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Direitos humanos e uniformização de jurisprudência

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Atualizado às 14:45

Em 1999 começou a ser formado o lago da Usina de Manso, no Mato Grosso. A elevação do nível da água forçou o deslocamento de quem habitava a região, mas apenas algumas dessas pessoas receberam indenização pelo prejuízo que suportaram. Todo o grupo classificado como sendo de posseiros, por exemplo, não recebeu qualquer compensação. E mesmo quem teve validado, por Furnas, um título qualquer a ensejar reparação, acabou recebendo valores ou foi reassentado de maneiras que não atendiam a critérios mínimos de justiça.

O persistente desrespeito aos atingidos pela barragem, levado à cabo pela empresa estatal, resultou em violência cerca de alguns anos após o fechamento das comportas da usina. Em 2002, um vigilante contratado por Furnas morreu durante protesto motivado pela recusa de indenização pelo deslocamento imposto às famílias, que moravam na área antes do alagamento, excluídas da primeira rodada de indenizações.

Um acordo foi fechado em 2006 entre Furnas, e alguns atingidos previamente ignorados pela empresa foram abarcados pela promessa de indenizações futuras, mas outros tantos continuaram privados de qualquer expectativa de ressarcimento. Os protestos não cessaram, forçando um novo acordo, homologado em 2012, para ampliar um pouco mais o grupo dos que seriam compensados. Ainda assim, muitos seguiram excluídos, sem qualquer perspectiva de recomposição de suas vidas pelos danos que lhes foram impostos pela formação do lago.

Parte desse grupo remanescente ajuizou pedidos individuais de indenização, mas todos foram julgados prescritos. Dois desses processos chegaram ao Superior Tribunal de Justiça que, reconhecendo a multiplicidade de demandas idênticas, afetou-os como recursos repetitivos.

Apesar dos pleitos terem por fundamento o deslocamento forçado de pessoas -  muitas integrantes de grupos tradicionais - para a realização de um grande projeto estatal de infraestrutura, do envolvimento de movimentos da sociedade civil e do violento conflito social, o viés de questão relacionada à proteção dos direitos humanos não apareceu, e os repetitivos foram classificados como matéria de direito civil, ou como anota mais especificamente a burocracia do tribunal: "(899) DIREITO CIVIL, (10431) Responsabilidade Civil, (10439) Indenização por Dano Material, (5632) Prescrição e Decadência".

Ao enunciar a controvérsia do tema repetitivo 978, o Superior Tribunal de Justiça não faz qualquer alusão a direitos humanos. As agressões ao meio ambiente, aos pequenos e pobres agricultores e ao modo de vida dos ribeirinhos passaram em branco, propondo-se o tribunal apenas em "definir o termo inicial do prazo prescricional para o ajuizamento de ação indenizatória por terceiros que se alegam prejudicados em decorrência da construção de Usina Hidrelétrica no Rio Manso; se é da data da construção da Usina ou da negativa de pagamento ao recorrente, diante da não inclusão de seu nome no acordo entabulado perante a Justiça Federal".

A Defensoria Pública da União, pedindo ingresso como amicus curiae, chamou atenção para a omissão, frisando a necessidade de enfrentar o tema em bases que reconheçam a relevância das normas de direitos humanos para a uniformização da jurisprudência. Contudo, até o momento, a única mudança perceptível na abordagem do Superior Tribunal foi um apontamento marginal na questão de ordem que deslocou o julgamento do recurso da sessão para a corte especial. Nada mais.

Esse relato serve para evidenciar a dificuldade do Superior Tribunal de Justiça em reconhecer contextos que exigem a análise dos casos sob a luz própria dos direitos humanos.

A insensibilidade do tribunal encontra expressão nas bases de dados que produz. Pesquisa de precedentes qualificados, grupo que compreende os temas repetitivos, não tem os direitos humanos como ramo do direito que sirva à indexação realizada pelo tribunal. Tampouco se pode encontrar os direitos humanos entre os assuntos que servem para classificar com mais detalhamento as matérias de que tratam os temas.

Desde a afetação do primeiro recurso especial ao rito dos repetitivos em outubro de 2008, nenhum, absolutamente nenhum dos mil cento e nove temas, trezentos e quarenta e três controvérsias, doze incidentes de assunção de controvérsia, dez suspensões de incidentes de resolução de controvérsia e vinte e sete pedidos de uniformização de interpretação de lei recebeu etiqueta que os identificasse como matéria de direitos humanos.

