Banco responde por falha de informação em operações de investimento de capital
terça-feira, 17 de março de 2020
Atualizado às 09:22
Em tempos de quebra das bolsas por causa do impacto do corona vírus na economia, vale à pena recordar caso paradigmático, julgado em 2011, no qual o Bundesgerichtshof fixou as linhas gerais para a responsabilidade de bancos por falhas informacionais em investimentos de capital, firmando o entendimento de que mesmo investidores com experiência no mercado financeiro precisam ser adequadamente esclarecidos em relação a produtos financeiros altamente complexos.
O caso
A autora da ação indenizatória era uma empresa de médio porte que havia celebrado dois contratos CMS Spread Ladder Swap com outro banco, em 2002, com prazo de vigência de dez anos.
Em 2005, o banco réu aconselhou a autora, com base em estudos e analises apresentadas em PowerPoint, a reduzir os altos juros que a onerava nos citados contratos swap.
Para tanto, sugeriu a celebração de um novo contrato de swap, durante reunião com o administrador e o procurador da empresa, que era economista de formação.
A empresa, então, celebrou contrato com o réu, em fevereiro de 2005, segundo o qual as partes se obrigavam a pagar juros reciprocamente, dentro de um determinado período, com taxas variadas, fixadas no contrato.
Durante a reunião, onde as vantagens do novo contrato swap foram apresentadas pelo réu, foi informado à autora que seu risco de perda era "teoricamente ilimitado", mas omitiu-se a informação de que o contrato possuía desde o início um valor de mercado negativo em torno de 4% do valor de referência.
Fato é que o negócio não se desenvolveu como prognosticado pelo banco e a empresa investidora amargou altos prejuízos já em 2005. Em 2006, a autora impugnou o contrato e arguiu sua nulidade por dolo, desfazendo o negócio em 2007 com um débito em torno de 566.850,00 euros.
O processo
A autora moveu, então, em 2008, ação indenizatória contra o banco requerendo o pagamento de 541.074,00? mais juros, bem como todos os prejuízos amargados em decorrência do contrato de swap, a serem apurados judicialmente.
Ela alegou a nulidade do contrato por ofensa aos bons costumes (§ 138 BGB) e ao mandamento de transparência do § 307, inc. 1, frase 2 do BGB.
Além disso, ela fora maliciosamente enganada pelo banco, o que configura o dolo do § 123 BGB, além de ter sido aconselhada indevidamente, vez que o réu não a esclareceu suficientemente acerca dos riscos do swap e, por fim, ainda sugeriu um negócio que não correspondia à sua disponibilidade de assunção de riscos e nem ao fim visado com o investimento.
A ação foi julgada improcedente em primeira e segunda instância.
A decisão do OLG Frankfurt a.M.
Segundo o Oberlangesgericht Frankfurt am Main, o contrato de swap celebrado entre as partes não ofende os bons costumes, pois a autonomia privada permite a celebração de negócios arriscados.
Além disso, um negocio arriscado não viola os bons costumes pelo simples fato do contratante só conseguir auferir ganho do negócio sob circunstâncias favoráveis.
Segundo o Tribunal de Justica de Frankfurt a.M., o negócio também não era intransparente, nos termos do § 307 I 2 BGB, pois a fórmula de cálculo dos pagamentos a serem feitos pela empresa ao banco estava claramente formulada e tinha sido negociada individualmente entre as partes. Ou seja: não se tratava de fórmula padrão em contrato de adesão.
O OLG ponderou ainda ser improvável que o banco pudesse explicar de modo mais compreensível o modelo complicado de negócio acordado entre as partes.
Isso não teria maiores consequências, segundo a Corte, porque a empresa tinha conhecimento e experiência em investimentos de capital, não sendo carente de proteção como um consumidor.
Isso afastava a responsabilidade do banco por falha na informação, que, no caso, o Tribunal entendeu ter sido adequadamente prestada.
Ademais, na reunião a autora estava representada por seu procurador, que era economista, podendo-se, portanto, esperar que ele tenha compreendido a estrutura do contrato de swap e as fórmulas matemáticas utilizadas. Isso libera o banco réu de investigar e apurar a disposição da autora de assumir altos riscos.
O Tribunal entendeu que a consultoria prestada fora adequada ao objeto, pois, embora o CMS Spread Ladder Swap não se destine estruturalmente a assegurar contratos de crédito, todo investimento de capital, que pode gerar ganhos na hipótese de um desenvolvimento satisfatório, serve, em geral, para reduzir os encargos dos juros suportados pelo contratante.
Por fim, disse o OLG Frankfurt a.M. que o banco não precisava ter informado à empresa investidora de que o contrato possuía um valor negativo de mercado, no momento da conclusão da operação, porque esse valor representa uma compensação na hipótese de encerramento antecipado do contrato, configurando uma compensação ao banco e, portanto, um valor puramente teórico.
A decisão do BGH
O Bundesgerichtshof, contudo, julgou procedente o recurso de Revision interposto pela autora. Trata-se do processo BGH XI ZR 33/10, julgado em 22/3/2011.
