Entrevista: Prof. Dr. Jan Dirk Harke
quarta-feira, 25 de agosto de 2021
Atualizado às 08:42
No ultimo dia 16/8/2021, a Associação dos Advogados de São Paulo (AASP) realizou um webinar sobre alteração das circunstâncias e quebra da base do negócio jurídico, que tive o prazer de mediar, ao lado de Viviane Girardi, presidente da Associação, e Clarisse Frechiani Lara, Conselheira da AASP.
O evento contou com a presença de Jan-Dirk Harke, professor e desembargador do Tribunal de Justiça (Oberlandesgericht) de Jena, na Alemanha, que explicou, em erudito português, o desenvolvimento da teoria da base do negócio, desde sua origem até sua aplicação atual em decorrência da pandemia de Covid-19.
Em seguida, os professores Nelson Nery Júnior (PUCSP) e José Roberto de Castro Neves (PUCRJ) falaram, com diversos enfoques, sobre o problema da revisão judicial dos contratos no direito brasileiro. Esse foi, sem dúvida, o melhor evento sobre revisão contratual desde o início da crise pandêmica.
Nelson Nery Júnior demonstrou, com cirúrgica precisão, que a teoria alemã da base do negócio é perfeitamente aplicável aos contratos civis e comerciais regidos pelo Código Civil, pois construída e desenvolvida à partir do princípio da boa-fé objetiva, positivado no art. 422 CC2002.
Nery foi um dos pioneiros em sustentar a recepção da teoria logo após a entrada em vigor da nova codificação, na esteira do pensamento de Clóvis do Couto e Silva e de seu mais brilhante discípulo, Ruy Rosado de Aguiar Júnior, que já admitiam a doutrina da base sob a égide do Código Beviláqua.
O renomado professor da PUC/SP veio confirmar o que tenho defendido desde o início da pandemia: a teoria da base do negócio, antes de ser um corpo estranho, é uma solução inerente ao sistema jurídico brasileiro, deduzida, sem dificuldades, à partir de uma interpretação histórica, teleológica e sistemática dos arts. 317, 478, 113 e 422 CC2002.
Castro Neves alertou para os excessos cometidos pelo juiz ao revisar os contratos sem critérios objetivos claros e de forma ilimitada. A crítica é de todo pertinente, tendo em vista que a revisão contratual sempre foi considerada medida excepcional no direito comparado, inclusive no alemão, pois a regra é, obviamente, o cumprimento dos pactos tal como acordados.
Da mesma forma, a revisão sempre esteve limitada, segundo a melhor doutrina, ao estritamente necessário para restaurar o equilíbrio contratual, sendo defeso ao julgador reescrever o contrato no lugar das partes, o que representaria o aniquilamento da autonomia privada, principio estrutural do direito privado, especialmente do direito obrigacional e dos contratos.
Os excessos cometidos pelo Judiciário - influenciados em parte por doutrina pouco técnica - não autorizam, porém, qualquer tentativa de impedir a intervenção estabilizadora do juiz nos pactos, como aparentemente pretendeu a Lei da Liberdade Econômica (lei 13.874/2019) nos arts. 421, Parágrafo único e 421-A, esquecendo-se de que a excepcionalidade da revisão contratual e a intervenção mínima são ideias há séculos sedimentadas no direito comparado. Nesse sentido, a lei nada disse além do óbvio.
Nascido em 1969 em Düsseldorf, Harke estudou direito na Universidade de Freiburg entre 1991 e 1994, onde trabalhou como assistente no Instituto de História do Direito (Institut für Rechtsgeschichte), experiência que marcaria definitivamente sua trajetória, transformando-o em um dos mais respeitados historiadores do direito civil e obrigacional da atualidade.
Harke escreveu seu doutorado em 1998 sobre o método do famoso jurista romano Celso. Após dois anos atuando em grande escritório internacional em Berlim, ele faz a livre-docência (Habilitation) debruçando-se sobre um dos temas mais espinhosos do direito civil: o erro no direito contratual romano do período clássico. A Habilitation foi concluída em 2003 sob supervisão do renomado Prof. Ulrich Manthe, da Universidade de Passau.
No mesmo ano, foi chamado para assumir uma vaga na Julius-Maximilians-Universität de Würzburg, onde lecionou Direito Civil, Romano e Direito Comparado. Após recusar convite para lecionar na Universidade de Götting, alma mater de Rudolf von Jhering, Harke assumiu, em 2016, uma cátedra na Universidade Friedrich-Schiller em Jena.
Paralelamente às atividades acadêmicas, ele atua como magistrado desde 2009, quando compôs como desembargador o Tribunal de Justiça de Nürnberg e, desde 2016, o Oberlandesgericht de Jena.
