O custeio da previdência
quarta-feira, 24 de outubro de 2018
Atualizado às 08:29
Daniel Barile da Silveira
O texto constitucional estabelece que a Previdência social será organizada em termos de um regime geral, contributivo e de filiação obrigatória (art. 201, CRFB/88). Neste caso, o modelo brasileiro optou por um sistema contributivo em que o regime previdenciário exige a contribuição obrigatória por parte daqueles que se vinculam ao sistema, afastando-se de amostras mais licenciosas em que a contribuição é facultativa ou mesmo dispensada. Esta estrutura de financiamento compulsório permite (ou pelo menos, busca permitir) que o sistema se autoalimente, viabilizando a aposentadoria e que demais benefícios previdenciários sejam concedidos com base no regime de contribuição daqueles que estão na ativa.
No modelo atual, tanto a Previdência Social é financiada através de um sistema de coparticipação entre a iniciativa privada e o Poder Público, a partir de tríplice forma, composta pelo o financiamento dos empregados, dos empregadores e pelo Estado, havendo uma forma solidária de integração. É aquilo que muitos denominam de "princípio solidário" de coparticipação no custeio da Previdência, a partir de um financiamento da sociedade de forma direta e indireta, que junge trabalhadores, empresas e governo em prol de um mesmo objetivo comum1.
O fato é que a Previdência Social é a revelação de um modelo de longa luta dos trabalhadores, como reforço a um mecanismo desigualitário de distribuição de rendas e de benefícios sociais. Uma forma de compensação destas agruras da vida coletiva encontra, assim, respaldo no modelo previdenciário. Neste contexto, ele socializa os riscos e distribui as perdas e ganhos por toda sociedade, na medida em que aqueles que se encontram no mercado do trabalho, ativos, producentes e contribuintes, igualmente financiam aqueles que não conseguem mais ostentar estas qualidades, temporária ou permanentemente.
Uma forma de controle deste risco social (Ulrich Beck) é o maior desafio dos sistemas previdenciários, pelos quais o controle das expectativas das perdas de trabalhadores do mercado ativo deve estar em consonância com os custeios que alimentam o sistema. Em uma realidade pós-moderna em que as pessoas estão mais velhas, há menos pessoas nascentes, menos grupos contributivos, mais longevidade e expectativa de uma vida digna e duradoura, o financiamento da Previdência se torna um problema central do orçamento. Se se somarem a estes fatores as constantes dificuldades de superação atinentes ao volume da carga tributária total da população e de empresas, adicionada a grandes dificuldades de controle dos gastos públicos e de arrecadação sustentável, a preocupação gerencial se multiplica. Certamente, os países emergentes sofrem mais com esta conjuntura, como no caso brasileiro atual, mas nações mais consolidadas economicamente sempre estão a revisitar o tema em busca de soluções mais duradouras para o imbróglio do custeio da previdência.
Devido a esse somatório de dificuldades e ao aumento da possibilidade de crise no sistema, esse modelo em que as pessoas que estão na ativa sustentam os inativos, denominado de "pay as you go" (ou sistema de repartição), sofre constantes abalos em sua credibilidade a longo prazo. Pela lógica, o financiamento de hoje cobre o passivo de gerações passadas. Porém, e se a população inativa crescer, a geração futura cobrirá o passivo de hoje? Estaremos com nosso futuro garantido sustentando este padrão de financiamento da Previdência em que a geração futura paga a conta da passada?
Não é à toa que a ginástica governamental para se poder alinhar este modelo a uma expectativa real de pagamentos futuros acaba virando um dos grandes centros de debate político dos governantes. Um dos caminhos pensados é o da criação de uma "previdência por capitalização" (ou "fully funded"), em que as contribuições advindas do sistema são capitalizados em contas individuais (e não em um regime geral, como no nosso, "unfunded"), podendo os indivíduos sacar os recursos paulatinamente quando da sua aposentadoria ou pensionamento. Servem aqui como poupanças individuais, em que os créditos são capitalizados pelo mercado financeiro privado, gerando a rentabilidade maior ou próxima à inflação, evitando a sua perda real. Em casos explicitamente adotados, como na reforma realizada pelo Chile2 na década de 80, idealizada pelos economistas como a salvaguarda dos problemas do modelo de repartição geral, acabou entrando em colapso 35 anos depois de instituído: aposentadorias menores que o salário mínimo, baixos salários da população (que geram baixas contribuições, posto que cerca de 10% do salário é retido), estabilidade econômica que gera juros assentes e inexpressivos. Além disso, oferta no mercado de investimentos pouco rentáveis e com baixa competitividade, somado ao monopólio de pequenos grupos de administradoras de crédito que sobretaxam os depósitos, além de outros fatores menores, permitiram que os rendimentos dos fundos de previdência fossem mínimos naquele país. Aliado ao baixo grau de fiscalização dos contribuintes, o resultado fora desastroso, levando a população às ruas em 2017 por reformas imediatas nesse sistema descompensado.
