A reforma do Código Civil e as regras fundamentais a respeito do direito de constituir família
quarta-feira, 26 de março de 2025
Atualizado em 25 de março de 2025 10:52
Dando seguimento à análise das propostas do projeto de reforma do CC - agora, o PL 4/25, em trâmite no Senado Federal, analisarei, neste texto, as regras inaugurais a respeito do Direito de Família.
Antes deste estudo, importante observar que, diante das profundas alterações verificadas nos últimos anos, sendo o projeto original do vigente CC de 1972 e contando com mais de cinquenta anos, justificam-se plenamente a ampla reforma e atualização do livro de Direito de Família, pois ele já "nasceu velho", sobretudo nessa seara.
Nesse contexto, além de alterações pontuais e específicas dos institutos de Direito de Família, é imperiosa uma mudança na estruturação no livro de Direito de Família, o que foi proposto pela relatora-geral, a professora Rosa Maria de Andrade Nery, e acatado pela Comissão de Juristas em votação, da seguinte forma:
"TÍTULO I - DO DIREITO PESSOAL.
SUBTÍTULO I - DO DIREITO DE CONSTITUIR FAMÍLIA.
CAPÍTULO - I DISPOSIÇÕES GERAIS.
CAPÍTULO II - DAS PESSOAS NA FAMÍLIA.
CAPÍTULO III - DO CASAMENTO. Seção I - Dos Impedimentos. Seção II - Do procedimento pré-nupcial e da celebração do casamento. Seção III - Das Formas Especiais de Celebração do Casamento. Seção IV - Das Provas do Casamento. Seção V - Da Invalidade do Casamento.
CAPÍTULO IV - DA UNIÃO ESTÁVEL.
CAPÍTULO V - DA EFICÁCIA DO CASAMENTO E DA UNIÃO ESTÁVEL.
CAPÍTULO VI - DA DISSOLUÇÃO DA SOCIEDADE E DO VÍNCULO CONJUGAIS.
SUBTÍTULO II - DA FILIAÇÃO.
CAPÍTULO I - DA CONVIVÊNCIA ENTRE PAIS E FILHOS E DO EXERCÍCIO DA AUTORIDADE PARENTAL.
CAPÍTULO II - DO RECONHECIMENTO DOS FILHOS.
CAPÍTULO III - DA SOCIOAFETIVIDADE.
CAPÍTULO IV - DA ADOÇÃO.
CAPÍTULO V - DA FILIAÇÃO DECORRENTE DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA. Seção I - Disposições Gerais. Seção II - Doação de Gametas. Seção III - Da Cessão Temporária de Útero. Seção IV - Da Reprodução Assistida Post Mortem. Seção V - Do Consentimento Informado. Seção VI - Das Ações de Investigação de Vínculo Biológico e Negatória de Paternidade.
CAPÍTULO VI - DA AUTORIDADE PARENTAL. Seção I - Disposições Gerais. Seção II - Do Exercício da Autoridade Parental. Seção III - Da Suspensão e Extinção da Autoridade Parental.
TÍTULO II - DO DIREITO PATRIMONIAL.
SUBTÍTULO I - DO REGIME DE BENS ENTRE OS CÔNJUGES.
CAPÍTULO I - DISPOSIÇÕES GERAIS.
CAPÍTULO II - DOS PACTOS CONJUGAL E CONVIVENCIAL.
CAPÍTULO III - DO REGIME DE COMUNHÃO PARCIAL.
CAPÍTULO IV - DO REGIME DE COMUNHÃO UNIVERSAL.
CAPÍTULO V - DO REGIME DE SEPARAÇÃO DE BENS.
SUBTÍTULO II - DO USUFRUTO E DA ADMINISTRAÇÃO DOS BENS DE FILHOS MENORES.
SUBTÍTULO III - DOS ALIMENTOS.
CAPÍTULO I - DAS DISPOSIÇÕES GERAIS.
CAPÍTULO II - DOS ALIMENTOS DEVIDOS A NASCITURO E GESTANTE.
CAPÍTULO III - DOS ALIMENTOS DEVIDOS ÀS FAMÍLIAS CONJUGAIS. CAPÍTULO IV - DOS ALIMENTOS COMPENSATÓRIOS.
TÍTULO III - Da Tutela, da Curatela e da Tomada de Decisão Apoiada.
CAPÍTULO I - DA TUTELA. Seção I - Dos Tutores. Seção II - Dos Incapazes de Exercer a Tutela. Seção III - Do Exercício da Tutela. Seção IV - Da Cessação da Tutela. Seção V - Dos Bens do Tutelado.
CAPÍTULO II - DA CURATELA. Seção I - Das pessoas sujeitas à curatela. Seção I-A - Da Diretiva Antecipada de Curatela. Seção II - Da curatela de nascituro e de gestante.
