O Judiciário como guardião de promessas
quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019
Atualizado às 08:12
Daniel Barile da Silveira
A concepção que formamos no estágio civilizatório atual sobre o Poder Judiciário nada mais é do que uma consequência de promessas não cumpridas do papel desempenhado até então pelo Legislativo e Executivo. Se adotarmos o paradigma federalista em se conceber os 3 Poderes como modelos racionais (ou tipos-ideais, na linguagem weberiana), é possível perceber que os modelos estatais, aliados às concepções de Constituição, andam em consonância com a predominância de um ou outro daqueles poderes constituídos, sendo que a ascensão do Judiciário como "guardião das promessas não cumpridas" foi um resultado desta conjuntura de falha ou descrédito nos dois outros Poderes.
Os primeiros estágios do constitucionalismo revelam o formato de Estado constituído por nossos antecessores, representado pela ideia de Estado de Direito (RechtStaat). Nesta concepção, buscava-se elidir com uma visão arcaica do antigo regime de que os privilégios de uma Idade Média estamental, marcada pelo direito divino dos reis e pelo uso de prerrogativas de nascimento, produziriam uma situação degeneradora de desigualdades e de redução da liberdade individual. Nesse contexto, a tradição serviria como elemento consolidante do enrijecimento das camadas sociais, reforçando a condição das pessoas a um laço imemorável reproduzido no tempo. Tal postura atribuiu durante séculos ao Direito um papel de mantenedor e leitimador de vantagens pessoais a estratos minoritários, relegando uma massa de desvalidos a uma condição de subserviência ao império da tradição.
Certamente que, em meio a tal sedimentação da sociedade, a naturalização das posições sociais assumiu um discurso formalmente libertário, na medida em que a filosofia política informadora do constitucionalismo daquela época enveredou por contestar tal condição. Assim, o modelo de Constituição adotado conforma uma visão resultante destes anseios contingenciais, pela qual seria preciso garantir, em normas gerais, universais e abstratas, a liberdade e a igualdade das pessoas.
Tal modelo de igualdade e liberdade, reproduzido em especial pelo contratualismo clássico, legou um conceito jurídico de que se faria necessário atribuir aos indivíduos a necessidade de autoafirmarem-se como livres e iguais perante uma sociedade estagnada em sua própria estratificação. E a justificativa filosófica de tal mudança de postura se mostra a revelar tais direitos como uma ordem de valores que decorre da natureza das coisas, portanto, imutável e eterna, devendo por todos ser obedecida e a todos aplicada universalmente.
Destarte, nesse paradigma constitucional, o centro do sistema residiria no Poder Legislativo, malgrado todos os outros em sua importância. Seria na "racionalidade fria" do legislador que se concentrariam os esforços em maximizar a escrita de direitos a normas previamente pensadas, no sentido de dar garantia e segurança jurídicas aos cidadãos acerca de seus direitos e obrigações. Logo, a produção legislativa converteria as atenções do sistema político, posto que a racionalidade nela presente, quanto maior, mais garantiria de que os ideais de liberdade e igualdade estariam sendo ali concretizados.
De uma mesma maneira, a simples forma da lei vigente garantiria que sua observância desencadeasse como consequência lógica a realização desses princípios básicos de navegação social. Note-se que Montesquieu já acenava o conceito de liberdade como um princípio corolário da lei, fruto de sua permissão. Assim, dizia que "liberdade é o direito de fazer tudo que as leis permitem; se um cidadão pudesse fazer tudo o que elas proíbem, não teria mais liberdade, porque os outros teriam também tal poder" (2000, v. 1, p. 200)1. Esta visão posteriormente seria reforçada por John Locke e uma série de pensadores liberais, tal qual John Stuart Mill, no sentido de asseverar que liberdade é a possibilidade de fazer tudo aquilo que um mínimo de leis não proíba.
No Estado de Direito, entendido aqui, como dito, como um primeiro paradigma de organização do sistema jurídico moderno, a gravitação de todo sistema residiria na noção de supremacia do Parlamento, órgão produtor de toda a matéria legal instituidora da ordem coletiva. Assim, deveria o governo incumbir-se do fiel comprimento de suas disposições, no sentido de poder, a mesmo tempo, retribuir o respeito aos desejos da vontade do povo, como bem também fazer zelar pela primazia do ordenamento jurídico em prol de interesses egoísticos, no imediato repúdio a ordens autocráticas e gerenciadoras de vontades tirânicas do antigo regime.