Harke possui farta e densa publicação, merecendo destaque as obras: Direito Romano (Römisches Recht), da editora Beck e os dois manuais de Direito das Obrigações, parte geral e especial - Allgemeines Schuldrecht e Besonderes Schuldrecht, ambos publicados pela editora Springer.
Além disso, comenta parte do Livro das Obrigações do BGB no famoso comentário Soergel BGB, da editora Kohlhammer e o denso comentário histórico-crítico ao Código Civil alemão (Historisch-kritischer Kommentar zum BGB), organizado por Reinhard Zimmermann, Joachim Rückert e Mathias Schmoeckel, e publicado pela Mohr Siebeck. Nessa entrevista, ele fala, com toda propriedade, sobre pandemia, boa-fé e revisão contratual. Confira:
Desde 2020, o mundo está mergulhado em uma surpreendente pandemia que não tem dado trégua, levando países, como a Alemanha, a entrar em rígido lockdown no final do ano passado. A pandemia de Covid-19 pode ser classificada como um evento extraordinário, que impacta vários contratos em curso?
Harke: Não há a menor dúvida disso. Nenhuma das partes, que celebrou um contrato antes dos primeiros sinais da epidemia, contou com sua ocorrência e a levou em consideração no cálculo da prestação e contraprestação. Exceto, naturalmente, aqueles contratos, como os de seguro, que são concluídos tendo em vista justamente esse tipo de casos de catástrofes.
Quais instrumentos jurídicos o BGB coloca à disposição das partes para corrigir ou equilibrar esses efeitos negativos?
Harke: A pandemia é claramente um caso de quebra da base do negócio. O direito de perturbação da prestação - vale dizer: os institutos da impossibilidade, mora, inadimplemento - é inadequado para solucionar esses casos, pois se trata normalmente de uma crise que afeta o devedor de uma obrigação pecuniária. Esse não pode invocar a impossibilidade, nem vício na contraprestação, porque ele suporta o risco do emprego (utilização) da prestação.
Em dezembro do ano passado, o Parlamento aprovou a introdução do § 7 ao Art. 240 da Lei de Introdução ao Código Civil alemão (Einführungsgesetz zum Bürgerlichen Gesetzbuche - EGBGB). A norma presume ter havido a ocorrência de profundas alterações na base dos contratos de locação comercial e arrendamento em decorrência das medidas estatais de combate à pandemia, que impediram ou restringiram consideravelmente o uso dos imóveis pelos inquilinos. O que essa presunção significa para a aplicação do § 313 BGB, base legal do instituto da quebra da base do negócio?
Harke: Considerando a intenção do legislador de facilitar o recurso à quebra da base do negócio em favor dos inquilinos de imóveis comerciais, a regra é certamente um fracasso, pois trata de um pressuposto do direito à readaptação contratual sobre o qual, até onde sei, não paira qualquer controvérsia e provoca a equivocada conclusão de que só caberia revisão do contrato em decorrência direta das medidas estatais.
De acordo com § 313 BGB, o contratante pode requerer a adaptação do contrato quando: (1) ocorrer uma profunda alteração na base do negócio; (2) as partes, de acordo com suas expectativas, não teriam celebrado o contrato ou só o teriam feito com outro conteúdo e (3) a manutenção do contrato com seu conteúdo inicial for irrazoável, i.e., insuportável para um dos contratantes.
A presunção do Art. 240 § 7 EGBGB limita-se apenas a medidas governamentais que impeçam ou restrinjam o funcionamento dos espaços locados ou arrendados, com a ressalva de que se pode fazer a contraprova quanto à quebra da base do negócio. Ou seja, trata-se apenas de um dos três pressupostos para a revisão contratual e, ainda por cima, de um requisito inquestionável, pois ninguém contou com a pandemia e suas consequências antes da virada do ano de 2019 para 2020.
Muito mais importante em uma disputa judicial são os dois outros elementos do suporte fático e são esses que têm causado até agora o insucesso dos pleitos de revisão contratual movidos por locatários. Isso, porque tem-se colocado elevadas exigências para a configuração da irrazoabilidade (insuportabilidade) da continuidade do vínculo contratual, exigindo-se, por vezes, a demonstração de risco à existência do devedor.
Mas esse risco não se deixa configurar, com frequência, com o fechamento dos estabelecimentos por dois meses, como ocorreu no primeiro lockdown na primavera de 2020, principalmente tendo em vista os auxílios estatais concedidos às empresas. No segundo lockdown, no inverno de 2020, a situação pode ser diferente. Mas a questão só se deixa responder no caso concreto, razão pela qual uma regra legal concreta, ainda que na forma de uma presunção, seria aqui impensável.