CAPÍTULO III - Da Tomada de Decisão Apoiada".
Ressalto que o livro de Direito de Família é o único, entre todos da lei geral privada, que conta com uma proposta de remodelação metodológica em sua organização, iniciando-se justamente com suas regras fundamentais a respeito do direito de constituir família, novamente como foi proposto pela relatora-geral, professora Rosa Maria de Andrade Nery.
Além dessa reestruturação, a Comissão de Juristas chegou a votar a eventual alteração do nome do livro para o plural: Direito das Famílias, seguindo proposta sugerida por Maria Berenice Dias. Porém, por ampla maioria de votos e por razões diversas, manteve-se o termo como está: Direito de Família. Com o devido respeito, penso que a alteração do nome do livro em nada modificaria a efetiva inclusão de novas entidades familiares, que já consta de trechos da reforma.
No que diz respeito ao direito de constituir família, como primeira disposição geral a ser analisada, consoante o novo art. 1.511-A, caput, do CC "o planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e financeiros para o exercício deste direito, vedada qualquer forma de coerção, por parte de instituições privadas ou públicas", o que representa uma especificação civil da regra já prevista no art. 227, § 6º, da CF/88.
O § 1º desse novo preceito tutela a proteção do nascituro e do embrião no seio da família, tratando-os como pessoas desde a concepção e confirmando a adoção da teoria concepcionista, para os fins do Direito Civil brasileiro e nesses limites: "A potencialidade da vida humana pré-uterina e a vida humana pré-uterina e uterina são expressões da dignidade humana e de paternidade e maternidade responsáveis".
A menção à potencialidade humana pré-uterina diz respeito aos gametas, aos óvulos e aos espermatozoides, tratados como expressões da dignidade humana, com vistas a se vedar sua venda ou comercialização. A esse propósito, é também incluído na codificação privada um novo art. 1.629-F, no novo tratamento da reprodução assistida, prevendo que "é permitida a doação pura e simples de gametas, vedada a sua comercialização a qualquer título".
A ampla e necessária proteção da gestante e, por via indireta, mais uma vez do nascituro, passa a ser expressa na projeção de novo § 2º ao art. 1.511, o que é salutar: "O cuidado físico e psíquico que se deva dar a gestante ou a quem pretende engravidar é tema concernente à intimidade da vida familiar com o suporte de assistência médica que o Estado deve prestar à família". Deve ficar claro que não há nenhuma relação das duas normas com o aborto, pois esse tema não deve ser tratado pelo CC, mas pelo CP. Essa foi a posição que acabou prevalecendo na Comissão de Juristas, com a adoção do texto final.
Sobre as famílias protegidas expressamente na legislação civil, o projetado art. 1.511-B da lei civil passará a prever que "são reconhecidas como famílias as constituídas pelo casamento, união estável, bem como a família parental". Sobre a última, o seu § 1º estabelecerá que "a família parental é a composta por, pelo menos, um ascendente e seu descendente, qualquer que seja a natureza da filiação, bem como a que resulta do convívio entre parentes colaterais que vivam sob o mesmo teto com compartilhamento de responsabilidades familiares pessoais e patrimoniais".
Cite-se, de início e pelo que está no texto proposto, a família monoparental, constituída por um dos pais, solo, com os seus filhos, conforme já prevê o art. 226, §4º, da CF/88: "entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes".
Sem prejuízo desse necessário tratamento infraconstitucional, há também a tutela da família anaparental, no termo cunhado pelo professor Sérgio Resende de Barros, ou sem pais, formada, a título de ilustração, por irmãos ou primos que vivem sob o mesmo teto, compartilhando convivência, realidade cada vez mais comum em uma população que envelhece em nosso país.
Ainda de acordo com a sugestão da Comissão de Juristas, o art. 1.511-B receberá um § 2º, segundo o qual, "para a preservação dos direitos atinentes à formação dessa família parental, é facultado a todos os seus membros declararem, em conjunto, por escritura pública, a assunção da corresponsabilidade pessoal e patrimonial entre seus membros e postularem a averbação dessa declaração nos respectivos assentos de nascimento, na forma do § 1º do art. 10 deste Código, sem que essa providência lhes altere o estado familiar".
Diante dessa norma, passará a ser facultada a formalização da família parental para ser ampliada a proteção, inclusive em face de terceiros, elaborando-se uma escritura pública, perante o Tabelionato de Notas, e fazendo-se seu registro no Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais nos termos da projeção de § 1º ao art. 10: "no assento de nascimento da pessoa natural, nos termos da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, será reservado espaço para averbações decorrentes de vontade expressa pelo interessado que permitam a identificação de fato peculiar de sua vida civil, sem que isto lhe altere o estado pessoal, familiar ou político".
