - como dor ao urinar, dores decorrentes da dilatação da vagina, restrições sexuais até perda de orgasmo e da capacidade reprodutiva - as pessoas afetadas relatam transtornos psíquicos, principalmente insegurança sexual e em sua identidade de gênero, depressões e traumas diretamente relacionados com os tratamentos médicos ou com a pressão social à "normalização" da pessoa3.

A esse quadro acresça-se o fato de que, atualmente, parte considerável da ciência especializada entende inexistir indicação médica para o tratamento das pessoas intergênero4, pois não há "cura" para a intersexualidade e, na grande maioria dos casos, o intergênero é uma pessoa absolutamente saudável sob o aspecto clínico.

Logo, não envolve risco para a vida, exceto em casos excepcionais nos quais o risco de morte justifica por si só a intervenção. Afora esses casos raros, a única "anomalia" seria a sexual. Por isso, aduz-se, o objetivo do tratamento é exclusivamente forçar a adaptação do corpo do intergênero ao gênero escolhido pelos pais. Daí dizer-se que o tratamento é meramente cosmético, isto é, estético, visando adaptar os órgãos sexuais a um padrão de gênero.  

Pano de fundo histórico

A prática de intervenções cirúrgicas em crianças com variações de desenvolvimento sexual foi iniciada pelo psicólogo norte-americano John Money que, nos idos de 1950, desenvolveu o chamado "Tratamento de Baltimore"5.

Segundo Money, crianças sem genitais claramente definidas deveriam ser submetidas a intervenções cirúrgicas logo após o nascimento a fim de adaptá-las, o mais rápido possível, ao sexo mais favorável.

Com isso, Money, preso numa visão binária de mundo, acreditava que se permitiria à criança uma educação de acordo com um gênero (optimaler gender policy), o que seria essencial para a construção de uma identidade de gênero estável e para o desenvolvimento de uma personalidade sã, livre de transtornos psíquicos, facilitando a vida do "paciente" em sociedade.

Mas, devido aos inúmeros - e permanentes - transtornos físicos e psíquicos que os tratamentos cirúrgicos e hormonais causam à sujeito, desde a década de 1990, as pessoas intergênero lutam para enquadrar a prática como violação de direitos humanos, nomeadamente da autonomia corporal e da autodeterminação de gênero, exigindo o fim de intervenções cirúrgicas e/ou hormonais sem o consentimento prévio, livre e informado da pessoa.

Em 1996, foi criado na Alemanha um grupo de trabalho contra a violência pediátrica e ginecológica que se posicionou contrário às "operações cosméticas" em crianças e adolescentes, realizadas com o fim exclusivo de adapta-las ao gênero masculino/feminino, sem o devido esclarecimento acerca da violação dos direitos humanos decorrente da prática.

Os postulados de John Money só foram revistos, contudo, em 2005, por ocasião da Conferência de Chicago, organizada pela sociedade de pediatria e endocrinologia Lawson Wilkins e pela European Society for Pediatric Endocrinology. Desde então, fala-se não mais em "distúrbios", mas em "variações" do desenvolvimento sexual (Differences of Sex Development)6.

Com os anos, avolumaram-se as críticas às intervenções cirúrgicas e/ou hormonais em pessoas intergênero ao argumento, sobretudo, de que essas práticas configuravam grave violação aos direitos humanos das vítimas ao forçá-las a adotar uma identidade de gênero irreversível e diferente da qual nasceram.

Em 2007, especialistas internacionais em direitos humanos publicaram um manifesto exortando os países a adotar medidas adequadas - legais, administrativas, dentre outras - a impedir que crianças sofram intervenções irreversíveis em seus corpos sem seu consentimento, ressalvada as hipóteses de risco à vida e à saúde.   

