Decisão sobre a vida e a morte (ainda) cabe aos médicos, diz Corte Constitucional alemã
terça-feira, 18 de agosto de 2020
Atualizado às 07:17
A pandemia de Covid-19 tem sido um desafio não apenas para o sistema de saúde pública, mas também para os médicos, que se veem obrigados a lidar com o desconhecido em uma situação de calamidade e de fazer escolhas difíceis, seja na definição do tratamento, dos medicamentos adequados e - o mais grave - na hora de escolher quem salvar diante do problema da escassez de leitos em unidades de terapia intensiva e respiradores.
É bem verdade que essa situação dramática de escolher qual paciente tratar é uma realidade para milhares de médicos brasileiros que trabalham em hospitais públicos e, diariamente, diante das precárias condições de trabalho e da escassez de recursos, precisam fazer escolhas trágicas de quem salvar e quem deixar morrer.
Mas o problema se agravou com a pandemia. E não só aqui, mas também na Europa, principalmente na Itália e Espanha no início da crise pandêmica.
A conta é muito simples: quando os recursos de saúde são insuficientes, os médicos precisam decidir quem salvar. Mas, quais os critérios utilizados para decidir quem será tratado e quem não? E quem define tais critérios: os próprios médicos, os conselhos profissionais ou o legislador?
Essas questões foram levadas a juízo recentemente na Alemanha, quando um grupo de nove pacientes entraram com queixa constitucional com pedido de liminar perante o Tribunal Constitucional alemão.
Os autores da reclamação constitucional fazem parte do chamado grupo de risco, isto é, pessoas que devido a condições especiais (ex: idade avançada, deficiência, etc.) ou doenças preexistentes podem ter graves complicações quando contaminadas pelo coronavírus.
Eles alegaram estar sendo discriminados e preteridos pelos médicos em razão de suas deficiências ou doenças preexistentes, as quais reduzem as chances de êxito do tratamento médico da Covid-19.
Segundo a queixa constitucional, como as chances de sucesso no tratamento são estatisticamente menores, devido às condições pessoais e/ou doenças preexistentes, os pacientes do grupo de risco podem ser submetidos a tratamento ruim ou até preteridos de tratamentos curativos na medida em que os médicos são obrigados, pelas contingências, a fazer uma triagem e selecionar os pacientes que terão prioridade na hora do tratamento.
E, nas situações de triagem, nas quais os médicos fazem a divisão dos recursos de saúde disponíveis entre os pacientes, um dos critérios utilizados na prática - sustentam os autores - é exatamente a expectativa de êxito do tratamento no paciente, isto é, a chance de cura, de forma que os doentes com bons prognósticos acabam sendo beneficiados.
O problema é que a realização da triagem viola a dignidade humana, o direito fundamental à vida e saúde das pessoas pertencentes ao grupo de risco e o mandamento da igualdade, afirmaram os autores da queixa constitucional.
Faltam na Alemanha prescrições legais que indiquem critérios ou orientem como os médicos devem agir nessas situações de escolhas trágicas, alegam. Existem apenas recomendações do Conselho de Ética Médica e de diversas associações de classe, mas há intensa discussão sobre como o profissional deve agir no caso concreto.
E foi justamente contra a omissão do legislador que se dirigiu a queixa constitucional, requerendo os autores que o Tribunal Constitucional ordenasse o legislador a disciplinar a questão e, enquanto isso não ocorresse, que o governo criasse um grêmio temporário a fim de regular a triagem na situação de pandemia.
O Tribunal, porém, denegou o pedido liminar. Trata-se do processo BVerfG 1 BvR 1541/2020, julgado em 16/7/2020 pelo 1º. Senado da Corte.
O Bundesverfassungsgericht justificou a decisão denegatória ao argumento de que a queixa constitucional colocava ao Judiciário uma complexa questão que não poderia ser decidida em processo de cognição sumária, qual seja: (a) se e quando a Constituição exige que o Estado legisle para cumprir um dever de proteção face a pessoas com deficiência e (b) qual a extensão do campo de avaliação, valoração e conformação do Legislador na regulação de decisões médicas acerca de priorizações em tratamentos.
Ou seja, o processo cautelar seria inapropriado para discutir a complexa questão acerca do dever (ou não) do Legislador de estabelecer critérios para a triagem de pacientes. A Corte, aliás, acentuou inexistir consenso sobre se - e, em caso positivo, sob quais condições - o Legislador pode ser constrangido a agir em processo de urgência.
Além disso, para o Tribunal de Karlsruhe, a negativa da tutela cautelar não causaria dano irreversível aos autores, mesmo que no processo principal se chegasse à conclusão de que a atuação legislativa seria exigível constitucionalmente, porque na Alemanha há, pelo menos até agora, capacidade suficiente de tratamento médico-hospitalar, de forma que os médicos não estão sendo obrigados a tomar a dramática decisão sobre quem vai viver ou morrer.
A Corte Constitucional também rejeitou o pedido de que, enquanto o Parlamento não atuasse, o governo formasse um grêmio para regular temporariamente a divisão dos recursos médicos disponíveis, pois tal grêmio não teria legitimidade maior que o Conselho de Ética Médica, criado por lei, para resolver a questão e nem competência para ditar regras obrigatórias, com a eficácia vinculante de uma decisão legislativa.
Aqui, o 1º. Senado do BVerfG também ponderou os efeitos de uma eventual decisão favorável ao pleito dos autores dizendo que, se posteriormente essa atuação legislativa não se mostrasse constitucionalmente obrigatória, a decisão do Tribunal teria ferido gravemente a separação dos poderes e gerado dispêndio organizatório e financeiro desnecessário.
Dessa forma, por enquanto, cabe aos médicos no caso concreto tomar a difícil decisão sobre quem tratar diante da escassez de recursos de saúde. Mas essa decisão não é, por óbvio, arbitrária e nem pode ser feita com discriminações, devendo, ao contrário, pautar-se em princípios éticos, segundo orientação do Conselho de Ética Médica.
Até porque toda vida humana tem, em princípio, o mesmo valor e o Tribunal Constitucional alemão já afirmou, em outro julgado, que a vida e a dignidade humanas gozam da mesma proteção constitucional independentemente da duração da existência física do indivíduo1.
Dessa forma, as pessoas do grupo de risco não podem ser discriminadas na hora de receber o tratamento médico adequado. Essa é uma discussão que ainda vai ser aprofundada, até porque o Tribunal Constitucional só afastou a análise do problema em sede de procedimento liminar.
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