Por fim a respeito dessa família parental, como nos exemplos citados e como não poderia ser diferente, ela "cria obrigações comuns e recíprocas de suporte, de sobrevivência e de sustento dos que dividem fraternalmente a mesma morada" (art. 1.511-B, § 3º). Confirma-se, portanto, a ampla e necessária regulamentação de outras entidades familiares, de maneira plural, como está no Texto Maior.
O princípio da não intervenção, atualmente previsto no art. 1.513 do CC - e somente quanto ao casamento -, passa a ser regra expressa para qualquer entidade familiar, o que já é realidade doutrinária e jurisprudencial, nos termos do projetado art. 1.511-C: "É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado: I - interferir na comunhão de vida instituída pela família; II - obstar os direitos da família parental; III - negar a quem vive sozinho ou às famílias parentais a proteção pessoal que a lei destina às famílias conjugais e ao seu patrimônio mínimo; IV - privar a mulher gestante de tratamento digno durante a gestação e de parto seguro, em companhia de quem ela escolher".
Destaco a impossibilidade de intervenção para se impedir o exercício dos direitos da família parental ou mesmo para as pessoas solteiras, na proteção do seu patrimônio mínimo, caso do bem de família, o que confirma a interpretação extensiva que se tem dado à lei 8.009/1990 para a tutela da moradia, mesmo que de pessoas solteiras, divorciadas ou viúvas (súmula 364 do STJ). Também se verifica na última proposta, mais uma vez e como é reiterado no projeto de reforma, a proteção da mulher gestante, atendendo-se ao protocolo de gênero e à tutela dos direitos das mulheres.
Como outra proposta, a Comissão de Juristas pretende confirmar a afirmação, hoje majoritária na doutrina e na jurisprudência, no sentido de ser o divórcio um direito potestativo, conclusão que é retirada da EC 66 e virá em boa hora: "Ninguém pode ser obrigado a permanecer casado porque o direito ao divórcio é incondicionado, constituindo direito potestativo da pessoa" (art. 1.511-D).
Como tem julgado o STF, "o divórcio caracteriza-se como direito potestativo dos cônjuges de romper a relação afetiva e o próprio vínculo matrimonial, independentemente de decurso de prazo ou qualquer outra condição impeditiva, a exemplo da prévia deliberação a respeito da divisão patrimonial, conforme expressamente autorizado pelo artigo 1.581 do Código Civil" (STJ, REsp 1.817.812/SP, relator ministro Marco Buzzi, 4ª turma, julgado em 3/9/24, DJe de 20/9/24.). Ou, ainda e em complemento, a demonstrar ser essa a posição consolida das duas turmas de Direito Privado da Corte Superior: "A Emenda Constitucional nº 66/2010 transformou o divórcio em um direito potestativo, que depende unicamente da manifestação de vontade da parte interessada, impondo à contraparte uma submissão jurídica, de modo a não haver contraposição viável ao direito material invocado" (STJ, REsp 2.154.062/RJ, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª turma, julgado em 27/8/24, DJe de 30/8/24). Eis mais uma proposição que apenas confirma o entendimento hoje majoritário, como é a grande maioria das sugestões elaboradas pela Comissão de Juristas.
Também há a intenção de se prever a gratuidade, para aqueles que necessitarem, na efetivação de atos familiares que são registrados perante o Cartório de Registro das Pessoas Naturais, no novo art. 1.511-E: "O trâmite legal para o procedimento pré-nupcial, celebração do casamento e registro da conversão da união estável em casamento são gratuitos, nos termos da lei". De toda sorte, não se pode pensar haver uma gratuidade automática, mas apenas daqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade ou hipossuficiência econômica, diante do trecho final "nos termos da lei". Caberá, eventualmente, a regulamentação do tema pelo CNJ.
Como outro assunto de enorme relevância, e para encerrar este breve texto, a Comissão de Juristas concluiu que a temática do estado civil da pessoa natural deve estar prevista e regulada na codificação geral privada, que deve voltar a ter um protagonismo legislativo perdido em relação a leis específicas, caso da lei de registros públicos (lei 6.015/1973).
Nesse contexto, o novo art. 1.511-F preverá que "o estado civil pessoal comprova-se pelos assentos do registro civil das pessoas naturais, lançados nos termos deste Código e da legislação em vigor". E mais, "alterações lançadas no registro civil de pessoas naturais, por vontade manifestada pelos interessados, nos termos do § 1º do art. 10, deste Código, não prejudicam interesses de terceiros, nem alteram o estado civil do interessado" (art. 1.511-G ora projetado).
Além do art. 10, o novo art. 9º do CC, com modificações relevantes, tratará dos atos que serão averbados e registrados perante o Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais, concentrando o tema do estado civil na codificação privada, como realmente deve ser, e para que esse assunto encontre a esperada segurança jurídica, o que será objeto de outro texto de minha autoria a ser desenvolvido no futuro.