Decisões históricas: o caso Lüth e a eficácia horizontal dos direitos fundamentais
terça-feira, 29 de outubro de 2019
Atualizado às 09:30
A coluna de hoje comenta o paradigmático caso Lüth, a decisão pioneira do Tribunal Constitucional Alemão que deu origem à discussão da eficácia dos direitos fundamentais no direito privado, tema da recente palestra do prof. dr. Reinhard Singer, catedrático da Universidade Humboldt de Berlim (Alemanha), proferida no dia 11/10/19, na Escola da Magistratura do Rio de Janeiro (EMERJ), em evento organizado juntamente com a Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC).
Trata-se do processo 1 BvR 500/51, julgado do 1o Senado da Corte 15/1/58 e publicado no repertório BVerfGE 7, 198.
O caso
O diretor de imprensa da cidade de Hamburg, Erich Lüth, convocou um boicote, em 20/9/50, ao filme "Amada imortal" (Unsterbliche Geliebte) do cineasta Veit Harlan, que seria exibido em festival de cinema da cidade.
A razão do boicote foi o fato de Harlan ter sido o grande cineasta durante o governo nazista e ter produzido, a pedido de Joseph Goebbels, o filme Jud Süß, que teve inspiração na figura de Joseph Süß Oppenheimer, um alto funcionário da fazenda no governo de Karl Alexander von Württemberg (1684-1737). O filme tinha claro caráter discriminatório e antissemita.
Veja a foto do polêmico filme antissemita encomendado por Joseph Goebbels, o cruel Ministro de Propaganda do Terceiro Reich:
Os personagens da história
Veit Harlan começou sua carreira depois de 1933, quando Adolf Hitler já tinha subido ao poder, e em pouquíssimo tempo se tornou um cineasta de prestígio, devido em parte ao intenso contato com a cúpula nazista, especialmente com Goebbels.
Com o fim da 2a. Guerra Mundial e o colapso do regime nazista, os aliados iniciaram um processo de caça às bruxas, denominado "processo de desnazificação" (Entnazifizierungsverfahren), ocasião na qual Harlan fora acusado duas vezes.
O Tribunal de Guerra, na época, reconheceu a "clara tendência antissemita" do filme Jud Süß, bem como sua aptidão de - na conjuntura de então - influenciar tendenciosamente a opinião pública, em uma tentativa de justificar e/ou tolerar a perseguição aos judeus.
Considerando que Harlan participou como diretor e roteirista do filme, ele compreendeu bem o fim e os efeitos visados pelo filme, tendo, consequentemente, preenchido - objetiva e subjetivamente - o suporte fático do crime contra a humanidade, disse o Tribunal de Guerra.
Mas foi julgado inocente das acusações em razão da excludente de culpabilidade do § 52 do Código Penal alemão, alegada por Harlan em sua defesa: estado de coação.
Isso, porque, quando o filme foi rodado, em novembro de 1939, a Alemanha já se encontrava em estado de guerra com a Polônia e Goebbels dizia que cada alemão era um "soldado do Führer", devendo cumprir seu dever, sob pena de se submeter às mais severas punições, inclusive pena de morte. Dessa forma, não havia de facto possibilidade de escolha para Harlan.
O Tribunal de Guerra não encontrou fatos concretos que demonstrassem que Harlan sofrera coação, mas também não conseguiu verificar sua inexistência. Assim, concluiu pela existência da excludente a partir das circunstâncias nas quais o acusado estava envolvido. Isso levaria Lüth a afirmar posteriormente que a absolvição de Harlan teria sido apenas formal, com o significado de uma condenação moral.
Lüth, por sua vez, era uma personalidade engajada na reconstrução da relação entre alemães e judeus, tendo iniciado, inclusive, uma ação "Paz com Israel", que contou com o apoio de grande parcela da sociedade e da igreja cristã.
A par desse histórico de vida, Lüth, ao saber que o filme de Harlan seria exibido durante o festival de cinema, em um pronunciamento, exortou os cinemas e teatros a não exibir o filme e o público a não assistí-lo.
Deve-se dizer que Lüth não foi o único a se manifestar contra a exibição do filme e apresentação de Veit Harlan como um dos maiores expoentes da cinematografia alemã, feita pelas empresas produtora e distribuidora do filme: quarenta e oito professores da Universidade de Göttingen, onde Rudolf von Jhering lecionou, assinaram um manifesto e o deputado Dr. Schmid-Tübingen pronunciou-se duramente no Parlamento em Berlim (Bundestag) contra a exibição do filme, condenando moralmente o cineasta.