Mas o que seria, então, um financiamento justo? Uma resposta como esta é, sem dúvida, um caso à parte. Isto porque justo seria um modelo que atualize e remunere o valor poupado pelo segurado ou um sistema que busque reduzir a desigualdade social em larga escala, distribuindo a riqueza e socializando os riscos? Tal opção passa pela questão ideológica mais fortemente engajada do que um critério técnico inafastável, podendo ambas as soluções serem possíveis, a depender da escolha realizada. Tal tema é, antes de tudo uma escolha política, determinando a forma de financiamento da Previdência. Da mesma forma, o crivo popular determinará se os sistemas podem ter benefício definido ou contribuição definida, ao invés de variável de acordo com a parcela de custeio ofertada. Ou ainda, se o sistema previdenciário deve ter uma justiça atuarial constante, em que o valor contribuído é igual ao futuramente percebido, em cada instante de tempo. Por certo, nenhuma destas escolhas passa despercebida pelo potencial de redistribuição do modelo previdenciário desenvolvido pelo governante e da resposta prolongada no tempo em face das vicissitudes do mercado de trabalho. Ou seja, a escolha de governo é fundamental em todos estes casos, o qual institui e acompanha o gerenciamento do custeio previdenciário, avaliando a viabilidade da política adotada tempos em tempos.
O que se sabe, enfim, é que, em matéria de custeio da previdência, "não existe almoço de graça" ("there ain't no such thing as a free lunch", como ressaltam os americanos, popularizada por Milton Friedman no meio econômico). Independentemente da ideologia adotada no modelo, requererá a participação da população para fazer funcionar esse sistema, seja concentrando seus recursos em arquétipos mais estáticos de distribuição desse custeio, seja dispersando-o a todo o grupo de segurados, considerados na base de uma justiça social mais distributiva.
Por isto, em tempos incertos, em que o cidadão se afasta da política porque rejeita seus pressupostos basilares, ou mesmo repudia seus atores sociais, porque talvez tenha se cansado da estirpe, decidir sobre as políticas públicas se releva de mais suma importância ainda. Escolher bons candidatos, avaliar suas intenções nesta esfera de competências, identificar o modelo previdenciário proposto é o desgaste atual que se tem de enfrentar. Isto porque as escolhas potencialmente mais certas no presente determinarão o futuro de maior segurança, menos oscilações e mais expectativa de vida digna, objetivo maior em nossas vidas. É um investimento político, sem dúvida, que busca trazer um momento futuro, com menos sofrimento e mais satisfação; um dentre os muitos outros fatores que o eleitor e cidadão deve ter em mente quando da escolha de quem tomará as rédeas do país doravante.
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1 Estabelece a Constituição Federal, em seu art. 195: "A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais : I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre: a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício; b) a receita ou o faturamento; c) o lucro; II - do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social de que trata o art. 201".III - sobre a receita de concursos de prognósticos;IV - do importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar". Ao seu turno, a lei nº 8.212/90 reitera os termos constitucionais e adiciona como outras receitas da Seguridade Social: "I - as multas, a atualização monetária e os juros moratórios; II - a remuneração recebida por serviços de arrecadação, fiscalização e cobrança prestados a terceiros; III - as receitas provenientes de prestação de outros serviços e de fornecimento ou arrendamento de bens; IV - as demais receitas patrimoniais, industriais e financeiras; V - as doações, legados, subvenções e outras receitas eventuais; VI - 50% (cinqüenta por cento) dos valores obtidos e aplicados na forma do parágrafo único do art. 243 da Constituição Federal; VII - 40% (quarenta por cento) do resultado dos leilões dos bens apreendidos pelo Departamento da Receita Federal; VIII - outras receitas previstas em legislação específica".
2 Para maiores informações, vide.