União e federalismo centrípeto: uma análise crítica quanto à concentração de poderes
quarta-feira, 30 de maio de 2018
Atualizado às 08:36
Rafael de Lazari
Convém manifestar, em linhas primeiras, grande incômodo com a expressão "pacto federativo", comumente utilizada quando se refere ao modo como se estrutura o modelo constitucionalmente vigente no Brasil desde sua primeira Lei Maior republicana. "Pacto" tem sentido de ajuste, de contrato, de acordo, de convenção na qual todas as partes envolvidas na demanda assumem obrigações e preservam prerrogativas dentro de certa margem de discricionariedade. Conceitualmente falando, portanto, o modelo federativo brasileiro não decorre de um "pacto", mas de um "contrato obrigatório de adesão constitucional": União, Estados, Municípios e Distrito Federal foram colocados lado a lado, disse o constituinte que todos eles tinham autonomia, e a licença poética e/ou o padrão referencial automático de tribunais e doutrinadores (inclusive deste que escreve este pequeno comentário, mas suas menções cotidianas) se encarregou de chamar essa relação de "pactuada".
É certo que isso voltará a ser discutido em outro momento, mas desde logo convém apenas "inaugurar o debate": esse contrato de adesão constitucional (que de pacto nada tem) ajuda a entender o porquê de os entes federativos não conseguirem se entender em questões fundamentais, como a guerra fiscal, ou a influência do ICMS (tributo estadual) no cerne de grandes atritos entre Estados e União, ou mesmo na cooperação acerca de assuntos que são de interesse de todos os entes (notadamente temáticas que visam ao equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional).
O foco que se quer aqui para o momento, isso sim, reside na análise do federalismo quanto à concentração de poder. A concentração de poder é importante maneira de analisar a estrutura federativa, pois define "o quão federativo" quer ser um país. O federalismo centrípeto, um tanto virtual, mantém traços unitaristas, por pouco repartir das extensas competências constitucionais, criando um ente federal hipertrofiado em detrimento de outros entes raquíticos; o federalismo centrífugo, ideal para modelos consagrados e consolidados no tempo, deposita enorme confiança em que os entes federativos que não o federal atuem em sintonia a fim de legitimar justamente o órgão federal (apenas para que não restem pontas soltas, é comum que estas expressões "centrífugo" e "centrípeto" sejam referidas também, respectivamente, para os federalismos por desagregação e por agregação, mas não é o sentido que se dá aqui para as expressões, tendo em vista que elas são neste comentário direcionadas para uma análise quanto à concentração de poder, como o título elucida, e não quanto ao processo formador estatal); o federalismo equilibrado, por fim, mantém a presença federal em paridade com os demais entes federativos. O Brasil se inseriria neste último caso, diz-se por convenção ante a análise fria da Lei Fundamental de 1988.
Manifesta-se dificuldade em compreender o Brasil como um modelo equilibrado, entretanto. Aliás, se vai além, e diz-se que o Brasil está muito distante de um mínimo de equilíbrio de forças que seja. Não pode ser equilibrado um modelo que concentra na União o papel de ente arrecadador principal de receitas tributárias (são sete os impostos federais, contra três impostos estaduais e três impostos municipais, se ficarmos apenas no campo desta espécie tributária). Não pode ser equilibrado um modelo que traz inchado rol de competências privativas da União, raquítico rol de competências dos Municípios, e subsidiário rol de competências dos Estados (ressalvando-se as competências comuns e concorrentes, obviamente). Não pode ser equilibrado um modelo que traz primordialmente bens da União em detrimento dos demais entes (para que se tenha uma ideia, o art. 20, CF traz bens da União, enquanto o art. 26 somente diz que pertencerá aos Estados o que não estiver compreendido na esfera da União).
Para sairmos um pouco do plano das ideias, tomemos a recente paralisação de caminhoneiros que assolou - na verdade, na data que escrevemos este artigo, ainda assola - o país. Ressalvadas questões relativas ao imposto sobre circulação de mercadorias e serviços e isenção de tarifas de pedágio em rodovias estaduais concedidas à iniciativa privada, ficaram os Governadores de "mãos atadas" enquanto a União tentava uma solução uniforme que, sabe-se desde o começo, jamais seria encontrada. Não pode estar próximo de um equilíbrio mínimo um federalismo que tira dos Governadores boa parte do poder de negociação quando casos assim acontecem. Em termos práticos, o que se viu foram os Estados "aguardando" a União conduzir uma solução que agradasse, ao mesmo tempo, caminhoneiros de norte a sul do país, ainda que parte de suas necessidades fossem distintas entre si.
Até se entende a "preocupação" da União em manter sob absoluto controle o leque de opções e prerrogativas dentro da estrutura federativa: padronizar entendimentos em um país de proporções continentais; funcionar como ente redistribuidor da arrecadação; impedir o esquecimento econômico e político de Estados e Municípios mal localizados e/ou mal desenvolvidos etc. Mas que não se diga, então, que o modelo federativo brasileiro é equilibrado partindo apenas de uma abstrata previsão de autonomia de seus entes. O que existe, isso sim, é uma preponderância da União. E, enquanto a União não concordar em abrir mão "de verdade" de parcela dessa quantidade incrível de poder, jamais seremos uma federação verdadeira.