O processo
Diante do boicote de Lüth, o cineasta, a produtora do filme Domnick-Film-Produktion GmbH e a distribuidora Herzog-Film GmbH entraram com medida liminar perante o juízo da comarca de Hamburg a fim de proibir Lüth, dentre outras coisas, de exortar os cinemas e teatros a não exibir e o público a não assistir o filme.
O juízo de primeira instância condenou Lüth a abster-se da exortação ao boicote, pois entendeu que isso seria um ato ilícito contrário aos bons costumes, tipificado no art. 826 BGB.
Ele visava, em última análise, impedir o retorno de Harlan como uma figura representativa do cinema alemão. Mas isso não se justificaria, porque Harlan fora absolvido nos processos criminais movidos contra ele.
Por conta da absolvição, a organização de cinema alemã retirou todas as restrições impostas anteriormente à liberdade de exercício profissional de Harlan.
Dessa forma, concluiu o juízo, qualquer restrição ao exercício desse direito fundamental, proveniente de quem quer que seja, seria contrária aos bons costumes.
Em outras palavras: a conduta de Lüth contrariava a concepção democrática do direito e dos bons costumes do povo alemão.
Lüth apelou da decisão de primeira instância, prolatada em 22/11/51 (Landgericht Hamburg Az. 15 O 87/51), mas o Tribunal de Justiça (Oberlandesgericht) de Hamburg negou provimento à apelação.
Acatando os argumentos da sentença, o OLG Hamburg acrescentou que a conduta de Lüth violava o núcleo da personalidade artística de Harlan, "a última área inviolável da liberdade humana", ferindo inegavelmente a dignidade humana do cineasta, o que configuraria - em qualquer circunstância - ofensa aos bons costumes.
Lüth, então, moveu queixa constitucional ao Bundesverfassungsgericht.
A decisão do Tribunal Constitucional
O BVerfG sublinhou inicialmente que a sentença de primeiro grau, por consistir ato do poder público (Poder Judiciário), pode ferir o direito fundamental do autor da queixa constitucional sempre que esse direito fundamental deva ser observado na sentença.
Sempre que os tribunais inferiores adentram no campo jusfundamental, restringindo de forma inadmissível, por meio de interpretação, a pretensão de eficácia de um direito fundamental, é competência da Corte Constitucional assegurar a eficácia do valor específico do direito fundamental.
Para a Corte, Lüth tinha o direito de manifestar publicamente sua opinião sobre o filme e o cineasta, bem como convocar a população a boicotar o filme.
O direito fundamental à livre manifestação de opinião é uma expressão direta da personalidade humana no meio social e, por isso, um dos direitos humanos mais essenciais.
Não por outra razão, o art. 11 da declaração francesa dos direitos do homem e do cidadão, de 1789, o considera "um des droits les plus précieux de l'homme".
Ele é, além disso, um direito constitutivo de uma ordem estatal livre e democrática, pois permite o permanente confronto de ideias e a luta por opiniões, que é um elemento vivo da liberdade e da democracia, sublinhou a Suprema Corte.
Ele é, em suma, a base da liberdade ou, como diz Cardozo, "the matrix, the indispensable condition of nearly every other form of freedom".
A manifestação do pensamento é livre. Quando, contudo, ela intervém e restringe um bem jurídico de outra pessoa, que goza de maior proteção face à liberdade de expressão, essa intervenção passa a ser inadmissível.
Aqui é necessária uma ponderação dos direitos fundamentais em colisão.
O direito à livre manifestação do pensamento precisa retroceder diante de interesse de hierarquia e proteção mais elevada. Entretanto, só no caso concreto se pode identificar qual o interesse preponderante.
A proteção de um bem jurídico privado pode - e deve, sublinhou o BVerfG - retroceder quando se trata de uma disputa de ideias acerca de questões essenciais que tocam a esfera pública.
Para decidir se a convocação ao boicote contraria os bons costumes, é necessário analisar os motivos, o fim e os meios da manifestação, bem como se Lüth não ultrapassou a medida, necessária e adequada, da intervenção nos interesses de Harlan e das empresas cinematográficas.
No caso, Lüth não perseguia fins próprios e egoísticos, mas um interesse fundamental do povo alemão.
Com efeito, sublinhou o Tribunal Constitucional que os motivos que impulsionaram Lüth não eram contrários aos bons costumes, já que ele não perseguia interesses puramente egoísticos de natureza econômica, pois não era concorrente nem de Harlan, nem das empresas cinematográficas, o que foi inclusive reconhecido em primeira instância.
O objetivo da manifestação dele foi impedir o retorno de Harlan como um representante do cinema alemão.