Por fim, o papel do Poder Judiciário é de ser a mera "boca que pronuncia as palavras da lei" (Le juge est "la bouche qui prononce les paroles de la loi", como diria Montesquieu), à pena de, se assim não o fizesse, o juiz sofreria o risco de tornar-se legislador e constituir-se como um desertor das finalidades sociais a que a norma se destina. A própria interpretação do direito se torna um procedimento mecânico, realizado por exegetas e não se abrindo espaço ao alvitre de magistrados, dadas suas concepções políticas ou morais. Neste paradigma, portanto, o papel do Poder Judiciário estaria minimizado pela importância dada à legislação como ordenadora da realidade e produtora de todo direito existente. Bastaria que as leis fossem claras e evidentes ao suficiente para assim facilitar o pronunciamento do direito ao caso concreto.
Já um segundo paradigma marcante enquanto modelo de estruturação do Estado em termos da regulação da separação de poderes é o engendrado pelo Estado do Bem-Estar (Welfare State), por muitos denominado "Estado-Assistencialista", ou L'État Providence, na linguagem dos franceses.
Nesta nova concepção engendrada, não se tornaria suficiente para uma sociedade distribuída em classes a afirmação de liberdade e igualdade como substratos de um rol de direitos mínimos do cidadão, dispostos na lei. Ao revés, afirmar direitos como estes, na perspectiva de que todos seriam livres parar alcançar suas potencialidades e perseguir seus objetivos mais ocultos em uma situação de pé de igualdade, fazia do discurso filosófico um plano de completo desencontro com a realidade apresentada a cada um dos indivíduos. Careceria da igualdade de oportunidades para atingir tais objetivos, dada a composição de forças sociais presentes em um ambiente de capitalismo industrial recém inaugurado e de histórias de vida completamente adversas, agora reconhecidas pelo Estado.
Percebe-se, então, que naquele antigo modelo de organização social, desde então combatido, separavam-se as pessoas em categorias de rendas e sedimentava um padrão de desigualdade que, embora não mais explicado por privilégios de sangue, reproduzia-se pela capacidade das pessoas possuírem bens e serviços à sua disposição, em maior ou menor proporção.
De tal maneira, é no paradigma do Estado de Bem-Estar que o centro gravitacional dos Poderes se encapsula no Poder Executivo, responsável por ser o executor destas políticas assistencialistas. Nestes moldes, há uma diferenciação de funções, potencializada por uma condição histórico-cultural, de reorganização das estruturas estatais, ao ponto do Legislativo assumir a função de produzir normas com o fulcro de serem efetivamente executadas pelo Governo. Tal lógica faz com a racionalidade legislativa migre do simples pronunciamento de direitos negativos para uma racionalidade de meios e fins no que corresponde às possibilidades do Poder Executivo dar curso às normas por aquele produzidas. É o nascimento dos direitos positivos, expressos em obrigações estatais, executivas, sobretudo.
Com o crescimento exponencial das atividades promotoras do Estado em face da distribuição de benesses públicas em formato de programas assistenciais, o paradigma do Estado Social, além de promover a sobrecarga da função Executiva, permite que o controle das expectativas de ações estatais chegue ao limite do risco insuportável, tornando as funções executórias sobrecarregadas. Neste ponto, oportuno salientar que o estabelecimento de um "Estado administrativo" é fator que sucede a um "inchaço" legislativo, justamente engendrado para poder suprir as demandas sociais infindáveis e exponencialmente crescentes a um Estado que a todos protege. O Estado se torna ineficiente, lento e burocratizado.
Nesta circunstância histórica, o papel dos juízes se transforma em um agente que deixa de pronunciar candidamente as palavras da lei e busca então a acomodar sua atividade ao cerne da legislação existente. Com a descrição aberta das leis, que no mais das vezes se propugnam a descrever finalidades públicas ou princípios gerais, abre-se um fértil terreno para um maior protagonismo do Poder Judiciário em dar densidade a estas fórmulas gerais. O legalismo e a segurança jurídica são substituídos pelo ativismo e a discricionariedade judiciais. Abre-se espaço, então, para a formação de uma remodelada função judicial, oportuna ao desenvolvimento do chamado "terceiro gigante" no dizer de Alexander Hamilton, desperto de uma posição menos expressiva, tal qual concebida pela fórmula original montesquieuana.
