Claus-Wilhelm Canaris: O "sistematizador"
quarta-feira, 7 de abril de 2021
Atualizado às 08:14
A coluna German Report dessa semana, imbuída em profundo pesar, presta uma singela homenagem a uma das últimas lendas vivas do Direito Privado do século 20: Prof. em. Dr. h.c. mult. Claus-Wilhelm Canaris, professor Emérito da Faculdade de Direito de Munique, recentemente falecido.
Canaris nasceu na cidade de Liegnitz em 1/7/1937, à época pertencente à província prussiana de Schlesien, filho de Constantin Canaris e Ilse Krenzer. Seu primeiro ano escolar foi cursado na cidade de Königsberg. Em seguida, fez o ensino fundamental em Miesbach e o ginásio em Düsseldorf, onde concluiu o Abitur, certificado de conclusão do ensino médio necessário para ingressar em qualquer universidade alemã.
Entre 1957 e 1961, Canaris estudou Direito, Filosofia e Germanística em Paris, Genf e München, onde se tornou assistente do lendário Karl Larenz, seu eterno mestre, que ficara fascinado pelo pensamento lógico e sistemático do jovem assistente, então com 26 anos, durante um seminário de Metodologia Jurídica.
Começava aí uma das mais belas relações de admiração e lealdade entre discípulo e mestre. Sob orientação de Larenz, Canaris doutorou-se em 1963 com a tese: "Identificação de lacunas na lei" (Die Feststellung von Lücken im Gesetz), obra de referência até hoje.
Na época, ele havia se tornado o interlocutor favorito de Larenz, que lhe dedicou a obra Methodenlehre der Rechtswissenschaft, publicada originalmente em 1960, ao lado de Joachim Hruschka, Detlef Leenen e Jürgen Prölss.
Após a morte de Larenz, Canaris passou a atualizar o livro, publicado com o nome de ambos desde 1995. A versão traduzida para o português foi a última revista por Larenz: "Metodologia da ciência do direito", publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian.
Em 1967, Canaris concluiu sua paradigmática monografia, fruto da tese de livre-docência: Die Vertrauenshaftung im deutschen Privatrecht ("A responsabilidade pela confiança no direito privado alemão"), publicada em 1971 pela editora Beck Verlag.
Concomitantemente à preparação da livre-docência, Canaris escreve o famoso estudo Systemdenken und Systembegriff in der Jurisprudenz, publicado em 1969 pela editora Duncker und Humblot e traduzida para o português por António Menezes Cordeiro com o título: "Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito", novamente editada pela Fundação Calouste Gulbenkian.
Na dedicatória, lê-se: "Dedicado, em gratidão, ao meu muito e venerado mestre", revelando a profunda ligação entre Canaris e Larenz, que permaneceu inabalável por toda a vida e lhe custou duros e injustos ataques de ferrenhos críticos do envolvimento de Larenz com o nacional-socialismo.
Dessa forma, com apenas 30 anos, Canaris já havia produzido três grandes obras de referência para o direito ocidental. Para ficar apenas no campo do direito privado, basta dizer que Vertrauenshaftung é o estudo mais completo e sistematizado já escrito até agora sobre a tutela da confiança e da conduta ética no comércio jurídico.
A obra revela a genialidade e o pensamento coeso, detalhista e sistematizado do autor, pois, partindo de um emaranhado confuso e desconexo de precedentes judiciais, princípios e topoi, Canaris consegue identificar a estrutura marcante do instituto e ordenar logicamente um mosaico de casos sob a rubrica da responsabilidade pela confiança, encaixada sem rupturas no sistema jurídico alemão.
A tese revoluciona ainda ao demonstrar, com base em robustos fundamentos, que entre os dois ramos tradicionais da responsabilidade civil (contratual e extracontratual) existe uma zona cinzenta, uma "terceira via" autônoma: a responsabilidade pela confiança1.
Em Vertrauenshaftung, Canaris desenvolveu um sistema harmônico sobre as diversas formas de proteção da confiança no comércio jurídico, permitindo que o princípio jurídico da proteção das expectativas legítimas fosse aplicado no processo de interpretação e aperfeiçoamento do direito.
Segundo os estudiosos, a "descoberta jurídica" de Canaris foi tão inovadora que o coloca no mesmo patamar que Rudolf von Jhering, pai da culpa in contrahendo2, figura ainda obscura no direito brasileiro, onde é entendida como responsabilidade por rompimento abusivo das negociações, em indevido reducionismo à partir de estreita leitura do direito italiano3.
Para se ter uma ideia da ressonância da criação de Canaris, basta atentar que Manuel Carneiro da Frada, Professor Titular da Universidade do Porto (Portugal), desenvolveu sua obra "Teoria da confiança e responsabilidade civil" à partir dos estudos do grande mestre alemão.