Em 2014, a Organização Mundial de Saúde (OMS) emitiu declaração, juntamente com o departamento de direitos humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), alertando para a gravidade de esterilizações involuntárias e intervenções irreversíveis em diversos grupos de pessoas, inclusive em infantes com alterações genitais, recomendando que tais intervenções fossem adiadas até que a criança intergênero pudesse decidir de forma autônoma e informada.

O Parlamento Europeu reconheceu o problema em 2019, condenando veementemente os tratamentos e as cirurgias de "normalização sexual". Na Proposta de Resolução B80101/2019, o Parlamento afirmou que a patologização das variações intersexuais compromete o pleno gozo do direito ao mais elevado nível de saúde possível das pessoas intergênero, instando os Estados-Membros a promover - a exemplo de Malta e Portugal - a despatologização das pessoas intergênero.

Na Alemanha, há muito reina relativo consenso de que o tratamento dado às pessoas com variações no desenvolvimento sexual constitui um problema social, pois inúmeras cirurgias - masculinizadoras ou feminizadoras - são realizadas anualmente no país em crianças saudáveis, que, porém, não se deixam enquadrar nem no gênero masculino, nem no gênero feminino7.

Em 2017, o Tribunal Constitucional alemão deu passo histórico ao reconhecer a existência de um terceiro gênero (intergênero) ao lado das categorias masculino/feminino, concedendo prazo de um ano para o Bundestag disciplinar a questão. O julgado, porém, não tratava do problema das cirurgias normalizadoras em crianças, não se manifestando, dessa forma, a Corte sobre esta questão específica8.

No contrato de coalisão (Koalitionsvertrag) celebrado entre os partidos da base de sustentação do governo de Angela Merkel, em 2019, ficou acordado que o Parlamento regularia por meio de lei as intervenções médicas adaptadoras do sexo em crianças menores, condicionando sua realização ao consentimento informado e esclarecido do infante, salvo em casos emergenciais de grave risco à saúde ou à vida.   

Por isso, o governo apresentou o Projeto de Lei (Gesetzentwurf) para proteção de crianças com variações no desenvolvimento sexual, enviado pela Chanceler ao Parlamento em 15/11/20, prevendo alterações no § 1.631 do BGB a fim de proibir a realização de tratamentos irreversíveis em menores desprovidos de aptidão para decidir autonomamente, salvo situações que exijam intervenção médica urgente.

Em 25/3/2021, o Bundestag aprovou a lei proibindo as chamadas "operações de normalizações sexuais" em crianças até que elas próprias alcancem maturidade para decidir de forma livre e informada.

As alterações no BGB

Desde 22/5/2021, entrou em vigo nova lei que introduziu o § 1.631e no Código Civil alemão, o Bürgerliches Gesetzbuch (BGB). Pelo § 1631e, inc. 1 BGB, o legislador proibe a realização de cirurgias e tratamentos de normalização sexual em crianças incapazes de manifestar seu consentimento, desde que as intervenções tenham o fim exclusivo de adaptar a aparência corporal do infante à ordem binária - salvo casos urgentes autorizados pelo Poder Judiciário.

O dispositivo retira dos genitores e representantes legais o poder de decidir acerca da realização de tratamentos normalizadores do sexo ao afirmar expressamente que o dever de cuidado dos pais não inclui mais o poder de decidir acerca da realização desse tipo de tratamento. A decisão agora é da criança. Diz a norma: 

"§ 1.631e - Tratamento de crianças com variações no desenvolvimento sexual

(1)  O cuidado pessoal não inclui o direito de consentir no tratamento ou de realizar pessoalmente o tratamento de uma criança com variante de desenvolvimento sexual, incapaz de dar seu consentimento, e que, sem que haja qualquer outra razão para o tratamento, tenha por fim exclusivo conformar a aparência física da criança com o sexo masculino ou feminino.

