Há pouco tempo o site do Globo noticiou que uma moradora, mãe de dois gêmeos pequenos, recebeu uma advertência do condomínio em decorrência da infração de "choros e gritos de criança antes das 7h da manha".
Segundo ela contou aos jornais, os filhos estavam doentes, com pneumonia, otite, bronquite e tosse, o que já deixa qualquer criança irritada e chorosa naturalmente, principalmente os pequenos.
Os vizinhos do prédio, contudo, se irritaram com a situação e fizeram reclamações no condomínio, que acabou notificando a moradora pela "infração".
Conviver em sociedade não é fácil. E briga entre vizinhos é um problema no mundo inteiro.
Já foi noticiado aqui o caso do proprietário na Alemanha que direcionou, por provocação, as câmeras de segurança para o imóvel do vizinho, razão pela qual fora condenado a retirar os apetrechos.
Uma hora, um reclama das árvores que, embora posicionadas dentro do limite permitido, espalham folhas e pólens pelo terreno alheio. Outra hora alguém se queixa do barulho da televisão, do treino musical, das crianças e até do barulho dos sinos das vacas.
Os casos vão parar impreterivelmente no Judiciário. E aqui a palavra de ordem tem sido tolerância e razoabilidade.
O caso das crianças
Na cidade de Trier, o dono de uma taberna de vinho reclamou do barulho das crianças no parquinho localizado próximo a seu estabelecimento comercial.
O parquinho destinava-se a crianças de até 12 anos e funcionava de 8h às 13h e de 14h às 20h.
Segundo ele, desde a construção do parquinho, seus clientes estavam reclamando do barulho e a clientela estava diminuindo. Ele mandou medir o ruído e constatou que estava acima do permitido pela legislação. Por isso, pleiteou judicialmente a instalação do parque em outro local.
O Tribunal Administrativo de Trier julgou a ação improcedente. Trata-se do processo Verwaltungsgericht (VG) Trier 5 K 1542/14.TR, julgado em 28.1.2015.
Segundo a Lei de Proteção contra Imissões (Bundesimmissionsschutzgesetz - BImSchG), que regula as imissões danosas ao ambiente, o barulho das crianças provenientes de parques infantis, creches ou escolas não são, em regra, considerados, efeitos danosos ao ambiente (§ 22, inc. 1a BImSchG).
Por isso, os valores limites para imissões não se aplicam à zoada produzida pelas crianças, sendo inútil a medição feita pelo autor da ação.
Para o Tribunal, a norma do § 22, inc. 1a da BImSchG deixa claro que sob a sociedade recai um mandamento especial de tolerância em relação à zoada produzida pelas crianças.
"O barulho de crianças brincando são expressão do desenvolvimento e crescimento infantil e, por isso, em princípio, razoável", disse o Tribunal.
Segundo a Corte, a jurisprudência alemã é uníssona no sentido de que as crianças podem fazer barulho, às vezes mais alto que outras fontes de ruídos.
Paradigmática nesse sentido é uma decisão do Tribunal Superior Administrativo de 1991 (BVerwG 4 C 5/88, julgado em 12.12.1991).
O VG Trier observou que as condições do parquinho (localização, vizinhança, tamanho, equipamentos, etc.) eram adequadas, possuindo brinquedos tecnicamente apropriados para o público do local.
Dessa forma, sob o autor da ação recaia um "absoluto mandamento de tolerância" (absolutes Toleranzgebot).
O Tribunal salientou, por fim, que estabelecimentos comerciais não gozam de proteção "especial" perante os moradores, de forma que não havia qualquer razão para retirar o parquinho do local.
Dessa forma, seria muito improvável uma mãe ser ameaçada de multa, na Alemanha, em casos semelhantes ao ocorrido no Brasil. A bem da verdade, a situação, como noticiada, é, no mínimo, bizarra.
O caso dos pólens
Em caso julgado em 20/9/2109, o Bundesgerichtshof (BGH) se deparou com a queixa de um vizinho contra a sujeira e imissão natural das bétulas, oriundas do terreno fronteiriço.
A bétula é um arbusto típico da região temperada do hemisfério norte, utilizado pelos povos antigos contra mau-hálito e para emagrecimento.
O proprietário do imóvel queria que seu vizinho derrubasse três saudáveis arvores de bétula, plantadas a uma distância de mais de dois metros da cerca limítrofe, ou lhe pagasse todo ano, de junho a novembro, 230 euros por mês para custear a limpeza de seu imóvel em razão da sujeira produzida pelas plantas.
O juízo da Comarca de Karlsruhe julgou improcedente a ação, mas o Tribunal de Maulbronn deu ganho de causa ao proprietário, condenando o réu a derrubar as árvores.
Segundo a sentença, haveria um conflito entre as regras do Código Civil alemão (BGB) e as normas municipais, o qual seria resolvido aplicando a norma do § 1004, inc. 1 do BGB, que concede ao proprietário uma pretensão de abstenção em casos de perturbação da propriedade (esbulho ou turbação), a ser exercida perante o perturbador da posse.
Um grau de revisão, o Bundesgerichtshof afastou a incidência da norma ao caso. Trata-se do processo BGH V ZR 218/18, julgado em 20/9/2019.
Disse não se tratar de perturbação da posse, mas sim da questão preexistente de saber se o proprietário de um imóvel pode ser responsável por imissões naturais emanadas de seu imóvel, ainda quando ele observe as normas municipais. Se não for responsável, não há qualquer conflito entre o direito municipal e o BGB.
