Sobre o direito de ter armas
quarta-feira, 31 de outubro de 2018
Atualizado às 08:06
Emerson Ademir Borges de Oliveira
Ao povo da República dos Estados Unidos da Bruzundanga
A liberdade é o valor mais caro aos países anglo-saxônicos. Com fulcro revolucionário, é a principal bandeira da Constituição dos Estados Unidos da América, capitaneada pela célebre expressão We, the people (Nós, o povo), a fórmula democrática que direcionou a criação de uma União em substituição à Confederação de Estados.
Em nossa Carta, a liberdade também possui valor supremo desde nosso preâmbulo e com maiores homenagens no artigo 5º. A liberdade é um postulado do Estado Liberal, desenvolvido com expressão nas revoluções burguesas do século XVIII enfaticamente como forma de oposição ao regime absolutista, que dirigia a centralização do poder na pessoa do rei (L'état c'est moi, Luís XIV).
Em território norte-americano, a liberdade é um valor enraizado para democratas ou republicanos. Estes a tomam como razão para a defesa pessoal e, indiretamente, de seu país. Assevera-lhe a Emenda II: "Sendo necessária à segurança de um Estado livre a existência de uma milícia bem organizada, o direito do povo de possuir e usar armas não poderá ser impedido".
O Brasil, de inexpressiva beligerância externa, pautou-se por uma limitação rígida ao direito de se ter armas desde a lei 9437/97. Em 2003, promulga-se o Estatuto do Desarmamento (lei 10.826), perquirindo, sem maiores rodeios, a proibição de qualquer povo possuir armas de fogo e munição legalmente.
Um contrassenso. O Brasil é um dos países mais violentos do mundo, em que a utilização ilegal de armamentos contribui para uma taxa de homicídios 30 vezes maior do que a Europa, segundo o Atlas da Violência de 2018, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em 2016, para que se tenha uma ideia, o número de homicídios superou, pela primeira vez, sessenta mil ao ano (65.517 assassinatos). Em síntese, para a ilegalidade pouco importa a proibição armamentista da população. Ao revés, contribui-lhe. Mais especificamente, em 2003, ano do Estatuto, o número de homicídios fora de 39,3 mil. Entre 2003 e 2016, um aumento de 66% no número de assassinatos no país.
Já no país ianque, de acordo com o Centro de Pesquisa para Prevenção de Crimes, o crescimento de 178% no porte de armas conduziu a uma queda de 25% dos crimes violentos no mesmo período, com taxa de homicídio caindo de 5,6 para 4,2 para cada 100 mil habitantes.
A fim de buscar ancoragem popular, fora designado um suposto referendo nos termos do artigo 35 da lei, realizado em outubro de 2005, e que buscava, de antemão, proibir a comercialização de armas de fogo e munição, salvo nos casos do artigo 6º da mesma lei. Em 23 de outubro daquele ano, 63% dos brasileiros foram contrários ao desarmamento da população. Decisão, frise-se, inútil, eis que as limitações da lei praticamente inviabilizam o direito a possuir armas.
Vejamos com cuidado. De acordo com o artigo 6º, o porte de armas de fogo é, a princípio, proibido, salvo para as exceções ali delineadas, como membros das Forças Armadas, das Polícias, da Agência Brasileira de Inteligência, de transporte de valores, do Ministério Público, do Poder Judiciário, dentre outros.
Note-se como o próprio artigo acima referido proíbe o porte de armas fora dessas hipóteses. Em sua benesse, o mesmo artigo traz possibilidade, com algumas exigências, aos moradores de zona rural.
Como irrisória mea-culpa, no entanto, o artigo 10 da lei, que detém sua validade pelo referendo de 2005, afirma ser possível que os cidadãos comuns tenham porte de arma de fogo. Dentre os requisitos, vários necessários, diga-se, urge um que torna a possibilidade de porte praticamente inócua: a demonstração de efetiva necessidade para exercício de atividade profissional de risco ou ameaça à integridade física. E o que é pior: caso seja concedida, será com eficácia temporária e territorial limitada. Vale dizer: ainda que o sujeito consiga comprovar a necessidade, o porte terá validade temporal e geográfica restrita.
A filosofia do Estatuto do Desarmamento é clara em sua própria denominação: desarmar a população. Melhor: desarmar as pessoas que queiram possuir legalmente suas armas e munições. Em realidade, fora totalmente direcionado a tal finalidade, a ponto de se poder afirmar que a decisão popular causara espanto no legislador, que não havia preparado a lei para uma negativa no referendo. E os artigos 6º e 10 da lei são a maior prova desse disparate, em completa contraposição ao decidido pela população.
Veja-se: não se pretende neste artigo defender argumentos prol ou contra a liberdade de se possuir armas, que, evidentemente, possui consequências positivas e negativas, mas sim o completo desrespeito pelo referendo popular. Referendo, aliás, que, até o presente, não demonstrou nenhuma razão de existência.
O referendo é uma forma de participação direta da população no processo decisional político, nos termos do artigo 14, II, CF. Trata-se de instrumento de democracia participativa, por meio do qual a inserção do cidadão não se limite ao exercício do sufrágio periódico, mas ocorra uma devolutiva direta entre a decisão e o dono do Poder: o povo.
O referendo é instrumento de rara utilização no Brasil. Nesse aspecto, como aponta José Álvaro Moisés, "se a intenção dos constituintes de 1988 foi a de articular a democracia representativa com as demandas societárias em direção à democracia direta, eles não atingiram inteiramente o seu objetivo". Ainda, de acordo com o supracitado professor, embora novas possibilidades de participação tivessem sido previstas, "o núcleo das questões centrais que definem o sistema político do país como a Constituição e a própria dinâmica da produção do direito pelos representantes eleitos" acabou ficando de fora de tal inclusão1.
Como ressalta o mestre Canotilho, o referendo possui eficácia vinculativa, vale dizer, "significa a obrigatoriedade de os órgãos competentes praticarem actos políticos ou actos político-normativos juridicamente incorporadores do conteúdo das respostas referendarias"2.
É dizer, noutras palavras, que o referendo é soberano. Sua expressão não é mera opinião, mas vinculação do legislador que somente pode ser destituída por outro referendo. No momento em que o legislador direciona a lei para a criação de barreiras à decisão popular fere a soberania do referendo e, consequentemente, a própria Constituição Federal que lhe atribui a consagração da democracia direta.
Reitera-se que, na prática, o intencionado legislador brasileiro inviabilizou o exercício da decisão negativa do povo ao questionamento: "O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?" Frise-se, aliás, que a própria semântica da proposição pretendia induzir o brasileiro a uma resposta positiva, o que não fora suficiente.
Inobstante, o texto legal fora edificado sob o pressuposto de uma proibição que não ocorrera. E assim restou, a despeito da decisão referendaria.
Repita-se: não se trata de discutir sobre as benesses ou malefícios da liberação armamentista, mas, em primeiro lugar, há aqui um claro desrespeito com a decisão em democracia direta e, evidentemente, à própria proteção que a Constituição confere à vontade do dono do Poder.
Que possamos iniciar novos tempos com uma premissa: o político que pretender o respeito do povo, deve, antes de tudo, respeitá-lo em sua soberania.
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2 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7.ed. Coimbra: Almedina, 2007. p.299.