A situação não melhora quando se aprofunda a pesquisa. Em apenas onze acórdãos de uniformização da jurisprudência o tribunal empregou a expressão "direitos humanos". Destes:

a)  três se referem ao tema 1.031 e dois ao 982, ambos previdenciários, respectivamente aposentadoria especial de vigilantes e extensão do auxílio-acompanhante a todos os aposentados que necessitem de cuidados;

b) aos temas 931, 446 e 447, e 177, todos de natureza penal, tratando respectivamente da irrelevância do inadimplemento da pena de multa para a extinção de punibilidade (tese já superada), devido processo para a prova da embriaguez e vedação à autoincriminação, e possibilidade de retratação da representação pela mulher vítima de violência (tese também superada);

c) finalmente, aos temas 708, que mitigou a proteção ao bem de família; 220, a conhecida proibição de prisão do depositário infiel; e 777, sobre a possibilidade de protesto de certidão da dívida ativa pela fazenda pública (que sequer tangencia verdadeiramente qualquer questão de direitos humanos).

É espantoso que em mais de mil e quinhentas oportunidades diferentes ao longo de treze anos - e aqui se está a falar apenas das teses, pois o número de processos afetados é muito maior - o Superior Tribunal de Justiça não tenha sido capaz de qualificar nenhuma uniformização como matéria propriamente de direitos humanos.

Nem se diga que seria impossível que o fizesse porque, entre as duas mil e dez linhas da classificação de assuntos padronizada pelo Conselho Nacional de Justiça para o tribunal, há apenas uma única menção à matéria na entrada "proteção internacional de direitos humanos", colocada sob o título mais genérico do "direito internacional". Como visto, à exceção do tema tributário, poderia ter etiquetado todos os demais acabados de mencionar, afinal têm nítida relação com disposições da Convenção Americana de Direitos Humanos. Mesmo assim, nas dez ocasiões que referiu livremente o julgado aos direitos humanos, inclusive na que cita expressamente a Convenção Americana (tema 220, depositário infiel), passou ao largo da classificação, preferindo não registrar o vínculo.

O Superior Tribunal de Justiça não demonstra estar aberto à necessidade de afirmar os direitos humanos ao uniformizar a jurisprudência, o que resulta na sua incapacidade em aplicar a lei federal conforme os parâmetros interamericanos. Trabalha o direito à moradia, ao devido processo, à liberdade, à previdência social ou à educação como se nenhuma influência tivesse para sua compreensão o que dizem a Convenção Americana e a jurisprudência da Comissão e da Corte Interamericanas, perpetuando o aflitivo isolamento do tribunal em face do contexto continental.

A crítica alcança também o Supremo Tribunal Federal. Nas dezessete vezes que o tribunal afirmou na ementa dos julgados em repercussão geral estar tratando de matéria de direitos humanos, só uma vez foi capaz de anotar o assunto e, ainda assim, porque estava a tratar da imunidade de jurisdição de Estados estrangeiros e organizações internacionais (temas 944 e 947).

O fechamento dos tribunais de sobreposição encontrará antídoto na pressão que a base do judiciário sobre eles pode exercer, forçando, desde a origem, a classificação das demandas de direitos humanos não apenas como questões de "direito à moradia", "direito à educação", e assim por diante, mas também como de "proteção internacional de direitos humanos" pela simples razão de sobre elas incidir, sempre, a regulação convencional e os parâmetros interamericanos.

Há que se aproveitar a burocracia de maneira inteligente. Como o papel do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal na distribuição de etiquetas aos processos é ínfima, por já receberem os recursos com o enquadramento que lhes é dado pelas instâncias ordinárias, fica evidente que estas detêm o meio para contribuir efetivamente para a superação da resistência da cúpula ao tratamento estatístico da aplicação judicial dos direitos humanos no país.

Indo um pouco mais além, ainda na linha de tirar melhor partido da burocracia, sabendo que a tarefa cadastrar as iniciais e recursos foi repassada às partes, sua representação processual poderá sempre os pré-classificar no assunto "proteção internacional de direitos humanos".

É bem provável que contra a proposta há pouco enunciada se levante alguma objeção técnico-burocrática ou mesmo de epistemologia. Desde já se reconhece a provável procedência de cada uma delas. Contudo, se a sugestão, ainda que imperfeita, vier a ser eventualmente implementada, talvez a padronização de assuntos pelo Conselho Nacional de Justiça acabe revista para receber, de alguma maneira, marcações que permitam produzir estatísticas reveladoras do quanto o judiciário brasileiro se dedica a prevenir e remediar as violações aos direitos humanos.