(2)  Os pais só podem consentir em procedimentos cirúrgicos sobre as características sexuais internas ou externas de uma criança incapaz de dar seu consentimento e com uma variante do desenvolvimento sexual, dos quais poderiam resultar uma adaptação da aparência corporal da criança à do sexo masculino ou feminino e para os quais não falta a capacidade de consentimento do inciso 1, se a intervenção não puder ser adiada até uma decisão autodeterminada da criança. O § 1.909 não se aplica.

 

(3)  O consentimento, nos termos do inciso, 2 frase 1, requer a aprovação do juízo da família, a menos que a intervenção cirúrgica seja necessária para evitar um perigo para a vida ou a saúde da criança e não puder ser adiada até a concessão da autorização. A autorização será concedida a pedido dos pais se a intervenção planejada corresponder ao melhor interesse da criança. Se os pais apresentarem ao juízo da família um parecer de comissão interdisciplinar favorável à intervenção, nos termos do inciso 4, presume-se que a intervenção prevista corresponde ao melhor interesse da criança."9

O escopo da norma é proteger as crianças, ainda inaptas a emitir um consentimento informado e consciente, contra tratamentos sexuais (externos e/ou internos) irreversíveis, que visem exclusivamente adaptar seu corpo ao padrão binário vigente. 

O bem jurídico protegido é a integridade psicofísica do menor intergênero, portador de variações sexuais biológicas. Isso significa que crianças não portadoras de variações de desenvolvimento sexual continuam a ser operadas e tratadas normalmente, com base no consentimento dos pais e/ou representantes legais. 

Além do direito à integridade psicofísica, a norma tutela ainda os direitos fundamentais à vida e à saúde, bem como os direitos de personalidade, principalmente o direito ao livre desenvolvimento sexual e o direito - fundamental e humano - à autodeterminação de gênero. A criança enquanto indivíduo e seu bem-estar foram, portanto, colocados em primeiro plano pelo legislador. 

Atente-se que a norma não proíbe todo e qualquer tratamento cirúrgico ou hormonal em crianças intergênero. Se o procedimento tiver outras finalidades que não apenas enquadrar o menor na categoria binária de gênero, submetendo-o a um "tratamento cosmético", há que se verificar a urgência da intervenção. 

Se a intervenção cirúrgica e/ou hormonal puder ser adiada até a criança estar em condições de decidir por si própria, com o suporte da família e de especialistas, o procedimento não poderá ser realizado. Nesses casos, os pais não podem mais decidir sobre a necessidade de realização do tratamento, pois a lei prioriza o consentimento do menor. 

Portanto, a partir de agora somente em situações emergenciais podem ser feitas intervenções nos caracteres sexuais exteriores ou interiores da criança sem seu consentimento. 

Nesse caso, a decisão cabe aos pais (§ 1631e, inc. 2 BGB), mas é necessário obter autorização do juiz da vara da família, nos termos do § 1631e, inc. 3 BGB. Essa autorização só é dispensada em caso de risco grave à saúde ou à vida do menor que não possa esperar pelo pronunciamento judicial. 

Estima-se que cerca de 160 mil crianças nasçam na Alemanha com ambiguidade de gênero. Mas faltam estatísticas seguras acerca de quantas crianças são submetidas a cirurgias genitais, muitas das quais tem cunho nitidamente mutilador. 

Interessante notar que o § 1.631e BGB não condiciona o consentimento do menor ao atingimento de maioridade civil, mas da capacidade de consentimento (Einwilligunsfähigkeit). Assim, a criança precisa estar em condições de compreender sua situação, o tipo de tratamento, significado, extensão, os riscos e as consequências a longo prazo do procedimento à qual será submetida e orientar sua vontade nessa direção.

É indispensável, portanto, que a criança tenha alcançado um desenvolvimento físico e mental que lhe permita compreender a variação de gênero e sua identidade, bem como o modo de vida ao lado de uma compreensão de gênero binária.

Isso significa que é impossível determinar in abstracto o momento (ou a idade) a partir do qual a criança estará em condições de emitir um consentimento livre e informado. Isso só é possível no caso concreto, a partir de uma análise interdisciplinar da criança, sendo muito improvável que isso ocorra antes dos dez anos de idade10.