De início, o BGH entendeu que, ao final da apresentação do PowerPoint, quando a autora ficou convencida da utilidade de celebrar o contrato swap com o réu, as partes celebraram um contrato de consultoria por meio do qual o banco obrigou-se a prestar consultoria adequada à autora.
O conteúdo e a extensão dos deveres de recomendação e conselho medem-se segundo as circunstâncias do caso individual.
Para isso, o banco deve levar em conta o conhecimento e experiência do investidor, sua disposição de correr riscos, o fim perseguido com o investimento e os riscos gerais do mercado, como a conjuntura e o desenvolvimento do mercado de capital.
No caso em análise, o BGH considerou que o banco não se desincumbiu do ônus de prestar uma consultoria adequada ao cliente investidor e ao objeto do investimento.
a) Dever de investigar o perfil e os objetivos do investidor
Com efeito, o objeto recomendado - contrato CMS Spread Ladder Swap - era um negócio tão arriscado que se poderia chamar de uma loteria ou aposta especulativa (spekulative Wette).
Contudo, não há indícios que indiquem que a autora buscasse esse tipo de investimento, que, de tão complicado, só poderia ser compreendido por quem tivesse conhecimento de matemática financeira.
O banco tem o dever de investigar - antes de realizar suas recomendações e/ou sugestões ao cliente - o nível de conhecimento e experiência do investidor, sua disposição de assumir riscos e o fim perseguido com o investimento, disse a Corte de Karlsruhe.
Trata-se de um dever de investigar e de se informar acerca do cliente, denominado no vernáculo alemão de Erkundigungspflicht.
Esse dever vem previsto expressamente na lei alemã de valores mobiliários (§ 31, inc. 2 WpHG) e o banco só fica dele dispensado quando já conheça o perfil do investidor, seja porque já o assessora há algum tempo, seja em decorrência de suas práticas anteriores.
b) Dever de recomendar produto financeiro adequado
Segundo frisou a Corte infraconstitucional, ainda quando o banco tenha alertado para um risco de perda "teoricamente ilimitado", ele não pode presumir - tendo em vista a alta complexidade estrutural do produto financeiro - que o cliente que celebra esse contrato esteja disposto a assumir riscos tão altos.
Ao contrário: é dever do consultor só recomendar produtos financeiros que atendam aos fins visados pelo investidor.
Por isso, o banco réu deveria ter se certificado de que a empresa autora tinha realmente consciência de que o risco ilimitado de perda não era apenas teórico, mas uma possibilidade real e ruinosa.
c) Experiência e conhecimento do investidor
Contrariamente à opinião do OLG Frankfurt a.M., o BGH afirmou que era irrelevante no caso o fato do representante da empresa ter formação em economia.
A jurisprudência pacífica da Corte afirma que a qualificação profissional do investidor, por si só, é insuficiente para presumir que ele tenha conhecimento e experiência em operações de investimento de capital, salvo se existem concretos indícios para isso. Mas esses indícios não foram demonstrados nas instâncias probatórias, disse o BGH.
As atividades de procurador de uma empresa de médio porte, produtora de produtos de limpeza, não permite concluir que aquele tenha conhecimento dos riscos específicos do contrato de swap, como também nada diz acerca de sua disposição de assumir riscos.
Até porque, os conhecimentos técnicos do investidor deixa intocável o dever do consultor de investigar o fim do investimento e de recomendar um produto àquele adequado.
No caso sob judice, o comportamento do investidor não autorizava o banco a concluir pela disposição de assumir riscos, disse o Tribunal, pois os contratos de swap, celebrados em 2002 com outra instituição financeira, eram estruturalmente mais simples e não envolviam riscos tão elevados quanto o celebrado com o banco réu.
d) Extensão do dever de esclarecimento
Segundo os juízes de Karlsruhe, diante de um produto altamente complexo, o banco é obrigado a garantir que o investidor tenha o mesmo nível de conhecimento que ele próprio, pois só assim o investidor pode tomar a decisão esclarecida - e responsável - de aceitar ou não participar da loteria especulativa.
Para isso, ele deve desnudar todos os elementos da fórmula de cálculo dos percentuais variáveis de juros e seus efeitos concretos sobre os possíveis desenvolvimento do spread.
e) Dever de defesa dos interesses do cliente
Em decorrência do contrato de consultoria, o banco assume ainda o dever de só fazer recomendações no interesse exclusivo do cliente, salientou o BGH.
Isso significa que ele deve evitar - e expor ao cliente - os conflitos de interesses que ponham em risco e/ou prejudiquem os interesses do investidor e o fim último da consultoria.
No caso concreto, a Corte entendeu que havia um grave conflito de interesse entre o réu e a autora, pois, da forma como estava estruturado o contrato swap, o lucro do banco implicava necessariamente a perda do investidor.
E, disse o BGH, enquanto consultor, o banco está obrigado a defender o interesse da empresa investidora e deve atuar visando maximar os lucros dela, não os seus próprios.