Se, por um lado, o Art. 240 § 7 EGBGB ajuda muito pouco o locatário afetado diretamente pelo lockdown, por outro há o risco de que o dispositivo se transforme em obstáculo para o contratante indiretamente afetado. Embora a norma permita a conclusão de que a proibição de denúncia da locação, prevista em seu § 2, não é exaustiva e que seria possível concomitantemente recorrer à quebra da base do negócio, a referência a "medidas estatais", que fazem com que os imóveis alugados "não sejam utilizados ou só o sejam com consideráveis restrições", pode sugerir a conclusão a contrario de que não seria possível uma adaptação do contrato por quebra da base do negócio sem uma restrição do uso da coisa locada. Com isso, os inquilinos de imóveis não destinados ao público em geral e, por isso, não atingidos pelo lockdown, ficariam impedidos de rever seus contratos, embora um fabricante (fornecedor de produtos), que não faz mais negócios por causa do fechamento da loja do comerciante (revendedor), pode estar em situação tão ruim quanto esse.
Quando pode-se pleitear a revisão do contrato, segundo o direito alemão?
Harke: O direito de adaptar o contrato resulta, principalmente, das regras sobre perturbação da base do negócio (§ 313 BGB), mas ainda das determinações contratuais que obrigam as partes a modificar o contrato.
O que se entende no direito alemão pela expressão "agravamento da prestacao" (Leistungserschwernis)? Dificuldade de desempenho
Harke: O termo não é claramente definido, mas pode designar circunstâncias que interferem menos intensamente na possibilidade de execução do que um obstáculo à prestação que conduz à impossibilidade (§ 275 BGB), a qual, por sua vez, provoca para o credor a perda do direito à prestação. A expressão pode ser ainda entendida como um conceito geral para todos os tipos de circunstâncias que dificultam a realização da prestação devida para o devedor.
No caso de uma obrigação pecuniária, como a assumida pelo locatário ou arrendatário, não se pode, a meu ver, falar em agravamento da prestação, pois a prestação pecuniária, em si, não se torna mais difícil através de um impacto sobre a operação do devedor e sua mera insolvabilidade não é considerada uma perturbação da prestação face ao princípio da execução patrimonial integral ("o dinheiro deve ser tido").
Em outras palavras: não é um caso de perturbação da prestação, porque a prestação pecuniária do inquilino é sempre possível e a prestação material (coisa) do locador não contém vício algum. O problema aqui é realmente de perturbação na base do negócio. Dessa forma, quando a insolvabilidade se reconduzir a circunstâncias extraordinárias que tornem o contrato sem sentido para o devedor, ela configura um caso para a aplicação do instituto da base do negócio.
O que deve o juiz observar ao realizar a revisão do contrato?
Harke: Ele precisa verificar exatamente os impactos da pandemia sobre a operação do devedor a fim de constatar a irrazoabilidade, i.e., a extrema dificuldade da manutenção inalterada do vínculo contratual. Isso significa, sobretudo para o devedor, que ele deve demonstrar detalhadamente o desenvolvimento do negócio, incluindo eventuais medidas de auxílio recebidas do Poder Público durante a pandemia.
Por que é tão importante reequilibrar os contratos desequilibrados?
Harke: Porque o princípio da força obrigatória dos contratos não pode ser um fim em si mesmo. Os contratos e os riscos a eles associados, são sempre celebrados com base na expectativa de um certo desenvolvimento. Se isso toma um rumo dramaticamente diferente, não se pode presumir que as partes teriam assumido os riscos envolvidos, a menos que o negócio tenha caráter especulativo. Por essa razão, ordenamentos jurídicos como o francês, no qual o princípio da força obrigatória dos contratos é extremamente importante ("Les conventions... tiennent lieu de loi..."), também recepcionaram o instituto da alteração das circunstâncias (change of circumstance).
Em caso de perturbações na base do negócio, as partes devem primeiro buscar uma solução consensual e, apenas quando essa tentativa fracassa, o Judiciário precisa adaptar o contrato. Há no direito alemão um dever de renegociação deduzido à partir do princípio da boa-fé objetiva (Treu und Glauben), com base no § 241 I c/c § 242 BGB?
Harke: O § 313 BGB não obriga as partes a renegociar o contrato. A parte afetada pela alteração das circunstâncias tem, de certa forma, uma pretensão direta à readaptação do contrato. Eventuais negociações só podem ter importância para a questão de saber se uma ação judicial pode ser movida imediatamente, sem suportar o risco dos ônus das custas processuais.
