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Entrevista: Prof. Dr. Erasmo Valladão

terça-feira, 26 de outubro de 2021

Atualizado às 07:36

A coluna German Report dessa semana brinda os leitores com uma entrevista exclusiva com um dos mais consagrados comercialistas brasileiros da atualidade: Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França, professor associado de Direito Comercial da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP)1.

Erasmo Valladão graduou-se em Direito pela USP em 1973 e, em 1984, partiu para um Summer Program na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. Retornando ao Brasil, entrou para o curso de mestrado em Direito Comercial sob a orientação de ninguém menos que Waldírio Bulgarelli, apresentando, em 1992, a dissertação: Ensaio sobre o interesse da companhia e sua tutela nas deliberações assembleares.

Em 1998, ele defendeu tese de doutorado, perante a mesma Faculdade e sob orientação do mesmo mestre, com o tema: Da invalidade das deliberações da assembleia das companhias brasileiras. A livre-docência veio em 2012.

Desde 2000 é professor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, onde começou como assistente do renomado Prof. Luiz Gastão Paes de Barros Leães em 1996, tendo alçado, décadas depois, a Chefia do Departamento de Direito Comercial em sua alma mater (2016-2019).

Sua área de atuação centra-se basicamente no direito societário e mercado de capitais, analisados sempre sob uma ótica comparada. Poliglota, Erasmo Valladão é um exímio comparatista e o grande responsável pela difusão entre nós das ideias do brilhante societarista alemão, Herbert Wiedemann, recentemente falecido, com quem mantinha laços de amizade e estreita correspondência há muitos anos.

Dentre os textos lapidares que ele traduziu do amigo alemão, merecem destaque: "O pequeno acionista é acionista?" (Ist der Kleinaktionär kein Aktionär?), juntamente com Bruno Di Dotto; "Interpretação jurídica e musical - um ensaio", (Juristische und musikalische Interpretation - ein Essay), com Thiago Saddi Tannous e o excerto do livro de Wiedemann, no qual o autor aborda os fundamentos do direito societário, publicado originalmente na RDM 143/66.

Aliás, a admiração pelo direito comercial e societário alemão fez com que nosso genial societarista, aos 55 anos, com a humildade que só os grandes têm, resolvesse estudar a língua de Goethe. Sem sombra de dúvida, um grande feito! Só quem já passou por isso, sabe o esforço hercúleo que é estudar uma língua complexa e difícil como o alemão na fase adulta, em meio a todos os compromissos inadiáveis da vida cotidiana.

Foram anos de dedicação, mas o sacrifício valeu à pena, porque, como diz Erasmo Valladão, o estudo dos juristas alemães descortinou novas perspectivas acerca do direito societário e da teoria geral do direito.

Hoje, seus alunos têm o privilégio de, desde cedo, confrontar-se com institutos, teorias e regras do direito societário alemão que, ainda quando não aplicáveis ao direito brasileiro, ampliam demasiadamente a forma de pensar o próprio direito, aguçando o senso crítico do estudioso.

O prof. Erasmo Valladão tem uma vastíssima publicação, desde artigos, pareceres, coletâneas e livros, dentre os quais merecem destaques três clássicos: Conflito de interesses nas assembleias de S. A, A sociedade em comum e Temas de direitos societário, falimentar e teoria da empresa, todas publicados pela Editora Malheiros. Ao rol acresça-se ainda a obra Direito processual societário, em coautoria  com Marcelo Vieira von Adamek, publicação da JusPodium.

Comercialista renomado, compõe o Conselho Editorial da Revista de Direito Mercantil (RDM), da Editora Malheiros e coordena a prestigiosa Revista de Direito das Sociedades e dos Valores Mobiliários, publicada pela Editora Almedina. É advogado, parecerista e árbitro, atuando sobretudo nas áreas empresariais e civil.

Nessa entrevista, ele faz importantes considerações sobre questões centrais do direito comercial e societário contemporâneo, falando sobre a autonomia do direito comercial, a relevância dos deveres de informação e lealdade no direito societário, bem como sobre o ensino atual da disciplina nos cursos de graduação.

