BGH condena central de defesa do consumidor a responder por dano processual
terça-feira, 17 de setembro de 2019
Atualizado às 09:31
Em caso paradigmático julgado em 2015, a Corte infraconstitucional alemã - Bundesgerichtshof (BGH) - reafirmou os pressupostos para a concessão do dano processual e acentuou a necessidade de se examinar a culpa concorrente do requerido, afetado por medida de urgência posteriormente julgada improcedente.
Para entender o caso
Trata-se do chamado "caso Piadina" (BGH I ZR 250/12, j. 30.07.2015), no qual a Central de Defesa do Consumidor de Südtirol obteve medida liminar ordenando a retirada de circulação dos pães Piadina.
Segundo a Central, os pães eram fabricados pela empresa Panificio Italiano Veritas GmbH, sediada em Munique (Alemanha), mas na embalagem do produto constava a indicação de que se tratava de uma especialidade italiana, induzindo o consumidor ao erro de achar que os mesmos eram fabricados na Itália.
A liminar foi deferida pelo juízo da Comarca de Frankfurt a.M. e a empresa retirou o produto de circulação.
No entanto, em seguida, a empresa comprovou que os pães eram produzidos por outra empresa na Itália, controlada e fiscalizada pela Panificio Italiano Veritas GmbH, mas embalados e etiquetados na Alemanha.
A Central de Defesa do Consumidor moveu, então, ação indenizatória requerendo o ressarcimento dos custos decorrentes da propositura da medida de urgência, razão pela qual a empresa contra-atacou com reconvenção pedindo indenização do prejuízo de cerca de 80 mil euros pela retirada dos produtos do mercado durante o período de eficácia da liminar.
O processo
A autora perdeu em todas as instâncias ao argumento de que a tutela de urgência foi desde o início injustificada, dando ensejo ao surgimento da pretensão ressarcitória da ré, nos termos do § 945 do ZPO (Zivilprocessordnung), o código de processo civil alemão, que regula o dano processual decorrente da execução de tutela de urgência.
Segundo o dispositivo, essa modalidade de responsabilidade processual ocorre basicamente em três situações, formuladas na típica abstração generalizante alemã: (i) quando a medida cautelar mostrar-se desde o início objetivamente injustificada; (ii) quando o requerente deixar de mover a ação principal ou de promover a citação do requerido e (iii) quando executar tardiamente a medida de urgência1.
A decisão do BGH
A Central, então, interpôs a Revision perante o BGH, que confirmou o dever de indenizar os prejuízos sofridos pela fabricante de pães ao argumento de que (i) a tutela de urgência fora desde o início objetivamente injustificada e (ii) não tem lugar a exclusão ou redução da pretensão ressarcitória em decorrência de culpa concorrente (§ 252 BGB) do lesado.
Segundo a Corte, nas instâncias inferiores ficou demonstrado que os pães eram realmente produzidos na Itália, inclusive com receita da região e que a embalagem não induzia o consumidor a erro, pois também é produtor aquele deixa outras empresas controladas e supervisionadas fazer o produto.
Não por outra razão a lei alemã exige que todo alimento, para ser comercializado, precisa ter na embalagem a indicação do nome e endereço do fabricante, embalador ou vendedor.
O Tribunal assinalou que a indução a erro do consumidor em relação à origem do produto é, em regra, relevante, principalmente sob o ponto de vista concorrencial, pois essa indicação diz respeito a característica essencial do produto que influencia diretamente a decisão de compra do consumidor, na medida em que ele a associa com a qualidade e o preço do produto.
No caso concreto, conduto, o BGH entendeu que a Central não demonstrou a influência dessa informação na decisão do consumidor.
Ao contrário: a Corte entendeu que o consumidor mediano e sensato que lê a indicação na embalagem de que os pães são produzidos na Alemanha, fica, em regra, decepcionado, de forma que a informação constante na embalagem não fortalece, mas reduz a decisão de adquirir o produto.
A configuração do dano processual
No que aqui mais interessa, o Tribunal explicou que a parte beneficiada com a efetivação de tutela de urgência injustificada (ungerechtfertigte einstweilige Verfügung) é obrigada a ressarcir os danos que a efetivação da medida causou à contraparte.
Essa pretensão ressarcitória abrange, em princípio, os danos diretos e indiretos que se encontram em causalidade causal e adequada com a execução da medida. São os chamados danos da execução ou Vollziehungsschäden.