Dessa forma, o valor negativo de mercado, estruturado desde o início pelo banco, era expressão do grave conflito de interesses existente entre as partes, sendo apto a pôr em risco os interesses da empresa investidora.
e) Causalidade
Por fim, o BGH aplicou a teoria da presunção do comportamento racional esclarecido para admitir que a empresa investidora, se tivesse sido adequadamente informada e esclarecida da estruturação (para ela desvantajosa) do negócio e do risco certo de perdas altíssimas, jamais teria concluído o contrato naqueles termos.
Segundo a Corte, a presunção de que o lesado teria adotado um comportamento racional, se tivesse sido adequadamente esclarecido dos riscos reais do negócio, vale, em princípio, em todas as situações nas quais resta demonstrada a violação dos deveres de informação, esclarecimento e conselho, principalmente quando há um claro conflito de interesses entre o banco e o cliente investidor, quando, então, resta evidente que a falha informacional foi fator determinante para a decisão de investimento (dano) do cliente lesado.
Segundo a Corte de Karlsruhe, o fato do diretor da empresa ter concordado em fechar o negócio mesmo sem compreender claramente todas as nuances da operação, antes de configurar culpa concorrente (§ 254 I BGB), exprime a relação de confiança existente entre as partes, a qual deve ser protegida.
Com isso, o BGH julgou procedente a Revision interposta pela empresa, condenando o banco ao pagamento do valor pleiteado à título de indenização por falhas na informação em investimentos de capital.
A situação no Brasil
No Brasil, o Código de Defesa do Consumidor consagra o dever de informação como um dos deveres cardinais dos partícipes do mercado de consumo e impõe a responsabilidade objetiva para toda a rede de fornecedores de produtos/serviços, com a inversão do ônus da prova como meio facilitador da defesa das pretensões dos consumidores.
Os deveres informacionais também podem surgir no bojo de relações paritárias com fundamento na cláusula geral do art. 422 do Código Civil, que consagra a função criadora de deveres laterais de conduta da boa-fé objetiva.
Apesar disso, a jurisprudência do STJ tem sido dura com os investidores ao presumir que o investidor - mesmo o investidor-consumidor padrão - conhece os riscos envolvidos em aplicações financeiras1.
No REsp. 1.003.893/RJ, julgado em 2010, consta expressamente da ementa que aqueles que se encorajam a investir em fundos arrojados estão cientes do risco do negócio2.
Mais surpreendente ainda é a premissa estampada no REsp. 799.241/RJ, de 2013, segundo a qual, em princípio, descabe indenização por danos materiais e morais em aplicações de alto risco3.
Esse entendimento contraria a lógica inerente à boa-fé objetiva e esvazia os deveres de informação, esclarecimento e conselho das instituições financeiras, fazendo com que a eficácia prática da Codificação ou do CDC fique totalmente comprometida nessa seara.
Com isso, o STJ impõe ao investidor o pesado ônus da auto-informação em uma seara onde nem mesmo o fornecimento de informação ajuda, pois o investidor, em regra, não tem conhecimento técnico suficiente para compreender a estrutura altamente complexa dos produtos/serviços financeiros, onerando, dessa forma, quem precisa de proteção.
Embora ambos os ordenamentos jurídicos possuam instrumentos semelhantes e adequados à proteção do investidor diante de falhas de informação, esclarecimento e conselho em aplicações financeiras, a tutela da confiança do investidor tem maior efetividade na Alemanha do que no Brasil.
Lá, seja com base em um fictício contrato de consultoria financeira (responsabilidade contratual) ou no contato negocial (responsabilidade pré-contratual), os consultores financeiros - principalmente os bancos - são obrigados a observar uma intensa carga de deveres de consideração.
Esses deveres visam não apenas manter a conduta das partes dentro dos padrões ético-jurídicos exigidos pela boa-fé objetiva, mas principalmente garantir uma tomada de decisão (decisão de investir) consciente e auto-responsável, tutelando a autonomia privada material do investidor.
Essa tutela alcança, em igual medida, qualquer investidor, seja ele consumidor ou não, desde que presente um desnível estrutural informacional.
E isso é feito sem "equiparar" como consumidor aqueles investidores que efetivamente não o são, mantendo-se hígido o conceito de consumidor, bem como sem quaisquer recursos a normas, princípios e valores da Lei Fundamental, como dignidade humana, bem ao sabor do discurso brasileiro contemporâneo.
A proteção da confiança do investidor foi - e permanece - construída à partir do Código Civil Alemão (BGB), no seio da dogmática obrigacional, com base nos deveres de consideração, decorrentes do princípio da boa-fé objetiva do § 242 do BGB, embora hoje presente em diversas leis regulatórias do mercado de capitais.
__________
1 Para um aprofundamento do tema, permita-se remeter a NUNES FRITZ, Karina. A responsabilidade dos bancos por falhas na informação em investimentos de capital: uma análise comparada com o direito alemão. RDCC 8/2016, p. 167-200.
2 STJ, REsp. 1.003.893/RJ, T3, Rel. Min. Massami Uyeda, DJe 8/9/2010.
3 STJ, REsp. 799.241/RJ, T4, Rel. Min. Raul Araújo, DJe 26/2/2013.