Em 1968, Canaris foi convidado para assumir uma cátedra na Universidade de Regensburg (onde Reinhard Zimmermann, Diretor do Instituto Max-Planck de Hamburg, lecionaria décadas depois), mas declinou o convite, assumindo vaga na Universidade de Graz (Áustria).
No ano seguinte, ele retornaria a sua terra natal para lecionar na Universidade de Hamburg, mas o destino logo o levaria de volta a Munique, cidade que ele amava e onde permaneceu por toda a vida.
Com efeito, em 1972, Canaris foi chamado a suceder Larenz na Universidade de Munique, onde pôde dedicar-se intensamente à pesquisa e ao ensino do direito. Lá, lecionou Filosofia, Teoria e Metodologia do Direito, bem como Direito Civil, Comercial e do Trabalho.
Canaris passou a vida pensando e refletindo sobre o sobre o direito. Seu modo de pensar e trabalhar exigiam dele muita disciplina, dedicação, sagacidade e criatividade, dizem seus assistentes mais próximos, hoje renomados professores. Sua dedicação era tão intensa que, absorvido em suas reflexões, ele não hesitava em telefonar tarde da noite para algum doutorando ou assistente a fim de discutir uma dúvida que lhe havia sido apresentada4.
Nos momentos de pausa criativa, Canaris dedicava-se apaixonadamente à filosofia, literatura e história da arte, revelando sólida formação humanista, sem descuidar dos pequenos prazeres da vida como a jardinagem e filmes de faroeste. Sua esposa, Rena Canaris, partilhava com ele a paixão pelo teatro, por música clássica e ópera, transformando a residência do casal em um rico e pulsante ambiente intelectual que fascinava os frequentadores5.
Devido à genialidade e originalidade de sua produção acadêmica, Canaris foi agraciado com o título de Professor honoris causa em renomadas universidades como Londres, Veneza, Lisboa, Madri e Atenas. No Brasil, ele recebeu a distinção em 2012 na PUC do Rio Grande do Sul.
Em 2000, foi nomeado pelo Ministério da Justiça para integrar a Comissão de Reforma do Código Civil Alemão (Bürgerliches Gesetzbuch), que modernizou o antigo direito das obrigações do BGB ao positivar diversos institutos jurídicos desenvolvidos em doutrina e jurisprudência ao longo do século 20, muitos dos quais sob influência direta e marcante de Canaris.
Com seu pensamento dogmático, racional e sistemático, Canaris influenciou intensamente a construção do moderno direito obrigacional alemão, que, devido a suas soluções lógicas e equilibradas, exerce forte influência na Europa, Ásia e América do Sul.
Canaris recebeu em vida todas as honrarias que um acadêmico poderia aspirar, inclusive a Cruz do Mérito da República Federal da Alemanha pelos serviços prestados à ciência do país. Nada obstante, levou uma vida pacata, dedicada ao direito e à família.
Adoentado há alguns anos, faleceu em 5/3/2021, mas, a pedido da família, a notícia só foi divulgada após o funeral, que na Alemanha pode durar algumas semanas devido aos trâmites burocráticos, não ocorrendo imediatamente como no Brasil.
Divulguei, com profunda tristeza, a notícia do falecimento do grande mestre dia 1/4/2021 em minhas redes sociais, antes da nota de pesar emitida pela Universidade de Munique e publicada no jornal alemão Süddeutsche-Zeitung em 3/4/2021.
Canaris deixa um vazio abissal no direito ocidental. Ele foi um grande sistematizador e criador do direito. Com sólida dogmática, aguçada racionalidade e criatividade, ele marcou a ciência do direito. Sua densa e extensa obra ficará para a posteridade, como um legado jurídico-cultural da humanidade.
No Brasil, um de seus livros mais conhecidos - ao lado do "Pensamento Sistemático" - é, sem dúvida, "Direitos fundamentais e direito privado", vertido para nosso idioma por Ingo Wolfgang Sarlet e Paulo Mota Pinto, e publicado pela editora Almedina. A monografia é fruto de espetacular palestra proferida no ano de 1985 em congresso jurídico na Alemanha.
Na época, Canaris explicou, de forma precursora, o modo de eficácia dos direitos fundamentais sobre o direito privado, demonstrando que essa eficácia se processa de forma diferente de acordo com os destinatários dos direitos fundamentais, apontando, dessa forma, para uma distinção até então ignorada pelas correntes da eficácia direta e da eficácia indireta6.
