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Testamento como última chicana

terça-feira, 5 de novembro de 2019

Atualizado às 09:45

Ao contrário do Brasil, onde poucas pessoas se preocupam em fazer em vida disposições para depois da morte, na Alemanha há uma cultura em se fazer testamento.

O problema lá tem sido algumas exigências e condições que os autores da herança têm imposto aos herdeiros e legatários.

Não raro, procura-se vincular a herança ou legado a condições consideradas inadmissíveis pela ordem jurídica.

Não raro, em alguns testamentos o autor da herança condiciona seu recebimento à visita periódica do herdeiro ou a um número mínimo de visitas por ano ou àquele filho que dele cuidar na velhice. Também surgem promessas de deixar um pedaço maior do bolo hereditário se a filha se separar ou se o filho deixar a vida errante e se casar.

As situações fornecem material de vida suficiente para a produções de grandes comédias hollywoodianas.

A coisa tem ganhado tamanha proporção que o Fórum de Direito Sucessório de Munique divulgou há pouco que a maioria dos testamentos no país contém condições a serem preenchidas pelos herdeiros e legatários.

Eles alertam, contudo, que isso não pode significar um mecanismo de pressão e, principalmente: não se pode pretender "comprar" afeto, atenção ou cuidado dos herdeiros.

Isso vale principalmente quando há a explosiva combinação de "coação" e altas cifras.

A jurisprudência tem beneficiado os herdeiros sempre que as condições impostas pelo de cujus restringem consideravelmente sua liberdade de decisão, colocando-os quase em uma situação de coação.

Nesses casos, não raro as condições impostas são declaradas nulas por contrariedade aos bons costumes, preservando-se o direito fundamental à herança dos herdeiros, previsto no art. 14 da Lei Fundamental (Grundgesetz).

Condicionar o recebimento da herança à conclusão dos estudos ou ao alcance de determinada idade (maioridade) são cláusulas consideradas válidas pelos tribunais.

Há pouco, entretanto, o Tribunal de Justiça de Frankfurt am Main considerou nula a condição imposta por um avô aos netos, segundo a qual esses só fariam jus à herança se o visitassem, no mínimo, seis vezes por ano.

Trata-se do processo OLG Frankfurt a.M Az. 20 W 98/18, julgado em 5/2/2019.

No caso, o avô dispôs em testamento que sua esposa e o filho do primeiro casamento deveriam ficar com 25% cada um da herança.

O restante ficaria para os dois netos menores, descendes de outro filho do falecido, que nada receberia.

Pressuposto, contudo, para o recebimento da herança era a visita regular do avô, que morava em outra cidade.

Essa condição era conhecida da família e, por isso, os pais pressionavam os meninos a visitar o avô, mas eles se recusavam a ir na frequência exigida.

Após a morte do avô, a viúva e o filho do primeiro casamento requereram que a parte destinada aos menores lhes fosse atribuída, pois os meninos não visitaram o falecido com a frequência exigida.

Os meninos, então, impugnaram a cláusula testamentária.

Para a Corte, o avô ultrapassou os limites da liberdade de testar, exercendo uma coação sobre os netos, contrária aos bons costumes.

Isso, porque a exigência invadia a liberdade de decisão (Entscheidungsfreiheit) e de condução de vida (Lebensführung) dos jovens, tolhendo a decisão livre e espontânea dos netos de decidir se e quando visitar o avô.

O OLG Frankfurt a.M. ressaltou, contudo, que a contrariedade aos bons costumes de uma condição precisa ser analisada com cuidado e razoabilidade, pois a liberdade de testar do autor da herança está garantida na Lei Fundamental.

Cada um tem o poder de determinar a sucessão de seus bens, como garantido pela liberdade de testar.

Dessa forma, a invalidade deve ser exceção. Disse o Tribunal:

"Em princípio, é de se garantir a liberdade de testar de um autor da herança, protegida na Lei Fundamental. Precisa-se, então, ser possível conformar a ordem de sucessão conforme suas próprias representações. A contrariedade aos bons costumes só pode ser admitida em casos excepcionais especialmente grassos. As barreiras do caso excepcional sempre é ultrapassada quando a condição imposta pelo autor da herança, considerando-se as circunstâncias altamente pessoais ou econômicas, submete a pressão a liberdade de decisão do receptor condicional da doação e, através da expectativa das vantagens patrimoniais, deve-se dirigir comportamentos, os quais pressupõem, geralmente, um livre convencimento interno da pessoa"1.

Mas é inadmissível que o autor da herança pretenda "comprar" com a herança um determinado comportamento dos herdeiros.

Tamanha invasão na condução da vida de outrem não é tolerada pela ordem jurídica e nem abrangida no âmbito normativo da liberdade de testar do de cujus, disse o Tribunal.

A nulidade da condição, conduto, não implica a nulidade da condição de herdeiro, de forma que os netos, no caso em comento, receberam o quinhão que lhes foi destinado em testamento.

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1 Grundsätzlich sei zwar die im Grundgesetz geschu¨tzte Testierfreiheit eines Erblassers zu gewährleisten. Es mu¨sse möglich sein, die Erbfolge nach seinen eigenen Vorstellungen zu gestalten. Die Sittenwidrigkeit einer Bedingung könne nur in besonders schwerwiegenden Ausnahmefällen angenommen werden. Die Grenze zu einem solchen Ausnahmefall sei dann u¨berschritten, "wenn die von dem Erblasser erhobene Bedingung unter Beru¨cksichtigung der höchstpersönlichen oder wirtschaftlichen Umstände die Entschließungsfreiheit der bedingten Zuwendungsempfänger unzumutbar unter Druck setzt und durch das Inaussichtstellen von Vermögensvorteilen Verhaltensweisen bewirkt werden sollen, die regelmäßig eine freie innere Überzeugung des Handelnden voraussetzen".