Esse dano requer a efetividade da medida liminar, não bastando sua concessão.
Trata-se de uma responsabilidade objetiva, independente de culpa do beneficiário da medida. Mas a doutrina discute se se trata de uma responsabilidade pelo risco ou se seria uma responsabilidade aquiliana por ato ilícito latu sensu, que também prescinde da culpa.
Há, entretanto, consenso de que a norma do § 945 do ZPO baseia-se na ideia de que aquele que executa uma medida ainda não definitiva o faz por sua própria conta e risco.
Interessante é a afirmação do BGH de que não surge o dano processual do § 945 do ZPO quando a parte afetada pela medida liminar estiver obrigada por força de lei a não realizar a conduta vetada na medida.
Mais interessante ainda foi a análise que a Corte fez sobre a presença (ou não) da culpa do requerido, afetado com a efetivação da tutela de urgência.
Segundo o Tribunal, o fato exclusivo da vítima e a culpa concorrente podem atuar como fator de exclusão ou redução da pretensão ressarcitória quando (i) a conduta culposa do requerido deu causa ao pedido e concessão da medida cautelar e/ou (ii) o requerido, após a concessão da liminar, inobservou o ônus de afastar ou minimizar o próprio dano.
Segundo o BGH, "uma culpa concorrente do requerente (§ 254 BGB) deve ser considera no âmbito da pretensão ressarcitória do § 945 ZPO.... Uma redução ou exclusão da pretensão ressarcitória do dano tem lugar quando o comportamento culposo do requerido deu motivo ao requerente para o requerimento e concessão da tutela de urgência... ou quando o requerido, depois da notificação da medida de urgência, violou seu ônus de afastar ou minimizar o dano..."2.
E aqui cabe mencionar, como precisamente pontua a doutrina alemã, que afronta a mais elementar ideia da boa-fé objetiva desconsiderar a culpa concorrente na produção do evento lesivo, pois constitui comportamento contraditório do lesado contribuir negligentemente para o evento produtor do dano e, a posteriori, pretender sua reparação integral.
Por isso, o lesado não pode ter a pretensão de ser ressarcido integralmente do dano quando os fatores que contribuíram decisivamente para a produção do evento lesivo emanaram de sua esfera de responsabilidade e de risco, que ele poderia ter controlado e evitado se tivesse agido com a prudência e diligência esperadas dos partícipes do comércio jurídico.
No caso em tela, a Corte de Karlsruhe, no entanto, afastou qualquer culpa do fabricante de pães e confirmou a improcedência da ação movida pela Central e a procedência da reconvenção movida pela empresa, que teve reconhecida sua pretensão ressarcitória em decorrência da efetivação da tutela de urgência.
O estado da arte no Brasil
No Brasil, o dano processual em decorrência da efetivação de medida de urgência injustificada vem disciplinado no art. 302 do CPC/2015 (antigo art. 811 CPC/1973).
Segundo a norma, independentemente da reparação por dano processual, responde a parte pelo prejuízo que a efetivação da tutela de urgência causar à parte adversa quando: (i) a sentença lhe for desfavorável; (ii) não houver a citação em 5 dias do réu em tutela em caráter antecedente, obtida liminarmente; (iii) cessar a eficácia da medida ou (iv) o juiz acolher a alegação de decadência ou prescrição da pretensão do autor.
O STJ vem entendendo, em uma série de precedentes, que basta o dano e a configuração de qualquer das hipóteses do art. 302 do CPC/2015 para que o dever de indenizar se imponha.
A responsabilidade é objetiva e, segundo o Tribunal, não é necessário que o requerido, afetado pelo cumprimento da tutela, requeira expressamente a condenação, nem mesmo que o juiz sobre ela se manifeste na sentença, podendo o prejudicado requerê-la na fase de cumprimento da sentença.
Problemático parece ser, contudo, o fato da Corte não examinar no caso concreto a existência (ou não) de todos os pressupostos indispensáveis à caracterização da responsabilidade objetiva, limitando-se a dizer que a obrigação de indenizar é decorrência ex lege da sentença de improcedência ou de extinção do feito com ou sem resolução de mérito.