A produção de Canaris não se esgota aí. São dezenas de livros e mais de duzentos artigos publicados. Por óbvio, o que impressiona não é a quantidade, mas sim a qualidade teórico-dogmática de seus escritos, que o colocaram no olimpo jurídico e ajudaram a consolidar o direito alemão como uma ciências jurídicas mais importantes e influentes do mundo.
Ótima lição para nossa agência de fomento científico (Capes), que exige dos pesquisadores uma produção fordista frenética de trabalhos científico quando, na verdade, nenhum ganho substancial traz à ciência do direito a publicação de milhares de artigos inúteis. O direito requer tempo para pesquisa, estudo e reflexão. Só assim se produz uma ciência jurídica de qualidade, apta a ser ouvida e discutida no plano internacional, desafio ainda não superado pela doutrina civilista nacional.
Dentre os manuais que Canaris deixou para a posteridade, merecem destaque - sem qualquer ordem de importância: "Direito comercial" (Handelsrecht) e "Direito dos contratos bancários" (Bankvertragsrecht), cuja terceira edição, datada de 1995, já contava com mais de 800 páginas. Nelas, o leitor encontra uma exposição estruturada e sistematizada dessa importante e complexa área jurídica.
Ainda no campo comercial, Canaris comentou durante décadas o famoso Staub HGB, o primeiro comentário ao Código Comercial alemão (Handelsgesetzbuch) concebido por Herman Staub, conhecido por aqui como o criador do instituto da violação positiva do contrato, esboçada no texto Die positiven Vertragsverletzungen und ihre Rechtsfolgen, de 1902 e republicada no ensaio: Die positive Vertragsverletzung, em 1904.
Staub - que injustamente é taxado no Brasil, em tom de descaso, como um "simples" advogado de Berlim, a fim de desqualificar sua teoria pelo fato dele nunca ter ocupado uma cátedra, o que se se explica exclusivamente a sua origem judaica7 - escreveu os comentários ao HGB em 1893, antes, portanto, da entrada em vigor do BGB em 19008.
A obra, composta por quinze volumes atualizados pelos mais renomados comercialistas alemães, é ainda hoje o mais respeitado comentário ao Código Comercial alemão, tendo Canaris assumido o volume 8 abordando, com costumeira profundidade, os § 343-362 do HGB, posteriormente com o auxílio de seu discípulo Ingo Koller, Professor Emérito da Universidade de Regensburg.
No campo do direito civil, Canaris dedicou-se apaixonadamente ao direito obrigacional, publicando centenas de artigos sobre os mais diversos temas: autonomia privada, proteção da confiança no comércio jurídico, dogmática dos deveres de conduta da boa-fé, culpa in contrahendo, responsabilidade de terceiro, violação positiva do crédito, contrato com eficácia de proteção para terceiros, tutela externa do crédito, controle do conteúdo do contrato, enriquecimento sem causa, direito da perturbação da prestação, impossibilidade, mora, inadimplemento, cumprimento defeituoso, responsabilidade do representante, responsabilidade dos peritos, regime de vícios na compra e venda, além de uma infinidade de outros temas fundamentais.
Sua obra de referência nessa área é, sem dúvida, o "Manual de direito das obrigações" (Lehrbuch des Schuldrechts), tomo 2, volume 2, escrito inicialmente por Larenz e praticamente reescrito por Canaris, embora com o nome de ambos, em clara demonstração de admiração, respeito e lealdade ao venerado mestre.
As ideias de Canaris penetraram no direito brasileiro, seja diretamente através de seus discípulos, seja indiretamente por meio da doutrina portuguesa e italiana. Seu contributo para a dogmática dos direitos fundamentais tem sido recepcionado por aqui, como atesta Ingo Wolfgang Sarlet, inclusive no âmbito da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal9.
No direito privado, merece destaque o reconhecimento da responsabilidade pela confiança como um terceiro gênero autônomo, situado em uma zona cinzenta entre a responsabilidade contratual e a responsabilidade extracontratual.
Nesse sentido, confira-se o pioneiro precedente constante do REsp. 1.309.972/SP, julgado em 27/4/2017 pela 4ª. Turma do Superior Tribunal de Justiça sob a relatoria do e. Min. Luís Felipe Salomão10.
O caso diz respeito ao rompimento imotivado das negociações, que é uma das hipóteses de responsabilidade pré-contratual, mais conhecida no direito alemão pela terminologia que lhe deu se "descobridor", Jhering: culpa in contrahendo, a expressar a responsabilidade pela violação culposa de um dever de conduta durante o contrair, isto é, durante a fase negocial preparatória do contrato.