A proteção das pessoas intergênero no mundo

Com a nova lei, a Alemanha se posiciona no cenário internacional como um dos países que vem reconhecendo o direito à autodeterminação da identidade de gênero a pessoas intergênero, movimento iniciado com a defesa das pessoas transexuais.

O país parece ter sido o primeiro na Europa a realizar um registro positivo dos intergêneros ao permitir a indicação de uma terceira categoria de gênero: intergênero ou diverso, após a mencionada decisão do Tribunal Constitucional reconhecendo a existência de uma terceira categoria de gênero, ao lado do masculino e feminino.

No plano internacional, Malta foi o primeiro país a promulgar, em 2013, uma declaração requerendo o fim das práticas de mutilação e "normalização" das pessoas intergêneros por meio de operações genitais ou tratamentos hormonais, postulando a despatologização do intersexualismo.

Em 2015, o país promulgou lei garantindo a integridade corporal das pessoas intergênero e reconhecendo sua autonomia e poder de autodeterminação. Trata-se do Gender Identity, Gender Expression and Sex Characteristics Act, que, dentre outras medidas, criminaliza a realização de intervenções médicas em pessoas intergênero sem seu consentimento expresso e permite a retificação do registro civil por via administrativa11.

No mesmo sentido é a lei regional espanhola (Ley 2/2016), que proíbe o custeamento pelo sistema público de saúde de operações normalizadoras do sexo em crianças recém-nascidas, salvo em caso de risco à vida e à saúde. Em Portugal, a Lei 38/2018 tem por objeto tutelar o direito à autodeterminação da identidade e expressão de gênero e de proteção das características sexuais de cada pessoa (art. 1º).

No que aqui interessa, o art. 4º do referido diploma afirma que todas as pessoas têm direito a manter suas características primárias e secundárias, prescrevendo o art. 5º que, salvo comprovado risco à saúde, os tratamentos e intervenções cirúrgicas, farmacológicas ou de qualquer outra natureza, que impliquem modificações corporais e/ou das características sexuais do menor intergênero, só devem ser realizados no momento em que se manifeste sua identidade de gênero, vale dizer, a percepção da pessoa acerca de sua própria identidade, o que lhe torna apta a emitir um consentimento livre e informado.

Regras semelhantes encontram-se ainda na Grécia, Islândia e Argentina, onde, desde 2012, transfere-se à pessoa intergênero a decisão acerca da realização de procedimentos e tratamentos de adaptação do sexo. Lá, porém, o legislador fixou idade mínima para o menor opinar pela realização ou não das intervenções médicas12.

Nada obstante, o problema está longe de ter uma solução satisfatória na Europa e em outros países, como o Brasil, onde os intergêneros continuam a ser submetidos a tratamento médico-cirúrgico nos primeiros meses ou anos de vida por decisão exclusiva dos genitores e/ou representantes legais13. 

A situação do intergênero no Brasil

Aqui, falta norma legal regulando a existência do terceiro gênero e os direitos fundamentais e humanos - sobretudo: direito à autodeterminação da identidade de gênero e à preservação das características sexuais - das pessoas intergênero. Nem mesmo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que exerce com entusiasmo papel legiferante, tem resolução a respeito. Dessa forma, uma primeira conclusão se impõe: as pessoas intergênero, especialmente as crianças, permanecem invisíveis ao direito.

Por seu turno, a Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul publicou o Provimento 016, de 7/6/2019, modificando as regras de registro de nascituros com Anomalia de Diferenciação Sexual (ADS). Segundo o Provimento, quando o sexo da criança for indefinido no momento do nascimento, o registrador deverá lançar no registro de nascimento o sexo como ignorado, de acordo com a constatação feita pelo médico na Declaração de Nascido Vivo.