E, claro, fala sobre a importância do direito comparado, sobretudo da comercialista alemã capitaneada por Herbert Wiedemann e Karsten Schmidt, que tem exponentes como  Thomas Raiser, Rudiger Veil, Götz Hueck e as brilhantes professoras Christine Windbichler, da Universidade Humboldt (Berlim) e Barbara Grunewald, da Universidade de Colônia, que desde 2018 integra a comissão de modernização do direito das sociedades. Em suma: reflexões de um grande Mestre sobre temas contemporâneos desafiadores. Confira a entrevista:

O senhor é um dos mais renomados comercialistas na atualidade e um profundo conhecedor do direito comercial e societário alemão. Como surgiu sua ligação com o direito germânico?

EV: Eu já tinha ligação através de traduções italianas e espanholas e me dei conta, até por indicação do meu querido amigo e colega Prof. José Alexandre Tavares Guerreiro, de que precisava aprender alemão para conhecer, no original, a profundidade das obras jurídicas alemãs (e também as de alguns romancistas e poetas). Havia tentado aprender alemão por 2 vezes (aos 16 e aos 47 anos). Aos 55 anos, recomecei, sob promessa de cometer suicídio em caso de insucesso... Eu tinha uma reserva de US$20,000.00 e pensei cá comigo: quer saber, eu vou investir em mim! Principiei em janeiro de 2004, na Berlitz School (o Goethe Institut, onde eu queria fazer o curso intensivo, só tinha aulas no período noturno, em que eu leciono na Faculdade). E recomecei pra valer! Tinha aulas de 1 hora e 30 minutos 4 vezes por semana, além dos estudos e resolução de questões em casa, tudo somando de 12 a 18 horas semanais. Torrei todo o meu dinheiro no curso, que era caríssimo. Foi o melhor investimento que fiz na vida! No final do curso, tive aulas com uma excelente mestra, Beatriz Rose, que se tornou minha professora particular. O alemão é a língua-mãe dela, embora seja brasileira. O estudo dos juristas alemães me fez dar um salto no aprendizado do direito societário e da teoria geral do direito. Durante o curso, me vali dos excelentes livros da Profª Ina Warncke Ashton (Curso de Alemão para Juristas, vols. 1 e 2). Em julho, com o livro da Profª Ina, comecei a ler a Constituição Alemã (Grundgesetz) e, em setembro, já estava lendo, embora com muita dificuldade no princípio, o Gesellschaftsrecht do Karsten Schmidt. Como o vocabulário jurídico é muito mais restrito, é bem mais fácil ler o livro de um jurista do que um romance ou um poema. Quem me falou para ler imprescindivelmente o Gesellschatsrecht I (de 1980), do Herbert Wiedemann, foi o Prof. Calixto Salomão Filho. Encomendei-o na Amazon e estava esgotadíssimo. Só consegui obter um exemplar usado depois de um ano. Foi uma revelação para mim a originalidade e a profundidade do pensamento dele.

O Brasil seguiu a linha do direito italiano e unificou as obrigações civis e comerciais, provocando dissenso na doutrina comercialista nacional. Na Europa há dúvidas acerca da autonomia científica do direito comercial. Como o Senhor vê a questão da autonomia do direito comercial?

EV: Para mim é muito claro que o Direito Comercial é um direito especial, que se formou ao lado do direito comum da Idade Média (que abrangia principalmente o direito romano e o direito canônico). O grande mestre Tullio Ascarelli dizia que o Direito Comercial é uma categoria histórica (ou seja, não é uma categoria racional), que se desenvolveu à semelhança do direito pretoriano em relação ao  jus civile e à equity em relação ao common law. Mas, no tocante ao direito das obrigações, há muito pouca diferença - que, aliás, está assinalada no Código Civil de 2002 com relação a alguns contratos (v., por ex., o art. 658). É evidente que o Direito Comercial é muito mais dinâmico que o Civil, comportando critérios diferentes de interpretação, o que pode muito bem ser feito pelos magistrados (no direito alemão há uma palavra para isto: Rechtsfortbildung, que significa desenvolvimento jurisprudencial do direito). Como quer que seja, mesmo na Itália, em que houve a unificação do Direito Civil e do Direito Comercial, a autonomia do Direito Comercial é plenamente reconhecida, tanto que este último é estudado nas Faculdades de Direito separadamente do Direito Civil.