Ele fora motivado pelo receio de que a volta de Harlan ao cinema pudesse significar - principalmente no exterior - uma influência nazista sobre o cinema alemão, despertando a impressão de que nada havia mudado na cena cultural alemã em relação ao período do nacional-socialismo, época na qual Harlan foi um dos grandes expoentes.
Esse receio atinge uma questão fundamental para o povo alemão, disse de forma muito consciente o BVerfG, pois nada prejudicou mais a imagem dos alemães do que a cruel perseguição aos judeus durante o nazismo.
Existe, portanto, um interesse fundamental de que o mundo tenha certeza de que o povo alemão se afastou dessa ideologia e de que não a condena por motivos oportunistas, mas por uma mudança interna em suas convicções.
Esse receio do autor da queixa constitucional resultava da situação da época, pois até na Suíça a exibição do filme "Unsterbeliche Geliebte" gerou protestos e foi proibida, não por seu conteúdo e sim pela participação de Harlan. Em outras cidades alemãs também houve protestos pelos mesmos motivos.
Para o Tribunal Constitucional foi errônea a decisão do OLG Hamburg de, por um lado, reconhecer como legítima a manifestação de Lüth contra o retorno de Harlan como representante máximo do cinema alemão e, de outro, censurá-lo por ter convocado o público a adotar uma determinada postura (boicote) que impossibilitasse essa consagração.
Essa distinção desconsidera que a manifestação de Lüth contra os riscos do retorno de Harlan contém, em si, um juízo de valor negativo de recusa contra sua figura e contra o filme. Em outras palavras: a exortação ao público para não assistir ao filme resulta, por si só, da emissão do juízo de valor contra o retorno de Harlan à cena cinematográfica. Disse a Corte Constitucional:
"Deve-se rechaçar a ideia de que apenas a externalização da opinião é protegida jusfundamentalmente, não o efeito nela contido e por ela perseguido de atuar sobre os outros. O sentido da manifestação da opinião é precisamente deixar emanar um efeito espiritual sobre o meio em que se está inserido, produzindo efeitos na formação da opinião e convencimento da coletividade (Häntzschel, HdbDStR II, p. 655). Por isso, julgamentos de valores - que sempre visam produzir o efeito intelectual de pretender convencer os demais - são protegidos pelo direito fundamental do art. 5, inc. 1, frase 1 GG; a tutela do direito fundamental refere-se, em primeira linha, à própria opinião do emissor, manifestada no juízo de valor, através da qual ele pretende atuar sobre os outros. Uma separação entre a manifestação (tutelada) e o efeito (não tutelado) da manifestação seria absurda.".1
O Tribunal também considerou adequado o meio de manifestação (fala em público) utilizado por Lüth, pois as empresas cinematográficas dirigiram-se ao público para festejar o retorno de Harlan à cena cultural alemã.
Quem assim atua perante o público, disse a Corte Constitucional, precisa também tolerar críticas feitas em público contra o filme ou seus envolvidos.
As críticas de Lüth foram razoáveis, amparada em fatos de todos conhecidos e não tinham o poder de aniquilar a existência humana e cultural do cineasta, ao contrário do mencionado pelo OLG Hamburg.
Essa ideia supervalorizava a intensidade das críticas de Lüth, entendeu o BVerfG, sendo incapaz de restringir o livre desenvolvimento humano e cultural de Harlan.
Dessa forma, o Tribunal Constitucional julgou procedente a queixa constitucional de Erich Lüth por entender que a decisão do OLG Hamburg violava seu direito fundamental de liberdade de expressão, consagrado no art. 5, inc. 1 da Lei Fundamental.
Diz a clássica ementa do julgado:
"1. Os direitos fundamentais são, em primeira linha, direitos de defesa do cidadão contra o Estado; na determinação dos direitos fundamentais da Lei Fundamental corporifica-se uma ordem axiológica objetiva, que vale para todas as áreas do direito como uma decisão fundamental constitucional.
2. No direito civil, o conteúdo jurídico dos direitos fundamentais se desenvolvem indiretamente através das normas jusprivadas. Ele toma principalmente determinações de caráter obrigatório e é realizável para o juiz principalmente por meio das cláusulas gerais.
3. O juiz cível pode violar os direitos fundamentais através da sentença (§ 90 BVerfGG) quando ele desconhece a influência dos direitos fundamentais sobre o direito civil. O Tribunal Constitucional examina nas decisões cíveis apenas a questão da violação dos direitos fundamentais, não em geral um erro jurídico.
