Neta não pode decorar o túmulo do avô contra a vontade da tia
terça-feira, 18 de junho de 2019
Atualizado às 07:57
Recentemente, a Corte superior alemã, Bundesgerichtshof (BGH), decidiu uma bizarra briga de família: tia e sobrinha foram parar na Justiça por conta das "decorações" que a neta colocava no túmulo do avô.
O caso
O falecido estava sepultado em um belo campo verde, embaixo de uma árvore. O local fora escolhido de acordo com a vontade do falecido, que ainda em vida manifestou o desejo de ser enterrado em uma área verde, longe dos mármores, granitos e demais elementos artificiais, comumente encontrados nos cemitérios tradicionais. Por isso, sua filha (tia da neta) escolhera um cemitério verde para sepultar os pais.
Segundo o regulamento do cemitério, era proibida a decoração e colocação de objetos ao redor dos jazigos a fim de manter uma composição uniforme dos túmulos. Só era permitida a colocação de flores naturais em um local apropriado, construído próximo ao túmulo. Uma placa na entrada do local alertava familiares e visitantes para essa proibição.
Não obstante o impedimento, a neta do falecido colocava com frequência vasos de plantas, rosas de latão e flores artificiais fora do local destinado a esse tipo de ornamentação. Além dos arbustos artificiais, ela chegou a depositar no local, em diversas oportunidades, corações de madeira, vasos de cerâmicas, estrela de natal, lanternas e anjos decorativos, os quais, entretanto, foram retirados pela tia, provocando desentendimento entre as duas.
Sem chegar a um consenso, a neta fez uma queixa-crime contra a tia por furto. Esta, por meio de advogado, notificou a sobrinha para que retirasse todos os objetos por ela colocados no cemitério e se abstivesse de decorar de tal forma o jazigo de seu pai, solicitando ainda o pagamento dos custos dispendidos com o causídico.
Em seguida, moveu com mesmo intento uma ação judicial contra a sobrinha, a qual foi julgada improcedente em primeira instância. Em grau de recurso, o Landgericht de Darmstadt condenou a neta a se abster de colocar quaisquer objetos não autorizados pelo regulamento do cemitério e pelas determinações do Município, bem como a pagar os custos extrajudiciais com advogado estimados em 334,75 euros, suportados pela tia.
A decisão do BGH: tia tem direito de cuidado póstumo
A briga foi parar no Bundesgerichtshof, a corte infraconstitucional alemã, que denegou o recurso interposto pela neta contra a decisão do Tribunal de Darmstadt. Trata-se do processo BGH VI ZR 272/18, julgado em 26/2/2019.
Para o BGH, com a colocação indevida de objetos no tumulo do avô, a neta violou o direito póstumo de cuidado (Totenfürsorgerecht) da tia, protegido pelo § 823, inc. 1 do BGB, segundo o qual todo aquele que, dolosa ou culposamente, violar ilicitamente a vida, o corpo, a saúde, liberdade, a propriedade ou um outro direito de outrem, fica obrigado a ressarcir o dano.
O dispositivo consagra o ato ilícito (unerlaubte Handlung) no BGB, causa da responsabilidade extracontratual. A norma é frequentemente criticada pela doutrina brasileira por enumerar - em numerus clausus - os bens jurídicos tutelados, mas a verdade é que se trata de uma das três "pequenas" cláusulas gerais que forma a base do sistema de responsabilidade civil alemão.
Em sua literalidade, não há dúvidas de que a norma possui elasticidade semântica para ser interpretada como uma ampla cláusula geral de ato ilícito, aos moldes do modelo francês e brasileiro, que nele se inspirou. Mas essa nunca foi a intenção do legislador alemão e nem do aplicador do direito, que lá subsume apenas a ofensa a direitos absolutos.
Por isso, a jurisprudência alemã qualifica o chamado direito póstumo de cuidado como uma espécie de direito absoluto, deduzindo-o a partir do conceito de "outros direitos", previsto na norma para permitir a tutela de outros direitos absolutos não previstos expressamente pelo legislador.
Consequentemente, o BGH reconheceu ter a tia uma pretensão de cunho indenizatório e proibitório contra a sobrinha, deduzida do § 823 I c/c § 1004, inc. 1, frase 2 do BGB, que obriga esta a abster-se de colocar objetos ao redor do túmulo e flores artificiais fora da floreira destinada às flores naturais.
Segundo a Corte de Karlsruhe, o direito de cuidado póstumo inclui, dentre outros, o direito de definir o funeral, a construção e aparência do túmulo do falecido, além de conter o poder de manter e conservar sua aparência de acordo com a vontade do de cujus. Diz a ementa:
"O direito póstumo de cuidado inclui, dentre outros, o direito de definir o funeral (de acordo com a decisão do BGH, de 26.11.2015, do III ZB 62/14, publicada em FamRZ 2016, 301, Rn. 12; e decisão de 26.02.1992, do XII ZR 58/91, publicada em NJW-RR 1992, 834, II 1, juris Rn. 9). Isso inclui a determinação sobre a configuração e aparência de um tumulo. O direito póstumo de cuidado compreende, além disso, a autorização para manter e conservar sua aparência externa.
O direito póstumo de cuidado é um outro direito, nos termos do § 823, inc. 1 BGB, que, em caso de violação, pode fundamentar pretensões ressarcitórias, bem como pretensões de remoção e abstenção de interferência, nos termos do § 1004 BGB."
Direito de cuidado póstumo
O princípio determinante do direito de cuidado post mortem é a vontade do falecido. Esse pode, diz o Tribunal, determinar não apenas o modo e local de seu sepultamento, bem como escolher a pessoa a quem confiará a defesa de seus interesses após a morte.
O escolhido pelo falecido está legitimado a realizar sua vontade mesmo contra a vontade dos (demais) familiares. E, diante da impossibilidade de se determinar a vontade do de cujus, pode o titular do direito de cuidado póstumo decidir sozinho sobre todos esses aspectos. Diz o BGH:
"O princípio dominante do direito póstumo de cuidado é a decisiva vontade do falecido (cf. BGH, julgado em 26 de fevereiro de 1992 - XII ZR 58/91, NJW-RR 1992, 834, em II 1, juris Rn. 9). Este pode determinar não apenas o modo do seu funeral e o local da última morada, como também a pessoa a quem ele vai encarregar a defesa desse interesse... O encarregado pelo falecido está legitimado a executar a vontade do falecido, em caso de necessidade mesmo contra a vontade dos (demais) familiares... Se e enquanto a vontade do falecido não for perceptível, o titular do direito póstumo de cuidado pode decidir sobre a forma do enterro e escolher o local da última morada".
O Tribunal salientou ainda que para a perquirição da vontade do falecido não é necessária uma declaração de vontade expressa, manifestada, por exemplo, em testamento ou qualquer outra disposição de vontade, sendo suficiente que a mesma resulte, com segurança, das circunstâncias.
E o Tribunal a quo comprovou que a tia, filha do falecido, havia sido designada pelos pais para escolher e cuidar do túmulo após a morte dos genitores. Na instância probatória também restou comprovado que a neta alterou frequentemente a aparência do jazigo com a colocação arbitrária de objetos, em desacordo com a vontade do falecido, que desejava repousar cercado pela natureza, longe de elementos artificiais.
Diante desse contexto fático, o BGH concluiu que a tia, enquanto titular do direito póstumo de cuidado, tem o poder jurídico de fazer respeitar a vontade do falecido e a sua própria, impedindo a decoração do túmulo pela sobrinha.