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Decisões históricas: o caso da fiança - Parte 2

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Atualizado às 10:33

Dando sequência à análise do caso da fiança, julgado pelo 1o Senado do Tribunal Constitucional Alemão em 19/10/1993 e publicado no repertório BVerfGE 89, 214, hoje analisa-se o processo 1 BvR 1044/89 relacionado à validade de fiança prestada pelo cônjuge do tomador do crédito.

Como já dito aqui, a questão central discutida nesses casos era saber até que ponto os tribunais civis devem realizar um controle do conteúdo dos contratos de fiança, celebrados com instituições financeiras, quando familiares do tomador do crédito, desprovidos de patrimônio, assumem como fiadores a garantia de dívida muito elevada.

Como explicado na coluna anterior sobre o tema, com frequência os bancos exigiam que familiares próximos do tomador de um crédito, como esposas e filhos, figurassem como fiadores nos contratos de empréstimos.

O objetivo não era tanto ampliar a massa patrimonial responsável pelo débito, mas evitar a transferência patrimonial e exercer pressão sobre o devedor a pagar a dívida, sob pena do chamamento dos familiares.

2. O caso da esposa

No processo BVerfG 1 BvR 1044/89, a esposa figurou como fiadora de empréstimo do marido no valor de 30 mil marcos alemães, embora fosse uma dona de casa desempregada e sem patrimônio.

Com a inadimplência do devedor principal, o banco cobrou dela o pagamento da divida, o que era exorbitante para sua realidade familiar, pois ela jamais se livraria do pagamento da fiança, considerando sua realidade financeira.

A instituição financeira ganhou em todas as instâncias.

E o argumento principal era que uma pessoa maior sabe, mesmo sem maiores esclarecimentos, que a fiança é um negócio arriscado e, portanto, o banco poderia partir do princípio de que quem assume a garantia de um débito conhece a extensão de seu ato e sabe avaliar seus riscos com responsabilidade.

3. A decisão do BVerfG

Com a queixa constitucional movida, o Tribunal deu ganho de causa ao banco, mas assentou as linhas gerais que permitiriam a nulidade da fiança assumida por cônjuge ou companheiro.

Com efeito, enquanto no caso da filha do armador (processo BvR 567/89), o Tribunal Constitucional reconheceu a existência de uma dívida exorbitante, que comprometeria o mínimo existencial da fiadora por toda a vida, o caso da esposa seria diferente, pois possuía circunstâncias fáticas distintas.

Aqui, segundo o BVerfG, não houve a assunção de uma fiança de extensão difícil de ser avaliada e nem restou comprovado que a fiadora fora pressionada a assinar o documento ou que o funcionário do banco teria minimizado os riscos e a extensão da garantia assumida.

Embora o banco tenha condicionado a concessão do crédito à assunção da garantia, não há indícios de que tenha inobservados seus deveres informacionais ou banalizado os riscos da responsabilidade.

Como a fiança dizia respeito a crédito de consumo, de valor não extraordinariamente alto, para a cobertura de crédito tomado pelo marido da fiadora, se poderia partir do princípio de que ela própria tinha interesse direto na concessão do crédito, pois se beneficiou do dinheiro.

Dessa forma, o BVerfG rejeitou os argumentos da mulher, autora da queixa constitucional, mantendo as decisões anteriores.

4. A importância da decisão

A partir dessa decisão histórica do BVerfG, os tribunais inferiores passaram a modificar sua jurisprudência em relação aos contratos de fiança celebrados por instituições financeiras e os familiares do devedor.

O próprio Bundesgerichtshof (BGH) alterou sua jurisprudência, passando a admitir a nulidade de fianças exorbitantes celebradas por descendentes, cônjuge, companheiros e noivos, ou seja, pessoas que estão vinculadas emocionalmente ao devedor principal.

Um dos fundamentos seria o § 138 BGB, que, logo no caput proclama: "Um negócio jurídico contrário aos bons costumes é nulo".

A frase 2 do dispositivo proclama a nulidade dos negócios usuários dizendo que também é nulo o negócio jurídico através do qual alguém, explorando a situação de necessidade, a inexperiência, a falta de discernimento ou uma significativa falta de vontade de outrem, obtém para si ou para terceiros vantagens patrimoniais que estão em clara desproporção com a prestação.

Em suma, a norma visa combater o abuso do poder econômico. Para a aplicação do dispositivo, decisivo é o conteúdo do negócio jurídico celebrado e, em razão disso, o § 138 BGB tem aplicação não apenas aos contratos, mas a todos os tipos de negócio jurídico exorbitantemente desestruturados1.

A nulidade da fiança de familiares decorre com uma conjuntura de fatores.

Dentre eles, o primeiro e principal é que no caso concreto haja uma grave desproporção entre a extensão da fiança e a capacidade financeira do fiador, ou seja, que o fiador fique excessivamente endividado.

Nesses casos, salvo prova em contrário, presume-se que a responsabilidade pela dívida foi assumida sem uma avaliação racional da situação e dos riscos financeiros, sendo o resultado da inexperiência e/ou da vinculação afetiva do fiador ao devedor.

Em segundo lugar, é necessário que essa grave desproporção seja perceptível para o banco e que ele tenha se aproveitado da inexperiência do fiador.

Esse requisito, entretanto, pode ser - e é com frequência - relativizado na prática na medida em que a instituição financeira, considerando o fim último do contrato de fiança, tem o ônus de verificar previamente a situação patrimonial do fiador.

Em terceiro lugar, o fiador não pode obter uma vantagem direta do crédito afiançado. Se ele se beneficia do crédito, mesmo uma garantia excessivamente onerosa pode ser considerada válida pela ausência da contrariedade aos bons costumes.

É o caso do filho, fiador de dívida contraída pela empresa familiar, da qual ele é diretor ou do fiador que é coproprietário do objeto financiado ou cuja empresa participa do projeto financiado com o crédito concedido pelo banco.

Algumas decisões apontam a nulidade da fiança, mesmo sem grave desequilíbrio financeiro, quando o banco influencia de forma inadmissível a liberdade de decisão do fiador, por exemplo, ao banalizar os riscos assumidos ou omitir os graves riscos do fiador ou exigir a fiança do cônjuge após ter liberado parte do empréstimo.

As linhas gerais da fiança de familiares são aplicadas, em princípio, também a fianças assumidas por empregado diante de dívidas do empregador, mas não a fianças assumidas por sócios por dívidas da sociedade2.

No Brasil, os bons costumes (gute Sitten) não são aplicados como limite à autonomia privada como na Alemanha, onde o § 138 BGB tem vasta aplicação.

Lá, a autonomia privada não é restringida e limitada apenas pelo quadro normativo, mas também por princípios da moral jurídica e social, enraizados na sociedade ou imanentes aos princípios e valores do ordenamento.

Trata-se, em apertada síntese, de exigências comportamentais extrajurídicas, que resultam de regras de convivência comum da sociedade ou dos valores e princípios fundamentais da ordem jurídica.

Dentre os inúmeros casos subsumidos no § 138 BGB como negócios contrários aos bons costumes e sancionados com nulidade, cita-se - além da fiança exorbitante de familiares - os negócios usuários, que nunca foi tratado com o devido cuidado entre nós.

__________

1 DÖRNER, Heinrich. Bürgerliches Gesetzbuch Handkommentar. In: Reiner Schulzer (coord.). 8. ed. Baden-Baden: Nomos, 2014 , p. 136.

2 Nesse sentido: BGH NJW 2003, p. 59.