Justiça de Frankfurt permite retificação do nome de criança sem concordância do pai
terça-feira, 28 de janeiro de 2020
Atualizado às 11:03
Juiz pode suprir excepcionalmente o consentimento dos genitores
O Judiciário pode suprir o consentimento de um dos genitores quando ele se recusa em concordar com a alteração do nome do filho, disse o Tribunal de Justiça de Frankfurt am Main, em decisão de 2/1/20201.
O caso
Os pais da criança eram casados, mas em 2010 o casamento chegou ao fim. A menina ficou morando com a mãe e perdeu totalmente o contato com o pai a partir de 2014.
A mãe casou-se novamente e assumiu o nome de família do segundo marido, com quem teve outra filha.
Ela requereu, então, em juízo, em 2018, a substituição do sobrenome da primeira filha a fim de que ela também usasse o patronímico do segundo marido, enteado da garota.
Aqui deve-se ressaltar uma peculiaridade do direito alemão em relação à formação dos nomes: é muito comum que as pessoas possuam apenas um sobrenome e não vários, como no Brasil ou Portugal e qualquer dos cônjuges pode abandonar seu sobrenome de solteiro para adotar o do outro, embora o mais comum seja a mulher passar a usar o patronímico do marido.
Dessa forma, mãe e filha não tinham um sobrenome comum, pois a mãe retirou o sobrenome do primeiro marido para adotar o do segundo e a filha permaneceu com o sobrenome do pai biológico.
Assim, é fácil perceber os transtornos na hora de comprovar a filiação da menina. Mas, além disso, pesava no caso concreto, o fato da menina se sentir desconfortável e segregada, como se não fosse parte da família recomposta, pois carregava um patronímico diferente dos demais.
O problema é que o pai da garota se recusou a concordar com a troca do sobrenome. Ele alegou estar sofrendo de depressão e não ter condições psicológicas de tomar tão importante decisão naquele momento e que, além disso, o nome de família era o último vínculo que restava com a filha.
O processo judicial
A lide girava em torno de saber se o consentimento do pai para a alteração do patronímico da menina poderia ser suprido pelo juiz.
Não havia, portanto, pedido de reconhecimento de paternidade socioafetiva, que, embora possível, não é reconhecida de forma tão generosa como por aqui, muito menos a multiparentalidade.
O pedido foi indeferido em primeira instância, apesar do parecer psicossocial favorável à troca do patronímico.
Em decisão de 31/5/2019, o juiz denegou o pedido alegando que a substituição do sobrenome só é admissível em casos excepcionais e que, no caso concreto, não restara demonstrado que a mudança seria imprescindível ao bem-estar da criança.
O simples desejo da menor era insuficiente a justificar a medida e meros incômodos por conta da diferença de nomes familiares não atendia o requisito legal da necessidade da alteração, afirmou o magistrado.
Mas, em grau de recurso, o Tribunal de Justiça da Comarca de Frankfurt a.M. reformou a decisão.
A decisão do OLG Frankfurt
Segundo o OLG Frankfurt, decisivo para a alteração do nome é o bem-estar da criança (Wohle des Kindes), nos termos do § 1.618, frase 4 do Código Civil alemão e, para tanto, o Judiciário pode suprir a falta de consentimento do pai.
Segundo o § 1.618 BGB, o genitor, com guarda exclusiva ou compartilhada, e seu novo cônjuge podem dar seu patronímico à criança (menor e solteira) que com eles vivam na mesma residência, através de declaração perante o oficial de registro civil das pessoas naturais. A regra vista possibilitar uma maior integração da criança enteada na nova família2.
O pedido de alteração do sobrenome pode ser feito logo após o início da constituição do novo núcleo familiar, desde que obedecidos os demais pressupostos exigidos em lei.
A mudança pode ser feita por meio da substituição de um sobrenome por outro ou por meio de acréscimo, quando a pessoa excepcionalmente passa a ter um sobrenome composto, como, por exemplo, Fritz-Meier, onde o primeiro patronímico corresponde ao do pai biológico e o segundo ao do cônjuge da mãe.
Mas para a alteração não basta a simples vontade do casal. A lei elenca vários pressupostos, os quais vêm sendo interpretados cautelosamente pela jurisprudência devido ao caráter jusfundamental do nome (direito da personalidade) e em consideração ao direito de guarda do outro genitor, caso ele o possua.
