Federalismo e Conselho Nacional de Justiça
quarta-feira, 24 de abril de 2019
Atualizado às 08:45
Rafael de Lazari
A Constituição de 1988, seguindo tendência federalista republicana iniciada oficialmente em 1891, forneceu ao modelo estatal pátrio as premissas de uma desconcentração político-financeira-administrativa alinhada à contemporaneidade constitucionalista institucional. Seja observando a organização político-administrativa brasileira - que define, dentre outros, os bens, competências, e caracteres genuínos da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios (que não são entes federativos, não custa lembrar), e dos Municípios (arts. 18 a 33) -, seja analisando a possibilidade de intervenção - da União nos Estados, Distrito Federal e nos Municípios situados em Territórios, e dos Estados nos municípios que lhes são vinculados (arts. 34 a 36) -, seja analisando o sistema remuneratório dos servidores estatais - feito em escala vinculatória entre todos os integrantes dos múltiplos entes federativos (art. 37, XI) -, seja vinculando explícita e de maneira prolixa as finanças públicas e a repartição de receitas tributárias - mediante repasses (arts. 145 a 169) -, seja atribuindo competência legislativa plena para Constituições Estaduais e Leis Orgânicas Distrital e Estadual, dentre outros, o fato é que a Constituição Federal tenta redesenhar os contornos do federalismo pátrio, com maior autonomia conferida aos Estados, e, sobretudo, aos Municípios.
Se é certo que este fenômeno não tenha logrado o êxito pleno pretendido, com a discrepância entre Estados economicamente fortes e outros completamente dependentes da União, e com a existência de municípios que dependem dos repasses da União e dos Estados para arcarem com suas despesas enquanto outros se tornaram polos econômicos diferenciados em razão de sua posição geográfica privilegiada ou de políticas econômicas a longo prazo edificadas, não é esse o tema central das discussões que aqui se propõe (muito embora o debate seja claramente possível). O grande problema aqui abordado, isso sim, é que o Poder Judiciário não acompanhou este movimento fragmentário e se mantém como claro exemplo estrutural do que um dia foi o Estado Unitário, é dizer, com a nítida centralização de suas políticas e órgãos, nada obstante a interiorização da Justiça - notadamente a Federal - e sua itinerância (parágrafo sétimo, do art. 125, CF, por exemplo), iniciadas em 1988.
Neste diapasão, com base em análise do Texto Constitucional, enquanto os Poderes Executivo e Legislativo claramente tratam de todos os entes da federação, o Poder Judiciário estrutura seu organograma não por ente federativo, mas de acordo com os interesses que serão postulados e com os agentes que postularão em juízo.
É óbvio que não se almeja, aqui, estabelecer diretrizes sobre como poderia o Judiciário integrar-se melhor - gradativamente, é óbvio - ao federalismo cooperativo praticado por seus congêneres Legislativo e Executivo. Apesar da necessidade urgente de uma discussão neste sentido, o pouco espaço de um artigo de opinião serve, no máximo, para alertar a comunidade jurídica sobre o problema ou lançar dúvidas/fagulhas na mente do leitor.
O que se almeja, isso sim, é chamar a atenção para o fato de que o Conselho Nacional de Justiça, órgão não jurisdicional integrante do Poder Judiciário, consegue realizar esta cooperação federalista, a despeito de suas competências serem restritas ao controle administrativo e financeiro da função julgadora. Além dos programas de filantropia estatal (como o "Começar de Novo" ou o "Pai Presente"), deve-se prestar atenção às resoluções emitidas pelo CNJ, que muitas vezes acabam por transpassar o maciço Judiciário e fomentam o diálogo com os demais Poderes da República e com todos os entes da federação (até mesmo aquele que não possui Poder Judiciário, como é o caso dos municípios). Como primeiro exemplo, se pode elencar a Resolução nº 104, de 6 de abril de 2010, que dispõe sobre medidas administrativas para a segurança e a criação do Fundo Nacional de Segurança. Tal Resolução, dentre outras questões, reconhece o emergir súbito de uma criminalidade "diferenciada", que deixa de respeitar as autoridades julgadoras, e, como se não bastasse, passa a amedrontá-las com o explícito objetivo de assegurar a impunidade de seus delitos. Neste sentido, tal resolução preconiza o reforço da segurança de fóruns, o fornecimento de veículos e equipamentos de segurança a magistrados (notadamente os da área criminal), o treinamento de juízes para situações de risco, dentre outros.
Noutros exemplos, tem-se a resolução 156, de 8 de agosto de 2012, que proíbe a designação de função de confiança ou a nomeação para cargo em comissão de pessoa que tenha praticado atos previstos como causa de inelegibilidade na legislação eleitoral; a resolução 154, de 13 de julho de 2012, que define a política institucional do Poder Judiciário na utilização dos recursos oriundos da aplicação de pena de prestação pecuniária (valores que, quando não destinados à vítima ou seus dependentes, irão para entidade pública ou privada de caráter social previamente conveniada, ou para atividades de caráter essencial à segurança pública, à saúde ou à educação); a resolução 148, de 16 de abril de 2012, que dispõe sobre a prestação de serviços permanentes de segurança por bombeiros e policiais militares no âmbito do Poder Judiciário; a resolução 251, de 4 de setembro de 2018, que regulamenta o banco de dados de mandados de prisão (em consonância com a Lei nº 12.403/2011, popularmente conhecida por "Nova Lei de Prisões", que acresceu o art. 289-A ao Código de Processo Penal); e a resolução 133, de 21 de junho de 2011, que dispõe sobre a simetria constitucional entre magistrados e membros do Ministério Público.
Não adentrando o mérito acerca de exceder ou não o Conselho Nacional de Justiça sua competência constitucional, é fato que representam tais comandos normativos uma atividade dialógica do CNJ com outros setores da sociedade e, principalmente, com outros Poderes, algo que o Judiciário por vezes pareceu tão distante de levar a efeito. Ademais, muitas destas questões envolvem políticas administrativas que devem emanar de todos os membros da federação, como na proteção à segurança dos magistrados que atuam no combate ao crime, por exemplo.
Tais constatações somente reforçam o argumento de que, graças à pluralidade de agentes que o compõem, aos organismos que os indicam, às competências constitucionais que lhe são consagradas, e às matérias que vêm trabalhando, representa o Conselho Nacional de Justiça a materialização da "sociedade aberta dos intérpretes da Constituição" de que trata Peter Häberle devido a essa sua atividade dialógica, a qual acaba por irradiar, consequentemente, para um federalismo cooperativo, desta vez com a participação - ainda incipiente, é verdade - do Poder Judiciário.