Ao dizer que basta o dano, ao lado das hipóteses do art. 302 do CPC/2015, o STJ dá a impressão de que a responsabilidade decorrente da execução de tutela de urgência é uma responsabilidade objetiva na modalidade de risco integral, que impõe o dever de indenizar simplesmente porque há dano.
Entretanto, não custa lembrar que, como o próprio STJ reconhece3, essa é a modalidade mais extremada de responsabilidade objetiva, pois dispensa não apenas a culpa, mas também o nexo causal e as excludentes, se fazendo presente ainda quando haja culpa exclusiva da vítima, fato de terceiro ou caso fortuito e força maior. Por isso, só é prevista em situações excepcionais, como em casos de danos ambientais e nucleares.
O próprio STJ afirmou recentemente no julgamento do REsp. 1.770.124/SP, de relatoria do e. Min. Marco Aurélio Bellizze, analisado pela 3a. Turma em 21/5/2019, que o CPC/2015, seguindo a mesma linha do CPC/1973, adotou a teoria do risco-proveito, pois é risco do requerente da tutela de urgência executar uma medida sabidamente não definitiva.
Ora, se a responsabilidade do art. 302 do CPC/2015 é uma hipótese de responsabilidade fundada no risco, então a consequência lógica é que essa responsabilidade deva se submeter ao regime geral da responsabilidade objetiva, que pressupõe a demonstração do ato lesivo, imputabilidade (a título de risco), dano e nexo causal entre ação lesiva e dano.
E mais: cabe análise das excludentes de responsabilidade, principalmente do fato exclusivo da vítima, mas também da culpa concorrente, no momento da quantificação do dano.
Isso se justifica, porque a responsabilidade objetiva prescinde da análise da culpabilidade do agente lesivo, mas a culpa do lesado precisa ser analisada como fator excludente ou redutor do dever de indenizar, como acertadamente fazem os alemães.
A ideia - bastante difundida por aqui - de que a responsabilidade do art. 302 do CPC/2015 teria natureza processual e não de direito material parece merecer aprofundada reflexão, pois muitos são os autores que afirmam tratar-se no caso de uma responsabilidade aquiliana latu sensu, na modalidade objetiva4.
A análise da contribuição do lesado para o evento lesivo talvez evitasse situações injustas nas quais a parte afetada pela medida dá causa, através de comportamento antijurídico, a que o requerente pleiteie a medida.
Caso brasileiro
Um bom exemplo fornece o REsp. 1.770.124/SP, onde uma segurada entrou com ação de fazer contra o plano de saúde com pedido de tutela antecipada para a realização de cirurgia bariátrica, injustamente negada pelo plano.
Depois do cumprimento da tutela provisória pelo plano, foi designada audiência de conciliação, oportunidade em que a autora (mal assistida por defensor público!) desistiu da ação diante da suposta perda do objeto, fazendo com que o juiz julgasse extinto o processo sem resolução do mérito.
O plano, então, após o trânsito em julgado da ação, requereu o cumprimento da sentença buscando o pagamento do valor de quase R$ 34 mil reais gastos com a realização da cirurgia.
Em grau de recurso, o STJ reformou as decisões das instâncias inferiores, reconhecendo o direito do plano de ser ressarcido com base no dano sofrido com o cumprimento da cautelar.
Jogou a "culpa" na Defensoria Pública, sugerindo que a paciente movesse ação de responsabilidade civil contra o Estado, condenando-a, dessa forma, a percorrer mais uma via crucis judicial para obter o reconhecimento de seu direito.
Mas, no frigir dos ovos, a paciente acabou pagando pela cirurgia.
Se tivesse analisado os requisitos da responsabilidade objetiva geral, teria concluído que fora a conduta antijurídica do requerido, de descumprimento contratual, o fato exclusivo que motivara o pedido de tutela de urgência, razão pela qual não poderia se beneficiar do instituto previsto no art. 302 do CPC/2015.
A rigor, em situações como essas tem-se o que a doutrina alemã denomina de "abuso de direito institucional", que se configura quando a aplicação de uma norma ou instituto jurídico conduz, no caso concreto, a um resultado inconciliável com o mandamento da boa-fé objetiva, fazendo-se necessária a correção desse resultado, como expliquei em outra ocasião5.