Em nossa história do constitucionalismo parcamente aqui relembrada, é no Estado Democrático de Direito que o Poder Judiciário toma a frente como elemento central da regulagem do sistema de freios e contrapesos, imerso na problemática da separação de poderes, chave central do controle do Estado e de respeito à supremacia da Constituição.
Por óbvio, as promessas efetuadas pelo Estado Social tornaram-se precárias frente ao nascimento de uma cidadania participativa e na proteção do direito das minorias, quase sempre sufocadas por um Estado gigantesco que sempre pensava no todo e relegava a inclusão de minorias em um sistema de distribuição de direitos massificado, sem o atendimento das idiossincrasias e da pluralidade de uma sociedade complexa, já do século XX e em curso em nossos dias atuais. Neste modelo, igualdade e liberdade não estão mais assentadas em uma hipostasia de direitos promocionais, mas se refletem como um campo complexo de tensões que proporciona a análise de questões particularizadas, situações únicas, típicas do fragmentarismo que a modernidade inaugura. Surgem novos direitos fundamentais e reconhecem-se os grupos que compõem essa sociedade plural atual.
Destarte, igualdade e liberdade são entendidas como uma comunidade de princípios que a todo momento se chocam e tem sua conformação dada pelo debate, pelas reivindicações e pelos usos estratégicos dos poderes para a defesa de direitos essencialmente mutáveis, flexíveis às oscilações contingenciais e a demandas de grupos pulverizados no círculo social. Essa relação, naturalmente conflituosa, permite que a plêiade de direitos lançada nos textos seja objeto de intensa discussão, fato que impulsiona as demandas judiciais e incrementa a participação deste Poder com um elemento forte na relação do processo de separação de poderes, já que é intérprete decisivo da lei e das políticas estatais.
Ao Judiciário, inclusive, possibilitou-se um crescimento sem precedentes que, sobretudo, coloca-o como fiscal do próprio legislador, quase como um "legislador implícito". Como aponta Luiz Werneck Vianna, há uma mudança estrutural na Justiça, porém não linear, "[...] de transformação universal do Poder Judiciário em agência de controle da vontade do soberano, permitindo-lhe invocar o justo contra a lei" (1997, p. 21)2. Antoine Garapon denomina essa assunção de poderes do Judiciário como um evento contemporâneo, entendido como um "guardião de promessas", tanto para o sujeito como para a comunidade política, "um último refúgio de um ideal democrático desencantado", um substituto clerical praticamente, como assevera - quase uma "Justiça de salvação" (2001, p. 26)3. Em Dworkin, os magistrados como representantes simbólicos de uma intelligentzia clássica nas instituições, reaparecem no cenário dos três poderes como personagens míticos como um Hércules, capazes de desbravar os horizontes de uma legislação fria e produzir decisões exemplares a uma sociedade complexa, cada vez mais carente dos valores da Justiça e de segurança jurídica.
Assim, a presença do Judiciário como um "terceiro gigante" acaba se mostrando como um reflexo dos modelos anteriores, construído a partir das falhas e das promessas de salvação erigidos por estruturas que reconheceram, sem sucesso, o protagonismo do Legislativo (no modelo de Estado de Direito) e do Executivo (no modelo do Estado de Bem-Estar Social).
O certo é, independentemente da constatação trazida, surge a pergunta: o que ocorre se o Judiciário não cumpre as promessas que lhe foram incumbidas? Algumas demonstrações deste cenário parecem surgir. Resta-nos acompanhar melhor seus desdobramentos.
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1 MONTESQUIEU. Do espírito das leis. 2 v. São Paulo: Nova Cultural, 2000. (Os Pensadores).
2 VIANNA, Luiz Werneck; CARVALHO, Maria Alice Rezende de; MELO, Manuel Palacios Cunha; BURGOS, Marcelo Baumann. Corpo e alma da magistratura brasileira. 2a edição, Rio de Janeiro, Revan, 1997.
3 GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Rio de Janeiro: Renavan, 2001.