Federalismo e Estados: criação, fusão, extinção e desmembramento
quarta-feira, 4 de julho de 2018
Atualizado às 08:26
Rafael de Lazari
Tratam-se os Estados-federados de pessoas jurídicas de direito público interno, com supedâneo no segundo inciso, do art. 41, do Código Civil. Ademais, são instituições imprescindíveis à existência do federalismo, por representarem a "prova viva" de descentralização do poder político vigente na forma de Estado que ora se estuda. Todos os Estados da Federação são dotados de autonomia, assim como os demais entes federativos. Nos dizeres de José Afonso da Silva (Curso de direito constitucional positivo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 608-609): "A capacidade de auto-organização e de autolegislação está consagrada na cabeça do art. 25, segundo o qual os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição. A capacidade de autogoverno encontra seu fundamento explícito nos arts. 27, 28 e 125, ao disporem sobre os princípios de organização dos poderes estaduais [...]. A capacidade de auto-administração decorre das normas que distribuem as competências entre União, Estados e Municípios, especialmente do art. 25, §1º, segundo o qual são reservados aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição [...]".
Modificações estruturais internas são perfeitamente possíveis: os Estados podem sofrer processo de cisão (como o Estado de Tocantins, que é decorrência de desmembramento de parte territorial do que até então era apenas o Estado de Goiás), podem ser incorporados a outros Estados (como o Estado da Guanabara o foi pelo Estado do Rio de Janeiro), podem sofrer processo de transformação em Territórios federais, dentre outros. O que não é possível são modificações estruturais externas, com Estados desejando tornarem-se nações soberanas ou se anexarem a outras já preexistentes, já que, neste caso, a indissolubilidade do vínculo federativo consagrada no art. 1º, caput, da Constituição representa barreira intransponível, ainda que se tencione alterar o texto constitucional para permitir isso (art. 60, §4º, I, CF).
Somente são possíveis, portanto, alterações internas. Neste caso, exige-se aprovação da população diretamente interessada, através de plebiscito, bem como aprovação do Congresso Nacional por lei complementar, conforme disposto no art. 18, §3º, CF.
Ainda, a lei 9.709/1998 ajuda a disciplinar a questão. Pelo art. 4º do comando normativo, caso haja mais de um Estado envolvido, o plebiscito deve ser realizado na mesma data e horário em cada um dos entes federativos, e o Congresso Nacional, em caso de aprovação plebiscitária, antes de editar lei complementar disciplinando a questão, deve previamente ouvir as Assembleias Legislativas (isso se houver mais de um Estado envolvido no processo, como um processo de fusão entre Estados por exemplo; caso se trate de apenas um Estado que está subdividindo-se ou sendo convertido em Território, apenas a Assembleia Legislativa desse Estado deverá ser ouvida, obviamente). Tal(is) Assembleia(s) opinará(ão), sem caráter vinculativo, sobre a matéria tratada, e fornecerá(ão) ao Congresso Nacional os detalhamentos técnicos concernentes aos aspectos administrativos, financeiros, sociais e econômicos da área geopolítica afetada. Vale firmar posicionamento pelo qual, mesmo que haja aprovação plebiscitária envolvendo criação/incorporação/fusão de Estados, transformação em Territórios etc., não está o Congresso Nacional obrigado a editar lei complementar neste sentido, se os detalhamentos técnicos não recomendarem a medida.
Interessante acrescentar, neste diapasão, que o art. 7º da lei 9.709 em estudo define "população diretamente interessada" como aquela do território que se pretende desmembrar, bem como a do território que sofrerá desmembramento; em caso de fusão ou anexação, tanto a população da área que se quer anexar, como a população do território que sofrerá o acréscimo.