De acordo com o § 1.618 BGB, para a alteração do patronímico é necessário que a criança seja menor e solteira; que resida na nova família e que a medida corresponda ao melhor interesse da criança. Se ela tiver cinco anos completos, é imprescindível que seja ouvida e sua concordância será tomada perante o registrador juntamente com as declarações individuais do ascendente biológico e seu novo parceiro.
Se a criança está sob guarda compartilhada, é necessário o consentimento do outro ascendente, desde que a criança possua seu sobrenome. A intenção da lei é evidentemente proteger o vínculo de filiação e, em última instância, o direito de guarda do genitor que não mora com o filho.
Importante salientar que essa redesignação - chamada Einbenennung - só tem como efeito jurídico a alteração do nome, não criando vínculo de parentalidade, nem dever de prestar alimentos.
A norma prevê ainda a possibilidade do juiz da vara de família suprir o consentimento do genitor.
A jurisprudência do Bundesgerichtshof (BGH) tem sido muito cautelosa e só lançado mão da permissão legal em casos excepcionais nos quais resta evidente a necessidade da alteração do sobrenome.
Isso ocorre, por exemplo, quando existam situações concretas que coloquem em perigo o bem-estar da criança e a alteração do nome seja imprescindível para evitar-lhe danos. É imprescindível que a medida atenda ao melhor interesse da criança.
Segundo o BGH, nesses casos é necessária uma ampla e adequada ponderação dos interesses em jogo, ou seja, da criança e dos pais, os quais possuem, em princípio, igual status, diz o BGH3.
Dessa forma, E o interesse em integrar a criança na família recomposta deve ser considerado tanto quanto o interesse na continuidade do uso do sobrenome, cujo significado ultrapassa a compreensão da própria criança e não pode ser avaliado apenas sob a perspectiva de sua atual situação familiar4, que - diga-se de passagem - pode se alterar no futuro.
Além disso, os juízes da Corte de Karlsruhe entendem que, em regra, a manutenção do sobrenome do genitor é um sinal externo da preservação da relação filial, a qual é importante para o bem-estar do filho, principalmente quando o contato entre ambos está enfraquecido ou ameaçado, pois a mudança de nome pode aparentar externamente o rompimento definitivo dos laços familiares5.
A decisão divergente do OLG Frankfurt
O Tribunal de Frankfurt, contudo, abriu divergência da Corte superior por considerar sua visão "exagerada" e carente de amparo na letra da lei, que fala apenas no bem-estar do menor.
Citando doutrina e decisões divergentes de outras cortes inferiores, o Oberlandesgericht afirmou estar convencido de ser desnecessária a comprovação de uma ameaça ao bem-estar da criança para que o juiz possa suprir a vontade do ascendente e autorizar a mudança de sobrenome.
É suficiente que essa medida se mostre necessária, pois o legislador distinguiu bem entre necessidade e risco de lesão, disse o OLG Frankfurt.
No caso concreto, o Tribunal entendeu que a medida é necessária ao bem-estar da criança, como concluiu o laudo psicossocial acostado aos autos, pois a criança estava extremamente sobrecarregada emocionalmente com a diferença de nomes familiares, especialmente em relação à meia-irmã mais nova. Não se tratava, portanto, de simples desconforto.
Como o sobrenome de uma criança é um importante componente de sua personalidade, deve o juiz levar em consideração ainda a vontade do menor, embora o desejo de uma criança de onze anos não seja o fator decisivo para o magistrado suprir a concordância do ascendente biológico em alterar o nome familiar, disse o Tribunal.
A Corte ressaltou, porém, que a mudança de patronímico em nada afeta o direito de convivência do pai com a filha, o qual é importante para o desenvolvimento dela, cabendo a ele a decisão de estabelecer o vínculo afetivo quando se sentir preparado. E é dever da mãe apoiar e estimular esse contato, disse o OLG Frankfurt.
A situação no Brasil
No Brasil, o Código Civil não regula a matéria, como o Bürgerliches Gesetzbuch (BGB). Mas a lei 11.924, de 17.04.2009, conhecida como "Lei Clodovil", de autoria do falecido Deputado Clodovil Hernandes, trata do assunto.
Ela introduziu o § 8o ao art. 57 da Lei de Registros Públicos (lei 6.015/1973) com a seguinte redação: "O enteado ou a enteada, havendo motivo ponderável e na forma dos §§ 2o e 7o deste artigo, poderá requerer ao juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o nome de família de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordância destes, sem prejuízo de seus apelidos de família".