O princípio da boa-fé objetiva restringe não apenas direitos subjetivos, mas também institutos e normas jurídicas. Nesse caso, tem-se que as consequências jurídicas resultantes de um instituto ou de uma norma jurídica, em determinadas circunstâncias, precisam recuar quando elas conduzem a um resultado simplesmente insuportável face à boa-fé6.
Aqui vale a máxima da boa-fé objetiva: equity must come with clean hands (a justiça precisa vir de mãos limpas).
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1 Nesse sentido: HARTMANN, Peter. In: Zivilprozessordnung. Adolf Baumach, Wolfgang Lauterbach, Jan Albers e Peter Hartmann. 60 ed. München: Beck, 2002, § 945, Rn. 5, 6 e 7, p. 2419-2420. O § 945 diz: "Se a ordem de um arresto ou de uma medida de urgência se revelar desde o início como injustificada ou se a medida decretada for revogada por força dos § 926, inc. 2 ou § 942, inc. 3, a parte que efetivou a medida é obrigada a indenizar o dano surgido para a contraparte em decorrência da execução da medida ordenada ou de garantia que ela tenha prestado para afastar a execução ou para efetivar a revogação da medida.". No original: "Erweist sich die Anordnung eines Arrestes oder einer einstwilligen Verfügung als von Anfang an ungerechtfertift oder wird die angeordnete Massregel auf Grund des § 926 Abs. 2 oder des § 942 Abs. 3 aufgehoben, so ist die Partei, welche die Anordnung erwirkt hat, verpflichtet, dem Gegner den Schaden zu ersetzen, der ihm aus der Vollziehung der angeordneten Massregel oder dadurch entsteht, dass er Sicherheit leistet, um die Vollziehung abzuwenden oder die Aufhebung der Massregel zu erwirken".
2 Tradução livre: "Ein mitwirkendes Verschulden des Antragsgegners (§ 254 BGB) ist im Rahmen des Schadensersatzanspruchs aus § 945 ZPO zu berücksichtigen... Eine Minderung oder ein Ausschluss des Schadensersatzanspruchs kommt in Betracht, wenn ein schuldhaftes Verhalten des Antragsgegners dem Antragsteller Anlass zur Beantragung und Zustellung der einstweiligen Verfügung gegeben hat... oder wenn der Antragsgegner nach Zustellung der einstweiligen Verfügung gegen seine Obliegenheit zur Abwendung oder Minderung des Schadens verstoßen hat..."
3 STJ, REsp. 1.373.788/SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 3a. Turma, j. 6/5/2014, DJe 20.05.2015, no qual se afirmou que: "A teoria do risco integral constitui uma modalidade extremada da teoria do risco em que o nexo causal é fortalecido de modo a não ser rompido pelo implemento das causas que normalmente o abalariam (v.g. culpa da vítima; fato de terceiro, força maior). Essa modalidade é excepcional, sendo fundamento para hipóteses legais em que o risco ensejado pela atividade econômica também é extremado, como ocorre com o dano nuclear (art. 21, XXIII, "c", da CF e lei 6.453/1977). O mesmo ocorre com o dano ambiental (art. 225, caput e § 3º, da CF e art. 14, § 1º, da Lei 6.938/1981), em face da crescente preocupação com o meio ambiente. Nesse mesmo sentido, extrai-se da doutrina que, na responsabilidade civil pelo dano ambiental, não são aceitas as excludentes de fato de terceiro, de culpa da vítima, de caso fortuito ou de força maior". Na doutrina, confira-se, dentre outros: CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 144 s, 154 s.
4 Dentre outros: VOLLKOMMER, Max. In: Zöllner Zivilprozessordnung. Reinhold Geimer, Reinhard Greger, Peter Gummer, Kurt Herget, Peter Philippi, Kurt Stöber e Max Vollkommer. 22. ed. Köln: Otto Schmidt, 2001, § 945 Rn. 13, p. 2335 e HARTMANN, Peter. In: Zivilprozessordnung. Adolf Baumbach, Wolfgang Lauterbach, Jan Albers e Peter Hartmann. 60. ed. München: Beck, 2002, § 945 Rn. 1, p. 2419.
5 Sobre o tema confira-se: NUNES FRITZ, Karina. Boa-fé objetiva na fase pré-contratual - a responsabilidade pré-contratual por ruptura das negociações. Curitiba: Juruá, 2008, p. 164-166.
6 NUNES FRITZ, Karina. Op. cit., p. 164 s.