Federalismo e municípios - Parte 2
quarta-feira, 20 de junho de 2018
Atualizado às 08:36
Jefferson Aparecido Dias
Como já mencionado na primeira parte do presente artigo, a partir da Constituição de 1988 o município passou a ocupar importante posição na Federação brasileira, uma vez que passou a ser considerado um ente federativo, ao lado dos Estados membros e do Distrito Federal, nos termos do art. 1º, do texto constitucional.
Além disso, essa inclusão do município na composição da Federação sequer é passível de alteração por emendas constitucionais, uma vez que o art. 60, §4º, foi expresso em estabelecer que "não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado".
A Constituição, inclusive o seu núcleo intangível, segundo o Oscar Vilhena Vieira, deve ser considerada uma reserva de Justiça.
Para demonstrar sua posição, o referido autor, citando Jon Elster, equipara o texto constitucional com a estratégia adotada por Ulisses, pois, da mesma forma que ele pediu para ser amarrado ao mastro da embarcação e, com isso, "passar ao largo dos rochedos, ouvir o canto das sereias, sem, no entanto, a ele sucumbir"1, as Constituições também teriam esse papel de proteger o homem das paixões do presente como forma de garantir o seu futuro. Em suas palavras: "neste mesmo sentido, as constituições democráticas atuariam como mecanismos de auto-limitação, ou precomprometimento, adotados pela soberania popular para se proteger de suas paixões e fraquezas (...) protegendo metas de longo prazo que são constantemente subavaliadas por maiorias ávidas por maximizar os seus interesses imediatos"2.
Essas restrições de reforma da Constituição e, ainda, a sua concepção como reserva de Justiça, contudo, não devem ser tidas como limites intransponíveis para a interpretação dos preceitos constitucionais de forma a torná-los mais adequados para serem aplicados na atualidade e no futuro.
Essa possibilidade de interpretação e adequação dos textos constitucionais para superar os desafios que o decurso do tempo apresenta, no caso da Constituição brasileira, somente foi possível pelo fato de ela possuir certa resiliência.
Nesse sentido, esclarece Oscar Vilhena Vieira: "Tomando livremente emprestado um conceito da física, entenda-se por resiliência a propriedade que possuem alguns materiais de acumular energia, quando exigidos ou submetidos a estresse, sem que ocorra ruptura ou modificação permanente. Perduram no tempo, retornando ao ponto de equilíbrio. Não são rígidos no sentido da intolerância a certas pressões. Tampouco são flexíveis no sentido de sua modificação radical em razão de certas pressões. "Acomodam" estímulos e pressões, preservando sua função e sua identidade em diferentes ambientes"3.
Ao se referir expressamente à Constituição de 1988, o mencionado autor defende que ela "se mostrou capaz de assimilar mudanças de rumo determinadas por consensos políticos consistentes, sem perder sua identidade. Viabiliza a sua reforma para a adaptação a novas situações, mas impede que elementos básicos do pacto constitucional sejam abandonados. Essa resiliência textual contribuiu para garantir a estabilidade do pacto político conciliador e a paulatina realização das promessas constitucionais de longo prazo"4.
A partir dessas lições, que, por um lado, concebem a Constituição e seu núcleo intangível como reserva de Justiça, e, por outro, reconhecem que o texto constitucional possui uma resiliência que permite a sua interpretação para melhor aplicação na atualidade e nos desafios que estão por vir, o presente texto propõe uma releitura dos preceitos que, supostamente, restringem a atuação do município nas relações internacionais, em defesa da plena eficácia do princípio federativo.
Neste sentido, é certo que o art. 21, da Constituição, estabelece como competência exclusiva da União "I - manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais"; e, o seu art. 84, prevê que "Compete privativamente ao Presidente da República: (...) VII - manter relações com Estados estrangeiros e acreditar seus representantes diplomáticos; VIII - celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional".
Tais preceitos constitucionais, contudo, precisam ser analisados à luz do princípio federativo que concebe os municípios como entes federados e, neste sentido, não pode ser interpretado de forma a restringir completamente a atuação dos municípios, em especial diante de uma nova realidade global, na qual as possibilidades de atuação de agentes subnacionais crescem de forma acelerada.
Ao descrever a atual realidade internacional, George Rodrigo Bandeira Galindo reconhece que, "nos últimos anos, o sistema jurídico internacional vem sofrendo um processo chamado por muitos de fragmentação. Tal fragmentação se refere ao surgimento de novos regimes no direito internacional (como o direito econômico ou o direito ambiental) com lógicas, regras e atores próprios. ... O direito internacional não é mais apenas construído pelo Poder Executivo, nas chancelarias - um direito top-won -, mas também por atores não estatais - um direito bottom-up"5.