O fim da norma é o mesmo: garantir uma maior integração da criança na família recomposta e amenizar constrangimentos.
Ela difere da norma alemã, contudo, por duas razões básicas: primeira, só prevê a hipótese de acréscimo do sobrenome do padrasto/madrasta, sem a exclusão do patronímico do genitor; segundo, não requer, por isso, o consentimento do ascendente biológico.
De qualquer forma, apesar da previsão legal, parece, salvo melhor juízo, que a regra não tem aplicação prática desapegada do reconhecimento do vínculo socioafetivo, funcionando como uma espécie de estágio anterior à admissão da parentalidade.
O Conselho Nacional de Justiça, fazendo as vezes de legislador, também regulou a mudança de nome, mas apenas em caso de reconhecimento da parentalidade, que não era, como dito, objeto de discussão no caso alemão.
O Provimento nº 63, de 14/11/2017, do CNJ estabelece regras para o registro extrajudicial da paternidade ou maternidade socioafetiva de pessoa de qualquer idade a ser realizado perante o oficial de registro civil das pessoas naturais.
Apenas as crianças maiores de 12 anos deveriam expressar seu consentimento, ao passo que os abaixo dessa idade poderiam ter seu sobrenome alterado independente de sua vontade.
O Provimento exigia o consentimento pessoal do pai e mãe biológicos, vedando o registro de mais de dois pais e de duas mães no campo "filiação" no registro de nascimento.
Essa normativa foi modificada pelo Provimento nº 83, de 14/8/2019, que introduziu mudanças materiais e procedimentais no reconhecimento extrajudicial da parentalidade socioafetiva.
Segundo o Provimento nº 83/2019, somente crianças acima de 12 anos poderão ser registradas por pai/mãe socioafetivo pela via extrajudicial, restando aos menores dessa idade apenas a via judicial.
Em todo o procedimento é necessária a intervenção do Ministério Público, o que não ocorria anteriormente.
Atendidos os requisitos necessários, inclusive a prova do vínculo afetivo, o registrador, em vez de deferir o pedido, encaminhará o expediente ao Ministério Público para parecer e, se favorável, fará o registro da filiação socioafetiva, com a respectiva alteração do nome.
Na hipótese de parecer desfavorável, o registrador arquivará o expediente e comunicará ao requerente, só sendo encaminhado ao juiz em caso de dúvida.
O Provimento também exige consentimento dos genitores biológicos, mas não prevê, como o § 1618 do BGB, a possibilidade do juiz suprir esse consentimento, de forma que cabe ao Judiciário decidir casuisticamente a questão.
Considerando a corrente amplamente aceita, capitaneada pelo STF no Recurso Extraordinário 898.060, julgado em 21.09.2016, segundo a qual podem coexistir as paternidades socioafetiva e biológica, entre as quais inclusive inexiste hierarquia, não é de surpreender que a vontade contrária do genitor tenha menor - ou nenhum - peso diante da situação fática da parentalidade, até porque a multiparentalidade é admitida mesmo contra a vontade do pai biológico.
A justiça gaúcha já decidiu que o pai biológico não pode impedir o acréscimo do sobrenome do padrasto ao da enteada, até porque não há prejuízo na relação biológica anterior, e seu patronímico foi preservado. Trata-se do AI 70058578360, julgado em 10/4/2014 pela 8a. Câmara Cível do TJ/RS, sob relatoria do Des. Rui Portanova.
Mas fica a dúvida se seria possível a substituição do sobrenome do ascendente sem o seu consentimento e sem o concomitante reconhecimento da parentalidade socioafetiva, como no caso alemão.
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1 Agradeço às amigas Ana Carolina Brochado e Ana Luiza Nevares, grandes expoentes do Direito de Família e Sucessões, pelas pertinentes considerações feitas.
2 Cf. a Exposição de Motivos BT-Drucks. 13/4899, p. 92. Na doutrina, dentre outros: KEMPER, Reiner. In: Bürgerliches Gesetzbuch Handkommentar. Reiner Schulze (coord.). 8 ed. Baden-Baden: Nomos, 2014, § 1618, Rn. 1, p. 1955.
3 BGH XII ZB 153/03, julgado em 10.03.2005, p. 6.
4 Nesse sentido: BGH BGH XII ZB 153/03, julgado em 10.03.2005 e OLG Frankfurt a. M. 1 UF 140/19, p. 3.
5 BGH XII ZB 153/03, julgado em 10.03.2005, p. 7.