Assim que definido o sexo, mediante devida comprovação por laudo médico, os pais ou responsáveis legais poderão retificar, sem custos, o registro do menor diretamente no cartório, independentemente de autorização judicial. A resolução não trata, por certo, do problema aqui abordado: a realização de tratamentos cirúrgicos e/ou hormonais em crianças, baseado exclusivamente no consentimento dos pais e/ou representantes legais.

Embora a medida instituída pelo Tribunal gaúcho possa ser saudada como inovadora devido ao ineditismo, ela nasce em descompasso com seu tempo, a começar pela visão, subjacente à norma, de intersexualismo como doença ou anomalia, quando atualmente a ciência mostra que o intergênero exprime apenas um conjunto de características biológicas diferentes das presentes na maioria das pessoas.

A própria referência à sigla ADS - Anomalia de Diferenciação Sexual (Disorder of Sex Development) - traz em si a falsa noção de patologia, ao passo que usa-se atualmente a expressão "Diferences of Sex Development" (DSD) para designar as variações no desenvolvimento sexual das pessoas portadoras de gênero distinto do masculino/feminino14.

O problema é que a ideia de "anomalia" patologiza as pessoas intergênero e seus corpos, contribuindo para justificar a prática - atualmente combatida - de tratamentos médicos invasivos e "normalizadores", que pretendem adaptar o corpo intersexual sadio a um dos padrões binários de gênero.

Ademais, na medida em que o Provimento 016/2019 exige laudo médico atestando o sexo da criança como condição para a retificação do registro de nascimento, está a exigir - ainda que implicitamente - que a criança, nascida com sexo indefinido, seja submetida a dolorosas e traumáticas cirurgias de correção dos órgãos genitais e/ou a terapias hormonais para "normalizar" suas genitálias.

Com isso, a Corte legitima flagrante violação a direitos humanos fundamentais das pessoas intergênero: à integridade psicofísica, à vida e à saúde, à autodeterminação da identidade de gênero, preservação de suas características sexuais, além do direito à vida privada, à constituição de família, ao exercício de direitos reprodutivos e a uma vida sem discriminação e sem tratamento desumano e/ou degradante.

Todos esses direitos restam violados, em maior ou menor medida, quando crianças clinicamente sadias são submetidas, sem seu consentimento, a intervenções cirúrgicas e/ou hormonais irreversíveis, que deixam graves sequelas físicas e psicológicas.

Por fim, a possibilidade de deixar em branco o campo referente ao sexo ou de indicar como "ignorado" é regra que já existia na Alemanha e Áustria do século 19. Essa opção confere uma identificação negativa à pessoa, que fica com o sexo indefinido em seus registros. Atualmente, porém, luta-se por uma identificação positiva, que pressupõe o reconhecimento de um gênero diverso e intermediário: o intergênero.

Melhor teria sido, data venia, reconhecer que existem pessoas que biologicamente não se enquadram no sistema de gênero binário. Nessa seara, vale o lema: o que não é doença, não precisa de cura.

Assim, bem mais inovadora foi a decisão da 1ª. Vara de Família do Rio de Janeiro, que reconheceu, em 21/8/2020, a existência de pessoas não-binárias, pertencentes a um "gênero neutro" e permitiu averbação no registro do nascimento para alterar o nome e o sexo do autor, que passou a constar como "não-especificado". O magistrado fundamentou a decisão no princípio da dignidade humana e nos direitos da personalidade, dentre os quais o direito ao nome, que deve espelhar a realidade do "agênero".

Apesar de algumas imprecisões terminológicas, a decisão representa importante passo para o reconhecimento das pessoas intergênero, as quais não são despidas de gênero, "a-gênero", mas apenas possuem um gênero diverso do masculino e feminino.

Trata-se de tema sensível, distinto da transexualidade, que ainda não mereceu a atenção devida da doutrina civilista e, menos ainda, do Estado. As pessoas intergênero e, principalmente, as crianças, continuam invisíveis para a sociedade e o direito. Crianças saudáveis continuam a ser submetidas, sem seu próprio consentimento, a cirurgias normalizadoras simplesmente com o intuito de adaptar seu corpo ao padrão binário de gênero. É chegada a hora de dar-lhes voz.