Assim, se novos atores estão surgindo no direito internacional, alguns deles até mesmo não-governamentais, maior razão para que os municípios brasileiros não sejam impedidos de participar dessa nova realidade, sendo-lhes permitido celebrar acordos internacionais que poderão garantir recursos e tecnologia para o desempenho de suas funções com maior eficiência, além de garantir "uma plena efetividade de nossa Constituição e do ordenamento jurídico em defesa da dignidade da pessoa humana"6.
Claro que tais acordos não poderão ter o formato de tratados, convenções e atos internacionais que dependam de referendo do Congresso Nacional, mas nada impede que os municípios brasileiros celebrem, por exemplo, acordos de cooperação que garantam o repasse de recursos e a transferência de tecnologias, tanto com entes governamentais quanto com entes não-governamentais de outros países, como institutos e universidades.
A título de exemplo, pode ser citado o Município de Uberlândia (MG) que criou a Câmara Técnica de Internacionalização e Atração de Investimentos do Conselho de Desenvolvimento de Uberlândia (CODEN) como forma de implementar projetos que tenham como horizonte a internacionalização do município em 2100 e já permitiu que ele celebrasse convênio com a Singularity University - instituição de pesquisa e educação sediada no Vale do Silício (EUA)7.
Assim, como se vê, a participação dos governos subnacionais, em especial dos municípios brasileiros, nas relações internacionais já é uma realidade, sendo incompreensível apenas a ausência de debates sobre o tema8.
Nesse cenário, imprescindível que a participação dos municípios brasileiros nas relações internacionais seja debatida para que eles possam, efetivamente, ocupar a posição de destaque na Federação brasileira, conforme imaginado pelo constituinte originário.
Afinal, como já mencionado, "ninguém vive na União ou no Estado; as pessoas vivem no município"9.
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1 VIEIRA, Oscar Vilhena. A constituição como reserva de justiça. Rev. Lua Nova. São Paulo (SP), v. 42, pp. 53-97, 1997. Acesso em: 19/6/2018.
2 VIEIRA, Oscar Vilhena. Oscar Vilhena. A constituição como reserva de justiça. Rev. Lua Nova. São Paulo (SP), v. 42, pp. 53-97, 1997. Acesso em: 19/6/2018.
3 VIEIRA, Oscar Vilhena. 2. Do compromisso maximizador ao constitucionalismo resiliente In. Dimitri DRIMOULIS, Dimitri et al. Resiliência constitucional : compromisso maximizador, consensualismo político e desenvolvimento gradual. São Paulo: Direito GV, 2013, p. 23-24. Acesso em: 19/6/2018.
4 VIEIRA, Oscar Vilhena. 2. Do compromisso maximizador ao constitucionalismo resiliente In. Dimitri DRIMOULIS, Dimitri et al. Resiliência constitucional : compromisso maximizador, consensualismo político e desenvolvimento gradual. São Paulo: Direito GV, 2013, p. 23-24. Acesso em: 19/6/2018.
5 GALINDO, George Rodrigo Bandeira. Art. 84, VII. In CANOTILHO, J. J. Gomes et al. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo : Saraiva/Almedina, 2013, p. 1241.
6 DIAS, Jefferson Aparecido. Aspectos constitucionais dos atores subnacionais nas relações internacionais. In VIANNA, Lídia M. SALA, José Blanes (orgs). Novos atores e relações internacionais. São Paulo : Cultura Acadêmica; Marília : Oficina Universitária, 2010, p. 253.
7 FERRA, Flávia. Internacionalização de Uberlândia é destaque em evento em BH. ASN - Agência Sebrae de Notícias. Data: 23/10/2017. Acesso em: 19/6/2018.
8 VIGEVANI, Tullo. Problemas para a atividade internacional das unidades subnacionais: estados e municípios brasileiros. Aspectos constitucionais dos atores subnacionais nas relações internacionais. In VIANNA, Lídia M. SALA, José Blanes (orgs). Novos atores e relações internacionais. São Paulo : Cultura Acadêmica; Marília : Oficina Universitária, 2010.
9 BARBOSA, Rubens. André Franco Montoro. O Globo, 08/08/2006, Opinião, p. 7. Acesso em: 19/6/2018.