As partes podem, evidentemente, assumir no contrato o dever de renegociar, mas esse, em si, não é executável, conduzindo sua violação apenas a uma pretensão ressarcitória, nos termos do § 280 BGB ou a um direito de resolução (§ 324 BGB) ou ao equiparável direito de resilição. O legitimado pode, portanto, desfazer o contrato ou pleitear o ressarcimento dos danos sofridos devido à indisponibilidade da contraparte de renegociar o contrato. Para isso, ele precisa - da mesma forma que no caso de revisão por quebra da base do contrato - especificar, em termos concretos ou, ao menos, dentro de certos limites ou quadros, o que a outra parte deveria ter concordado em fazer no decurso das negociações.
Na Alemanha, há uma distinção entre a impossibilidade fática do § 275 II BGB e a chamada impossibilidade econômica, que é solucionada com recurso ao § 313 BGB. No que consiste exatamente a impossibilidade econômica?
Harke: O § 275, inc. 2 do BGB se aplica quando há uma desproporção entre o interesse do credor na prestação e a despesa (esforço) que o devedor suportará para realizar a prestação. Na minha opinião, isto também pode e deve ser admitido nos casos de desproporção face à contraprestação, porque o interesse do credor aumenta normalmente à medida que aumenta o esforço do devedor. No entanto, esse mecanismo falha nos casos de obrigação de pagamento em dinheiro.
O conceito de impossibilidade econômica remonta a uma época em que o instituto da base do negócio ainda não tinha sido suficientemente desenvolvido e a jurisprudência tinha que dominar o fenômeno com recurso às regras da impossibilidade do BGB de 1900. A meu ver, não se deve mais utilizar esse conceito hoje.
A quebra da base do negócio foi desenvolvida principalmente pela jurisprudência alemã com base na boa-fé objetiva do § 242 BGB/1900, estando atualmente positivada no § 313 BGB/2002. Em que medida a boa-fé objetiva (Treu und Glauben) contribuiu para o desenvolvimento do direito das obrigações alemão?
Harke: A norma sobre a boa-fé do § 242 BGB tem sido, desde a entrada em vigor do BGB, a alavanca para ancorar na lei importantes inovações. Ela desempenha, assim, o mesmo papel que o mandamento da bona fides no direito romano. Além da teoria da quebra da base do negócio, o dispositivo abriu o caminho para a responsabilidade por violação positiva do contrato e por culpa in contrahendo (responsabilidade pré-contratual). Com esses institutos, doutrina e jurisprudência compensaram as deficiências do direito alemão da responsabilidade civil aquiliana antes de ambas as figuras serem positivadas no Código em regras especiais (respectivamente: § 241, inc. 2 e § 311, inc. 2 e 3 BGB/2002) juntamente com a doutrina da base do negócio (§ 313 BGB/2002).
No Brasil, vozes críticas que tentam vincular a boa-fé com ideias do nacional-socialismo. Isso está correto, sob uma perspectiva histórica?
Harke: O princípio da boa-fé é, como dito, apenas a versão alemã do mandamento da bona fides e, portanto, não está de forma alguma ligada geneticamente ao nacional-socialismo. É claro que as cláusulas gerais abrem sempre um campo de aplicação que pode estar sujeito a abusos e que, no caso da boa-fé, foi, de fato, abusado ao tempo do nacional-socialismo. Isso, contudo, não desacredita o princípio, que foi a base de numerosos desenvolvimentos jurídicos antes e depois do nazismo, que nada têm em comum com ele.
No Brasil, a lei emergencial (lei 14.010/2020), que caducou já em outubro do ano passado, não previa qualquer proteção aos inquilinos contra despejo decorrente da falta de pagamento dos alugueis, condicionada pela pandemia. A isso acresce-se o fato de que as pessoas e as empresas não receberam ajuda financeira adequada do Estado, de modo que muitos estão tendo extrema dificuldade de honrar o aluguel em decorrência do fechamento dos estabelecimentos comerciais e das restrições de circulação, ou seja, em razão dos efeitos econômicos da crise pandêmica. Se essa conjuntura existisse na Alemanha, o juiz poderia, em tese, revisar os contratos de locação?
Harke: Eu não tenho a menor dúvida que sim. Quando os tribunais alemães negam um pedido de revisão contratual, isso se deve ao fato de que o negócio do locatário não foi tão gravemente prejudicado devido às medidas de auxílio recebidas do Estado, de modo que se pode dele razoavelmente esperar a manutenção e o cumprimento do contrato. Quando tais medidas não existem, pode-se questionar se manutenção do contrato tornou-se realmente insuportável devido à curta duração das restrições, como no primeiro lockdown na Alemanha, que durou cerca de dois ou três meses.
De resto, os tribunais alemães certamente chegariam a uma readaptação dos contratos. E as primeiras decisões também indicam como isso teria que ser feito: o risco, realizado com a pandemia, deve ser suportado pelas partes em partes iguais, pelo que o aluguel seria reduzido em 50% (se não for já automaticamente reduzido devido à sua vinculação ao volume de venda do locatário).