A boa-fé objetiva do Código Civil equivale à Treu und Glauben do § 242 do BGB, que é considerada um princípio estrutural do direito alemão, principalmente do direito privado. Segundo os alemães, a boa-fé exprime, em suma, dois comandos básicos: agir com lealdade e ter consideração pelos interesses legítimos da contraparte. O dever de lealdade (Treuepflicht) é um dos deveres principais da boa-fé. Qual a importância do Treuepflicht no direito societário e quais seus principais desdobramentos dogmáticos?

EV: O eminente Prof. Marcelo Vieira von Adamek, que realizou um profundo estudo sobre o desenvolvimento do Treuepflicht no direito societário alemão em sua tese de doutorado (publicada sob o título "Abuso de minoria em Direito Societário", SP: Malheiros Editores, 2014), afirmou que o dever de lealdade é um verdadeiro sobreprincípio do direito societário. É um conceito funcional que, dada a elasticidade, permite sua aplicação aos diversos tipos societários, diferenciadamente. Não se pode utiliza-lo da mesma maneira em uma macro-sociedade anônima (embora ele exista: confira-se o art. 115 da LSA) e em uma sociedade limitada personalista. Ademais, o Treuepflicht ocorre tanto nas relações entre o sócio e a sociedade como nas relações dos sócios entre si.

Qual a relevância do dever de informação no direito societário contemporâneo, em especial no âmbito das companhias abertas?

EV: O dever de informação é absolutamente fundamental em qualquer tipo societário, pois é um dever instrumental, que permite ao sócio exercer seus direitos. Nas companhias abertas, a sua importância é exponencialmente acentuada, sobretudo no direito contemporâneo. Imagine-se o caso de uma companhia petrolífera que descobre um novo poço de petróleo, circunstância que influirá decisivamente no preço das suas ações (que, obviamente, aumentará de valor). Na ausência de publicação de um fato relevante, vários acionistas negociam as suas ações tendo por base a cotação anterior. Posteriormente, com atraso injustificável, é publicado o fato relevante. Não é preciso salientar que os acionistas que venderam suas ações antes da publicação da informação sofrerão graves prejuízos.

Qual a influência do direito societário alemão e, sobretudo, do pensamento de Herbert Wiedemann no direito societário brasileiro?

EV: Eu sou até suspeito para falar sobre isso... Os meus cursos de pós-graduação, na parte expositiva, baseiam-se fundamentalmente na obra desse grande mestre, recentemente falecido, que tem uma visão dialética, não linear, do fenômeno societário. O seu enfoque, a partir dos princípios estruturais do direito societário (abrangentes do ordenamento societário propriamente dito, do ordenamento patrimonial, e do ordenamento da empresa, e suas interrelações) e dos princípios valorativos do direito societário (abrangentes dos direitos individuais, dos direitos da minoria, dos direitos dos investidores, dos interesses dos credores e dos interesses dos trabalhadores) é, fora de qualquer dúvida, uma das maiores contribuições ao estudo do direito societário de todos os tempos. E as lições do mestre eu venho ensinando aos meus alunos desde o ano de 2006! Não sei se há algum outro autor que tenha sido tão influenciado por ele como eu. No tocante aos outros mestres alemães, na segunda metade do século XX, destacam-se Karsten Schmidt, Friederich Kübler (cuja 5ª edição do seu Gesellschaftsrecht foi otimamente traduzida para o espanhol, tendo sido objeto de meus seminários de pós-graduação no segundo semestre de 2020), Thomas Raiser e Rudiger Veil, Barbara Grunevald, Götz Hueck e Christine Windbichler, entre tantos outros.