Dá-se como estudo de caso a situação do Estado do Pará, que no final de 2011 realizou plebiscito para que se decidisse acerca da formação de mais dois Estados em seu território, a saber, o de Carajás (que teria Marabá como Capital) e o de Tapajós (que teria Santarém como Capital). No dia 11 de dezembro daquele ano duas foram as perguntas, efetuadas na seguinte ordem: "Você é a favor da divisão do Estado do Pará para a criação do Estado de Tapajós?"; e "Você é a favor da divisão do Estado do Pará para a criação do Estado de Carajás?". Na urna eletrônica, se deveria votar em cada um destes questionamentos, e ficou decidido que o número "77" representaria o "sim", isto é, o entendimento favorável ao desmembramento, e o número "55" o "não", isto é, o entendimento contrário ao desmembramento. Em caso de surgimento, Tapajós teria dimensão superior à soma dos territórios da Espanha, de Portugal, da Áustria e da Suíça; Carajás teria dimensão maior que a Inglaterra e a Bélgica juntas. Ao final, a opinião popular rejeitou a criação dos dois Estados (era possível que ambos ou somente um fossem aprovados), com quase setenta por cento de votos contrários em ambos os casos.
Caso um Estado novo seja criado no processo previsto no art. 18, §3º, há regras mínimas previamente delimitadas a serem aplicadas para ele? Visando não deixar a criação de Estados à livre ação de seus entusiastas (afinal, um novo Estado implica nova partilha de receitas tributárias, nova composição na Câmara dos Deputados, nova composição no Senado, gastos com uma nova máquina administrativa etc.), o constituinte previu "normas básicas" (foi exatamente esta a expressão utilizada no caput do dispositivo) no art. 235, CF: "I - a Assembleia Legislativa será composta de dezessete Deputados se a população do Estado for inferior a seiscentos mil habitantes, e de vinte e quatro, se igual ou superior a esse número, até um milhão e quinhentos mil; II - o Governo terá no máximo dez Secretarias; III - o Tribunal de Contas terá três membros, nomeados, pelo Governador eleito, dentre brasileiros de comprovada idoneidade e notório saber; IV - o Tribunal de Justiça terá sete Desembargadores; V - os primeiros Desembargadores serão nomeados pelo Governador eleito, escolhidos da seguinte forma: a) cinco dentre os magistrados com mais de trinta e cinco anos de idade, em exercício na área do novo Estado ou do Estado originário; b) dois dentre promotores, nas mesmas condições, e advogados de comprovada idoneidade e saber jurídico, com dez anos, no mínimo, de exercício profissional, obedecido o procedimento fixado na Constituição; VI - no caso de Estado proveniente de Território Federal, os cinco primeiros Desembargadores poderão ser escolhidos dentre juízes de direito de qualquer parte do País; VII - em cada Comarca, o primeiro Juiz de Direito, o primeiro Promotor de Justiça e o primeiro Defensor Público serão nomeados pelo Governador eleito após concurso público de provas e títulos; VIII - até a promulgação da Constituição estadual, responderão pela Procuradoria-Geral, pela Advocacia-Geral e pela Defensoria-Geral do Estado advogados de notório saber, com trinta e cinco anos de idade, no mínimo, nomeados pelo Governador eleito e demissíveis 'ad nutum'; IX - se o novo Estado for resultado de transformação de Território Federal, a transferência de encargos financeiros da União para pagamento dos servidores optantes que pertenciam à Administração Federal ocorrerá da seguinte forma: a) no sexto ano de instalação, o Estado assumirá vinte por cento dos encargos financeiros para fazer face ao pagamento dos servidores públicos, ficando ainda o restante sob a responsabilidade da União; b) no sétimo ano, os encargos do Estado serão acrescidos de trinta por cento e, no oitavo, dos restantes cinquenta por cento; X - as nomeações que se seguirem às primeiras, para os cargos mencionados neste artigo, serão disciplinadas na Constituição estadual; XI - as despesas orçamentárias com pessoal não poderão ultrapassar cinquenta por cento da receita do Estado".
Tais normas básicas se aplicaram, como exemplo, ao Estado do Tocantins, criado pelo art. 13 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, resultante do que era originariamente a porção norte do Estado de Goiás. Elas não se aplicariam, ilustrativamente, caso se tratasse da situação ocorrida quando da incorporação do Estado da Guanabara pelo Estado do Rio de Janeiro (nos termos da lei complementar 20/1974, a partir de 15 de março de 1975), se isso se desse após o advento da Constituição Federal: não se tratou da criação de um Estado, mas, no caso, da incorporação de um Estado pelo outro.