Federalismo e gerenciamento de crises constitucionais: intervenção, estado de defesa e estado de sítio
quarta-feira, 22 de agosto de 2018
Atualizado às 07:53
Rafael de Lazari
De fundamental importância para as seguranças jurídica e institucional são os chamados mecanismos constitucionais de gerenciamento de crises. Estamos falando, essencialmente, dos institutos da intervenção Federal e estadual, bem como dos estados de defesa e de sítio, e do uso excepcional das Forças Armadas (a atuação regular das Forças Armadas não faz parte deste sistema, mas apenas seu acionamento para situações mais graves). Tratam-se de mecanismos que, espera-se, não precisem ser ativados, mas, caso se façam necessários, as ordens jurídica e institucional ficam regulamente mantidas com a regulamentação prévia para sua utilização. Aqui se vai falar, especificamente, da relação entre tais institutos e o federalismo, muito embora se deixe para outro texto a questão do uso das Forças Armadas (dada a amplitude da matéria). Nas breves linhas que seguem veremos, portanto, intervenção, estado de defesa e estado de sítio.
I. Estado de defesa e estado de sítio
O Título V da Constituição Federal inaugura parte peculiar e de fundamental importância para a compreensão do ordenamento constitucional como sinônimo de preservação da ordem vigente. É preciso lembrar, primariamente, que a regra e o objetivo maior do constituinte é que a Lei Fundamental pátria tenha vigência em um cenário de absoluta estabilidade institucional, com respeito aos direitos e às instituições. Excepcionalmente, contudo, contextos de instabilidade podem se materializar, e para provar a força normativa da Constituição e a ideia de cumprimento de seus preceitos, ainda assim haverá a aplicação de seus dispositivos.
Deste modo, mostra-se forçoso reconhecer, em primeira análise, que a Constituição Federal foi feita para "valer" tanto em um cenário de estabilidade como em um contexto de instabilidade institucional. Casuísticas diferenciadas à parte, haverá entre elas um denominador comum: a aplicação da mesma Constituição.
A parte da Constituição que trata da "Defesa do Estado e das Instituições Democráticas" (Título V), mais especificamente em seu Capítulo I ("Do Estado de Defesa e do Estado de Sítio"), traz aquilo que a doutrina costuma denominar "sistema constitucional de crises". Nada obstante variações teleológicas óbvias, a raiz de ambas as providências, para além da condição de integrantes de um sistema de gerenciamento de crises constitucionais, é a necessidade de medida jurídico-política que devolva à federação brasileira o mesmo cenário pacífico vigente antes do descontrole institucional, ou, não sendo mais isso possível, que minimize danos irremediáveis a fim de que suas consequências não inviabilizem a continuidade republicana, federativa e democrática.
Com efeito, são dois os sistemas comumente utilizados para trabalhar os casos de "crise constitucional", a saber, o sistema flexível e o sistema rígido. No sistema flexível, a ordem jurídica não delimita previamente as medidas que podem ser tomadas em caso de crise, de modo que seu estabelecimento pode se dar de acordo com a necessidade concreta. Como exemplo, se pode mencionar a "Lei Marcial", na qual são determinadas as medidas que serão tomadas para o caso de afronta à ordem constitucional (países como Inglaterra e Estados Unidos adotam este sistema de "Lei Marcial"). Como ponto favorável, o sistema flexível aponta para a possibilidade de maleabilidade das medidas, tomadas com maior ou menor rigor a depender do nível de fervor institucional; como pontos desfavoráveis, elenca-se a insegurança jurídica e os riscos de eventuais excessos do aplicador e do executor das medidas.
Já no sistema rígido, as medidas que podem ser tomadas em caso de crise são previamente delimitadas, de maneira taxativa. Como ponto favorável, o sistema rígido preserva a segurança jurídica e a unicidade constitucional para contextos diferenciados dentro de um mesmo Estado (o da estabilidade e o da instabilidade); como ponto desfavorável tem-se a imprevisibilidade de situações abarcadas pelas medidas previstas, de modo que tentar "regular o caos" é uma inglória tarefa.
A doutrina tradicional aponta para a adoção do sistema rígido pelo ordenamento constitucional de 1988. Não se desconsidera o acerto de tal entendimento, nitidamente majoritário, pelo simples contexto de se prever condutas na Constituição Federal para as situações que ensejam o estado de defesa e o estado de sítio. Entende-se aqui, contudo, pela adoção do sistema rígido mitigado no ordenamento pátrio, tendo em vista maior abertura das medidas para o caso de decretação de estado de sítio com base em declaração de estado de guerra ou resposta à ameaça armada estrangeira - art. 137, II (para todas as outras hipóteses há maior pormenorização das medidas a serem tomadas).
II. Intervenção
Dentro da organização do Estado, o estudo dos mecanismos de intervenção - arts. 34 a 36, CF - tem elevada importância, pois implica uma contrariedade temporária de todas as lógicas federativas. Isto porque, em regra, a União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal (tão menos em Municípios situados em Territórios), bem como os Estados não intervirão nos municípios. É, pois, preciso observar a autonomia de cada ente federativo, como manifesto lógico da estrutura repartida de poder que qualifica esta forma de Estado. A regra é a não intervenção. Pode-se dizer que o constituinte consagra um instituto, mas deseja que ele não seja utilizado.
Todavia, em algumas hipóteses, excepcionalíssimas e temporárias, é possível a intervenção, que consiste em ato eminentemente político com a finalidade de restabelecer no ente que a sofre os valores federativos pátrios. Por ser medida excepcional (e sabendo que exceções devem ser interpretadas restritivamente), perfilha-se ao entendimento segundo o qual as hipóteses de intervenção são taxativas.
Ademais, numa imperiosa consideração a ser feita, é preciso lembrar que a intervenção se dá sempre do "ente maior" no "ente menor". Não se utiliza as expressões "maior" e "menor" com o sentido de "poder", por serem absolutamente autônomos todos os entes federativos. Diz-se, isso sim, no sentido de "abrangência": a União intervém nos Estados que a formam; cada Estado intervém nos municípios que o formam; a União intervém nos Municípios se estes estiverem situados em Territórios federais (pois, como o próprio nome já indica, eventual Território a ser instituído ficará sob a tutela da União).
III. Breve conclusão
Nos casos aqui citados, mostra-se, de certa forma, a força do modelo federativo pátrio: seja para confirmá-lo (afinal, as exceções para instabilidades servem para confirmar as regras para estabilidades), seja para reafirmá-lo caso um "lapso memorial" desencadeie seu esquecimento (não custa lembrar que, pelo art. 1º, caput, CF, a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel de seus entes, de modo que caso um Estado ou Município tencione quebrar esse princípio de indissolubilidade - ou caso precise ser protegido por este princípio -, os mecanismos de intervenção, estado de defesa e estado de sítio estarão disponíveis para acionamento).
Como se não bastasse, os institutos aqui vistos servem para confirmar o modelo presidencialista adotado no país, concentrando o poder nas mãos do chefe do Executivo: a maioria das hipóteses de intervenção passa pelo crivo discricionário do chefe do Executivo; as hipóteses de estado de defesa e de sítio passam pelo chefe do Executivo (com controle do Poder Legislativo).
Deste modo, em meio a um amplo espectro de possíveis críticas quanto ao modelo federalista vigente no país, elogios merecem ser tecidos à disposição de mecanismos constitucionais de gerenciamento de crises, cujo objetivo, acima de tudo, é assegurar a iquebrantabilidade de um modelo - federativo, republicano e democrático - cuidadosamente esculpido e pormenorizado.