4. Também normas civis podem ser consideradas "leis gerais" no sentido do art. 5, inc. 2 da Lei Fundamental e, dessa forma, restringir o direito fundamental à livre manifestação do pensamento.
5. As "leis gerais" precisam ser interpretadas à luz do significado especial do direito fundamental à livre manifestação da opinião para um Estado livre e democrático.
6. O direito fundamental do art. 5 da GG tutela não apenas a exteriorização da opinião em si, mas também o efeito espiritual através da manifestação do pensamento.
7. A manifestação da opinião, que contém uma exortação ao boicote, não viola necessariamente os bons costumes, no sentido do § 826 BGB; ela pode ser justificada, na ponderação de todas as circunstâncias do caso, através da liberdade de manifestação de opinião.".2
A relevância da decisão
O caso Lüth teve uma importância ímpar para o direito ocidental do pós-guerra, pois a partir dele inicia-se na Alemanha a discussão acerca da eficácia dos direitos fundamentais no direito privado.
Esse debate irradiou-se para os países europeus, influenciados pela doutrina germânica, principalmente por Portugal, Espanha e Itália, embalado pelo movimento neoconstitucionalista, que aportou no Brasil.
No terreno civilista, o tema ganhou forma na teoria do direito civil-constitucional.
A teoria é calcada basicamente nos ensinamentos do civilista italiano Pietro Perlingieri e propõe uma releitura todo o direito civil à luz da tábua axiológica da Constituição - feita, inclusive, pelo julgador diante do caso concreto, com o que se distingue totalmente do método hermenêutico da interpretação conforme a Constituição, aplicado na Alemanha e na Europa.
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1 No original: "Die Auffassung, daß nur das Äußern einer Meinung grundrechtlich geschu¨tzt sei, nicht die darin liegende oder damit bezweckte Wirkung auf andere, ist abzulehnen. Der Sinn einer Meinungsäußerung ist es gerade, "geistige Wirkung auf die Umwelt" ausgehen zu lassen, "meinungsbildend und u¨berzeugend auf die Gesamtheit zu wirken" (Häntzschel, HdbDStR II, S. 655). Deshalb sind Werturteile, die immer eine geistige Wirkung erzielen, nämlich andere u¨berzeugen wollen, vom Grundrecht des Art. 5 Abs. 1 Satz 1 GG geschu¨tzt; ja der Schutz des Grundrechts bezieht sich in erster Linie auf die im Werturteil zum Ausdruck kommende eigene Stellungnahme des Redenden, durch die er auf andere wirken will. Eine Trennung zwischen (geschu¨tzter) Äußerung und (nicht geschu¨tzter) Wirkung der Äußerung wäre sinnwidrig."
2 No original: 1. Die Grundrechte sind in erster Linie Abwehrrechte des Bu¨rgers gegen den Staat; in den Grundrechtsbestimmungen des Grundgesetzes verkörpert sich aber auch eine objektive Wertordnung, die als verfassungsrechtliche Grundentscheidung fu¨r alle Bereiche des Rechts gilt. 2. Im bu¨rgerlichen Recht entfaltet sich der Rechtsgehalt der Grundrechte mittelbar durch die privatrechtlichen Vorschriften. Er ergreift vor allem Bestimmungen zwingenden Charakters und ist fu¨r den Richter besonders realisierbar durch die Generalklauseln. 3. Der Zivilrichter kann durch sein Urteil Grundrechte verletzen (§ 90 BVerfGG), wenn er die Einwirkung der Grundrechte auf das bu¨rgerliche Recht verkennt. Das Bundesverfassungsgericht pru¨ft zivilgerichtliche Urteile nur auf solche Verletzungen von Grundrechten, nicht allgemein auf Rechtsfehler nach. 4. Auch zivilrechtliche Vorschriften können "allgemeine Gesetze" im Sinne des Art. 5 Abs. 2 GG sein und so das Grundrecht auf Freiheit der Meinungsäußerung beschränken. 5. Die "allgemeinen Gesetze" mu¨ssen im Lichte der besonderen Bedeutung des Grundrechts der freien Meinungsäußerung fu¨r den freiheitlichen demokratischen Staat ausgelegt werden. 6. Das Grundrecht des Art. 5 GG schu¨tzt nicht nur das Äußern einer Meinung als solches, sondern auch das geistige Wirken durch die Meinungsäußerung. 7. Eine Meinungsäußerung, die eine Aufforderung zum Boykott enthält, verstößt nicht notwendig gegen die guten Sitten im Sinne des § 826 BGB; sie kann bei Abwägung aller Umstände des Falles durch die Freiheit der Meinungsäußerung verfassungsrechtlich gerechtfertigt sein."