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A manutenção da ordem e a criminalização da pobreza

terça-feira, 23 de novembro de 2021

Atualizado às 08:58

As últimas semanas mostraram alguns casos estarrecedores de criminalização da pobreza. No primeiro, uma mãe com seus filhos famintos subtraiu alguns produtos como miojo e coca-cola, no valor de cerca de R$ 20, e só foi solta por decisão do STJ, após a primeira instância e o Tribunal de Justiça de São Paulo terem-na mantido presa porque era reincidente No segundo, uma mulher negra, pisoteada no pescoço por um policial militar, foi denunciada por infração de medida sanitária, desacato, resistência e lesão corporal, enquanto os PMs já eram réus na Justiça Militar por lesão corporal e abuso de autoridade. No terceiro, dois cidadãos que reviravam o lixo de um supermercado e que pegaram alimentos que haviam sido descartados por estarem vencidos, foram levados à delegacia, denunciados pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul, que recorreu da sentença que os absolveu sumariamente. No quarto, uma mulher negra, com uma criança pequena no colo, foi jogada ao chão por um policial militar em Itabira (MG), antes de ser pisoteada no pescoço e, aparentemente ser presa. Não se tem outras informações sobre o caso, se a mulher de fato foi e continua presa. Em relação à conduta policial, notas de repúdio e que informam que "será apurado" se houve excessos.

Olhando desavisadamente, os casos podem parecer pitorescos, exceções no meio de um sólido sistema de justiça imparcial. Ledo engano. O projeto constitucional de prevalência da dignidade da pessoa humana, do acesso integral e universal à justiça e da promoção dos direitos e garantias fundamentais nunca se concretizou, especialmente para a população pobre e periférica e, por esses mesmos motivos, majoritariamente negra. Quem já trabalhou na justiça criminal brasileira sabe que casos como esses são frequentes.

Para além da frequência, retratam como o Judiciário, e por arrasto o sistema de justiça, age, especialmente no âmbito criminal: a manutenção da ordem prevalece em relação à garantia de direitos fundamentais. A validação dos atos, ainda que arbitrários, do Estado-polícia justifica-se em nome da segurança pública e do combate à criminalidade, valores colocados acima da Constituição. O Estado-acusador, o Ministério Público, reverbera esse mesmo viés, adotando a mesma perspectiva. A postura da instituição frente aos abusos e arbitrariedades cometidas na Lava Jato e sua oposição ao juiz de garantias ilustram essa visão. A falta de uma justiça de transição, que permitiu, portanto, tratamento jurídico diferenciado para quem estava no poder, que não precisou responder pelos crimes cometidos, e a manutenção da mesma estrutura de sistema de justiça após a ditadura talvez expliquem por que Judiciário e Ministério Público continuaram na chave da manutenção da ordem, seletivamente criminalizando a população pobre, enquanto a Constituição clamava por direitos humanos.

O pressuposto da manutenção da ordem é o que, mesmo diante da garantista Constituição de 1988, ainda não produziu uma nova legislação penal e processual penal. Não nos esqueçamos que o Código Penal, o Código de Processo Penal e a Lei de Contravenções Penais são da época do Estado Novo, e a mais significativa reforma do Código Penal é do final do regime militar. Não surpreende, portanto, que a contravenção de vadiagem ("Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita), a síntese da criminalização da pobreza, ainda esteja em vigor.

E, se a ideia subjacente é a manutenção da ordem, nada mais natural do que as reproduções das discriminações que mantém como cidadãos de segunda classe as pessoas pobres e negras. Dois exemplos demonstram essa diferença de tratamento. A mudança da Lei de Drogas, em 2006, na prática descriminalizou o porte para consumo próprio, antes criminalizado. A prática mostrou que a tentativa legislativa levou ao recrudescimento da interpretação pelo Judiciário: para filhos de ricos, a pequena quantidade de entorpecente sequer justificava a prisão; para pobres e negros, nas mesmas condições, que antes eram processados por porte, passaram a ser condenados por tráfico, o que explica em parte a explosão de prisões por esse crime nos últimos quinze anos. Outro exemplo interessante, em comparação às acusações de furtos de valor de R$ 20 ou menos, para os crimes tributários, evidentemente cometidos por pessoas que não são pobres, não se processa as sonegações de menos de R$ 10 mil. O garantismo seletivo, que permite todas as benesses penais para quem sonega milhões mas não enxerga aquele que subtraiu comida, porque faminto, é a face mais perversa do racismo estrutural que fomenta a atuação do sistema de justiça.

Nessa desequilibrada balança, o papel da Defensoria Pública é ainda mais essencial. A falta de defensores públicos em inúmeras comarcas do interior, contudo, certamente é um obstáculo. Mais de 71% das cidades com Varas Federais, por exemplo, não contam com Defensores Públicos e não parece que um governo que acabou com o Bolsa Família esteja preocupado com esse problema.

O pressuposto da manutenção da ordem, especialmente na justiça criminal, em clara ofensa às expectativas de que o sistema de justiça servisse antes como um garantidor de direitos fundamentais, claro plano de uma constituição já em vigor há mais de 33 anos, não é apenas a continuidade de um pensamento conservador. É a juridicização do controle social sobre corpos pobres e principalmente negros. E se toda a estrutura do sistema de justiça tem servido a esse propósito, se temos que comemorar cada tímido avanço, cada excepcional habeas corpus concedido, significa que a estrutura permanece a mesma e está intacta. O nome é racismo estrutural, e está entranhado no sistema de justiça. Basta!