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1 Menschenrechte und intergeschlechtlichte Menschen. Organisation Intersex International Europe e.V. (org.). Tradução de Dan Christian Ghattlas, 2016, p. 10

2 Considerando G da Proposta de Resolução do Parlamento Europeu B8-0101, de 8/2/2019.

Menschenrechte und intergeschlechtlichte Menschen, p. 11.

Menschenrechte und intergeschlechtlichte Menschen, p. 10.

5 Confira-se o Projeto de Lei do Parlamento alemão: Deutscher Bundestag Drucksache 19/24686 (doravante: BT-Drucks. 19/24686), 25/11/2020, p. 11.

6 BT-Drucks. 19/24686, p. 12.

7 BT-Drucks. 19/24686, p. 12.

8 Sobre a decisão, permita-se remeter a: NUNES FRITZ, Karina. Jurisprudência comentada dos tribunais alemães. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 19 ss.

9 § 1631e Behandlung von Kindern mit Varianten der Geschlechtsentwicklung

(1) Die Personensorge umfasst nicht das Recht, in eine Behandlung eines nicht einwilligungsfähigen Kindes mit einer Variante der Geschlechtsentwicklung einzuwilligen oder selbst diese Behandlung durchzuführen, die, ohne dass ein weiterer Grund für die Behandlung hinzutritt, allein in der Absicht erfolgt, das körperliche Erscheinungsbild des Kindes an das des männlichen oder des weiblichen Geschlechts anzugleichen.

(2) In operative Eingriffe an den inneren oder äußeren Geschlechtsmerkmalen des nicht einwilligungsfähigen Kindes mit einer Variante der Geschlechtsentwicklung, die eine Angleichung des körperlichen Erscheinungsbilds des Kindes an das des männlichen oder des weiblichen Geschlechts zur Folge haben könnten und für die nicht bereits nach Absatz 1 die Einwilligungsbefugnis fehlt, können die Eltern nur einwilligen, wenn der Eingriff nicht bis zu einer selbstbestimmten Entscheidung des Kindes aufgeschoben werden kann. § 1909 ist nicht anzuwenden. 

(3) Die Einwilligung nach Absatz 2 Satz 1 bedarf der Genehmigung des Familiengerichts, es sei denn, der operative Eingriff ist zur Abwehr einer Gefahr für das Leben oder für die Gesundheit des Kindes erforderlich und kann nicht bis zur Erteilung der Genehmigung aufgeschoben werden. Die Genehmigung ist auf Antrag der Eltern zu erteilen, wenn der geplante Eingriff dem Wohl des Kindes am besten entspricht. Legen die Eltern dem Familiengericht eine den Eingriff befürwortende Stellungnahme einer interdisziplinären Kommission nach Absatz 4 vor, wird vermutet, dass der geplante Eingriff dem Wohl des Kindes am besten entspricht. 

10 BT-Drucks. 19/24686, p. 25.

11 Menschenrechte und intergeschlechtlichte Menschen, p. 15.

12 BT-Drucks. 19/24686, p. 18.

13 Segundo estudo realizado, em 2015, pela Agência da União Europeia para Direitos Fundamentais (European Union Agency for Fundamental Rights), ainda são praticados em toda a Europa muitos tratamentos de adequação sexual sem o consentimento da pessoa intergênero. Confira-se: European Union Agency for Fundamental Rights. FRA Focus Paper. The Fundamental Rights Situation of Untersex People. Viena, 2015, p. 1. No mesmo sentido: Menschenrechte und intergeschlechtlichte Menschen, p. 7.

14 Confira-se novamente o estudo financiado pela União Europeia: Menschenrechte und intergeschlechtlichte Menschen, p. 21.