Segundo jurisprudência pacífica do BGH, a qualificação como perturbador não decorre apenas da posse ou da propriedade do imóvel, de onde provém a perturbação sobre o terreno vizinho.
Exceto nos casos de uma ação direta do proprietário, é necessário verificar se existem motivos materiais que justifiquem imputar-lhe a responsabilidade pelo evento.
Isso ocorre quando da forma como o imóvel é utilizado resulta um "dever de segurança" (Sicherungspflicht), ou seja, um dever de evitar inconvenientes ao imóvel fronteiriço.
Não se trata aqui de um dever de natureza jurídica obrigacional, é bom que se diga, mas de dever resultante da relação jurídica de vizinhança.
Decisivo é que uma análise valorativa do caso concreto permita concluir que o possuidor e/ou proprietário tenha razoavelmente causado o estado perturbador e seja, dessa forma, responsável pela situação.
Esse princípio se aplica ainda quando se tratem de incômodos decorrentes de acontecimentos naturais.
Mas isso depende da análise de uma conjuntura de fatores, como o uso dado ao imóvel e a possibilidade de controle e/ou prevenção da perturbação.
Um imóvel não é considerado adequadamente utilizado quando as plantações são feitas em inobservância das regras de distância impostas pelo direito municipal, disse o BGH.
Contudo, é controvertido na doutrina se surge para o vizinho uma pretensão de abstenção (Abwehranspruch), com base no § 1004 I BGB, contra imissões emanadas de plantações, quando as regras e limites impostos pela municipalidade foram observados, como no caso em comento.
Há uma corrente que sustenta que a simples observância das normas municipais seria insuficiente para excluir a pretensão do vizinho de exigir do outro uma abstenção quando ele sofre, de fato, interferências em seu imóvel1.
A Corte de Karlsruhe aderiu, entretanto, à corrente contrária, que, nesses casos, entende restar desconfigurada a interferência na propriedade alheia ou, reconhecendo-a, a considera insignificante.
Segundo a Corte, o conteúdo e extensão da pretensão do § 1004 I BGB são definidos considerando o direito geral de vizinhança, o qual é caracterizado pelo equilíbrio dos interesses opostos dos vizinhos e encontra-se positivado não apenas no Código Civil, mas também em leis municipais.
No caso, a lei municipal que fixa os limites e as distâncias das plantações em imóveis fronteiriços é expressão da consideração recíproca e da atenção às particularidades locais, afirmou o BGH.
Se, apesar da distância exigida para a plantação de bétulas estar sendo observada, surgem imissões naturais para o imóvel vizinho, como pólen, sementes e folhagens, o proprietário do imóvel está usando regularmente sua propriedade, de acordo com os valores adotados pelo legislador, que autoriza plantações nessas circunstâncias.
Diferente do caso do proprietário que deixa espalhar galhos e raízes sobre o imóvel lindeiro, fazendo surgir a pretensão do vizinho de exigir o corte, nos termos do § 1004 I BGB ou até mesmo indenização pelas despesas a mais gastas com a limpeza do terreno (§ 906 II BGB). Nesse sentido, a decisão BGH V ZR 99/03, julgada em 28.11.2003.
Seria irrazoável qualificar como perturbador o proprietário em razão de perturbações decorrentes de fenômenos naturais, como a imissão emanada de plantações autorizadas.
Logo, não surge para o vizinho a pretensão de abstenção do § 1004 I BGB e nem uma pretensão ressarcitória, com base no § 906 II BGB.
Dito em outras palavras: o vizinho é obrigado a tolerar as interferências decorrentes de acontecimentos naturais, exceto aquelas extraordinariamente insuportáveis. Trata-se de um dever de consideração recíproca (Pflicht zur gegenseitigen Rücksichtnahme), oriunda da relação jurídica de vizinhança.
O caso do sino das vacas
Há anos a briga de vizinhos por causa do barulho do sino de vacas ocupa os tribunais da Bavária.
A última disputa chegou ao Tribunal de Justiça de Munique em abril desse ano após reclamações de um casal da pequena cidade de Holzkirchen, insatisfeitos com o ruído e o odor proveniente do terreno vizinho, pertencente a uma pequena agricultora.
Na origem, cada um moveu uma ação própria contra a vizinha.
No processo movido pelo marido, as partes chegaram a um acordo: as vacas não deveriam ficar na parte norte, mas apenas na parte sul do terreno.
O acordo fora cumprido pela agricultora, mas, nada obstante, o barulho ainda permanecia alto, com inconvenientes desagradáveis, como cheiro de esterco e moscas.
O autor chegou a exibir o som dos animais na audiência de conciliação, mas o juiz não mudou de opinião, fazendo valer o acordo assinado.
O autor interpôs, então, apelação ao OLG München, processada sob o registro Az. 15 U 138/18, julgada em 10.4.2019, mas o resultado não foi diferente.
O apelante perdeu parcialmente, porque só fora reconhecido o direito de exigir o confinamento dos animais na parte sul da fazenda. Para o Tribunal, os vizinhos precisam tolerar as imissões naturais vindas da fazenda.
O pedido de recurso ao BGH foi negado, mas eles já recorreram da decisão, de forma que talvez o caso suba à Corte em Karlsruhe.
Recentemente, a esposa do vizinho moveu outra ação, que ainda aguarda audiência de conciliação.
Moral da história: convivência exige tolerância e consideração pelos interesses alheios.
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