Trato do tema em diversos artigos, mostrando, com base na doutrina de Canaris, por quê a violação dos deveres ético-jurídicos de conduta, deduzidos do princípio da boa-fé objetiva do art. 422 CC2002, não se deixa enquadrar, a rigor, nem como responsabilidade aquiliana (vez que não se viola o dever de não lesar, de eficácia erga omnes), nem como responsabilidade contratual (vez que não se viola um dever de prestação).
Foi a constatação de que existe, a rigor, um terceiro gênero de responsabilidade que levou a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça a afastar a teoria monista da responsabilidade civil, que - sob a falaciosa superação da dicotomia milenar entre responsabilidade aquiliana e responsabilidade contratual - pretendia unificar o prazo prescricional de ambas em três anos, nos termos do art. 206 § 3 V CC2002.
No julgado, a teoria de Canaris foi decisiva para mostrar a superação da teoria unitária e, consequentemente, afastar a ideia de prazo prescricional uno, fixando a Corte em dez anos a prescrição das pretensões contratuais (art. 205 CC2002), salvo prazo especial previsto em lei11. Trata-se do EREsp. 1.281.594/SP, julgado pela Corte Especial em 15/5/2019 com relatoria para acórdão do e. Min. Felix Fischer.
Sem dúvida, a obra de Canaris ainda precisa ser estudada entre nós para que o direito brasileiro possa se beneficiar da riqueza de suas ideias, modernizando-se sob sólidas bases. Ele marcou para sempre a ciência do direito, entrando para a história como um dos maiores juristas do século 20. Isso é motivo suficiente para que sua obra seja estudada e difundida por aqui. A ele toda honra e gratidão.
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1 SINGER, Reinhard. Claus-Wilhelm Canaris - der "Entdecker". In: Deutschsprachige Zivilrechtslehrer des 20. Jahrhunderts in Berichten ihrer Schüler. Stefan Grundmann, Karl Riesenhuber (org.), Bd. 2, de Gryuter, 2010, p. 3 (manuscrito cedido pelo autor).
2 GRIGOLEIT, Hans Peter; SINGER, Reinhard et. al. Vorwort. In: Festschrift für Claus-Wilhelm Canaris zum 70. Geburtstag. Andreas Heldrich et al (org.), v. 1, München: Beck, 2007, p. VIII.
3 Sobre o tema, permita-se remeter a NUNES FRITZ, Karina. A culpa in contrahendo no direito alemão. Revista de Direito Civil Contemporâneo 15 (2018), p. 161-207.
4 GRIGOLEIT, Hans Peter; SINGER, Reinhard et. al., op. cit., p. IX.
5 GRIGOLEIT, Hans Peter; SINGER, Reinhard et. al., op. cit., p. X.
6 SINGER, Reinhard. Op. cit., p. 2.
7 HENNE, Thomas. Diskriminierungen gegen 'jüdische Juristen` und jüdische Abwehrreaktion im Kaiserrecht - von Samuel zu Hermann Staub. In: Thomas Henne, Rainer Schröder, Jan Thiessen (org.), Anwalt - Kommentator - 'Entdecker`: Festschrift für Hermann Staub zum 150, Berlin: de Gruyter, 2006, p. 11, 14, 18 ss., onde o autor afirma que esse foi um problema específico para uma geração de juristas do qual foi vítima ainda o famoso publicista Georg Jellinek, também judeu e contemporâneo de Staub. Henne conclui que Staub nasceu muito tarde e faleceu muito cedo para ter uma carreira universitária, pois a situação só começou a melhorar na Alemanha a partir de 1918. Sintomático é o registro de que apenas nesse ano foi admitido o segundo jurista judeu como juiz do Tribunal Imperial, Georg Schaps, à época magistrado em Hamburg. Op. cit., p. 22.
8 SCHMIDT, Karsten. Staub in "Stab's Kommentar"- Exemplarisches zum Handelsrechtsbild eines Klassikers. In: Thomas Henne, Rainer Schröder, Jan Thiessen (org.), op. cit., p. 110.
9 Direitos fundamentais e direito privado: notas sobre a influência da dogmática alemã dos direitos fundamentais, em especial a contribuição de Claus-Wilhelm Canaris, no direito brasileiro. Revista de Direito Civil Contemporâneo 12 (2017), p. 63-88.
10 Permita-se remeter a NUNES FRITZ, Karina. A culpa in contrahendo como terceira via de responsabilidade civil. In: Da estrutura à função da responsabilidade civil. Alexandre Guerra et al. (coord.), Foco, 2021 (prelo).
11 NUNES FRITZ, Karina. Comentários ao REsp. 1.280.825/RJ: prazo prescricional de dez anos para a responsabilidade contratual? Revista IBERC 2 (2019), p. 1-24 e Revista Direito da Responsabilidade, ano 1, 2019, p. 731-760, ambos disponíveis online para download.