Muitos autores brasileiros recorrem predominantemente à literatura jurídica norte-americana como fonte de comparação para questões dogmáticas. Em que medida esse recurso lhe parece adequado?

EV: A literatura jurídica norte-americana (e sobretudo a jurisprudência norte-americana) sobre o direito societário é riquíssima, tendo como expoente, a meu ver, o Robert Charles Clark, cuja principal obra, Corporate Law (1986), até hoje é considerada a obra fundamental sobre a matéria. O grande problema é que, para fins dogmáticos, as obras norte-americanas não são de tanta valia porque o direito anglo-saxão pertence a outra família jurídica. O sistema de precedentes não encontra exata analogia ou semelhança na família do civil law, ou seja, do direito continental, da qual o nosso direito descende.

Qual é a relevância, em sua visão, da tradução de textos alemães para o português? Quais suas principais traduções?

EV: Veja bem. É relevantíssima. Antes de aprender alemão, eu tinha conhecimento do direito germânico através dos livros dos juristas portugueses... Todos os grandes societaristas de lá vão aprender na Alemanha. Mas, infelizmente, não há traduções para o português dos livros de direito societário alemão. Para o italiano e para o espanhol há (no tocante a este último, ao menos uma... e de um livro excelente, aliás, que já mencionei). As minhas principais traduções são as de um trecho do livro supracitado do Wiedemann, que denominei de "Excerto do Direito Societário" (RDM 143/66), do texto "O pequeno acionista é acionista?", que realizei em conjunto com meu ex-orientando Bruno Di Dotto (RDSVM - Edição Comerativa dos 40 anos da LSA - pp. 183 e ss) e "Interpretação Jurídica e Musical - Um ensaio" (RDSVM 12/55), que realizei em conjunto com meu ex-orientando Thiago Saddi Tannous.

Como o Senhor avalia o ensino do direito societário nos cursos de graduação no Brasil? Seria útil, em sua visão, uma aproximação aos métodos atualmente adotados na Alemanha, em especial, a resolução de casos práticos?

EV: Absolutamente insatisfatório. Após a reforma da grade de ensino, aliás, o estudo das sociedades anônimas deixou de ser obrigatório. É facultativo! Quando eu comecei a dar aula nas Arcadas, no ano 2000, o ensino das sociedades comerciais compunha a "parte geral" do Direito Comercial, lecionado no 1º semestre do 2º ano. O estudo das sociedades anônimas era realizado no 2º semestre, em cinco aulas obrigatórias, quatro expositivas e uma de seminário! Os professores de sociedades anônimas agora fomos praticamente enxotados do curso... Já quanto ao método, tenho uma visão particular. Meu método se dirige à interpretação da lei, para que o aluno pense com a sua própria cabeça. Pouco interessa o que grandes juristas dizem se a argumentação deles não for convincente. Direito, como disse certa vez o Prof. Comparato, é uma ciência da argumentação. Mas é óbvio que não dispenso, pelo menos em uma das provas bimestrais, a resolução de casos práticos e, nos seminários, a análise de julgados.

O Senhor, assim como Wiedemann, também é músico e traduziu, recentemente, texto sobre a interpretação jurídica e a interpretação musical. Em sua opinião, quais são os paralelos possíveis entre o direito e a música?

EV: Como nos ensina o excelente texto do Wiedemann, traduzido por mim e pelo Thiago Saddi Tannous, o principal paralelo é a questão da interpretação. Como é possível que uma obra de Beethoven, de Chopin, de Schumann, que tem indicações precisas sobre o andamento (presto, prestíssimo, adagio), sobre a dinâmica (piano, pianíssimo, molto fortissimo etc.) possa ser interpretada de formas muito diversas ao longo dos tempos? E por quê muitas vezes interpretamos as leis de ontem sob a ótica de hoje? As obras humanas se desprendem dos seus autores, adquirem vida própria...

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1 Agradeço ao dileto amigo, brilhante germanista, Thiago Saddi Tannous, pelas contribuições para a entrevista.